Para além da cortina de fumaça: greve geral no Uruguai e perspectivas de luta

A política econômica colocada em prática pelos governos da Frente Ampla resultou em grandes mobilizações dos trabalhadores e estudantes uruguaios.

Charles Rosa e Israel Dutra 25 jul 2017, 12:52

Na atualidade, poucos lugares no mundo despertam tanto a simpatia da sociedade brasileira quanto o Uruguai. Este país de 3,5 milhões habitantes e com o segundo menor território da América do Sul (maior apenas que o Suriname), para além de seus estreitos vínculos históricos com a Argentina e o Brasil, é desde há muito tempo reconhecido por seu pioneirismo na adoção de medidas civilizatórias: direito ao divórcio (1907), voto feminino (1932), união civil igualitária (2007), casamento entre pessoas do mesmo sexo e legalização do cultivo, venda e consumo de cannabis (2013). No ano de 2014, um plebiscito nacional votou pela não redução da idade penal, outra importante conquista democrática. De sua parte, o movimento operário uruguaio tem história e tradição de lutas. A PIT/CNT, central unitária, protagonizou a famosa greve geral de 15 dias, numa corajosa tentativa de resistência operária ao golpe militar de 1973.

No Brasil, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica tornou-se uma espécie de ídolo juvenil nas redes sociais e constantemente enche auditórios de universidades quando visita o país. Entretanto, percebe-se em geral uma ausência de balanços mais aprofundados do modelo econômico seguido pelos governos da Frente Ampla uruguaia, neste início de século, bem como um acompanhamento mais pormenorizado da vida política do Uruguai. Aproveitando a realização de uma importante greve geral nesta semana (20 de Julho), tentaremos introduzir a situação de fim de ciclo do chamado “progressismo” uruguaio, bem como a nova conjuntura se insere no contexto latino-americano.

Greve Geral paralisa o Uruguai

A terceira paralisação geral dos trabalhadores uruguaios realizada sob o governo de Tabaré Vázquez (Frente Ampla) deixou a quinta-feira, 20 de julho, com cara de final de semana, segundo os relatos dos principais jornais do país. Convocada pela maior central sindical do país, a PIT-CNT (com sua direção influenciada fortemente pela Frente Ampla e com uma base de 400 mil filiados), a jornada de lutas teve como foco de críticas o plano orçamentário apresentado pelo governo ao Parlamento no mês passado, 10 dias antes do vencimento do prazo, sem nenhum diálogo estabelecidos com os organismos sindicais.

Com o mote “O estancamento traz retrocesso. A concretizar!”, boa parte do funcionalismo público,o bancários, os profissionais da educação, os taxistas e os motoristas de ônibus foram a linha de frente da mobilização em Montevidéu, cidade onde se concentra metade da população do país. Enquanto a Unión de Trabajadores e Obreros de Transporte enfrentou as empresas de ônibus de Montevidéu, que colocaram ônibus-fantasmas para circular, a Agremiación Federal de Funcionários de la Universidad de la República desatou uma ronda de ocupações pelos principais prédios desta prestigiada instituição de ensino superior público. Em Salto (125 mil hab.), na fronteira com a Argentina, professores de ensino secundário, operário do SUNCA (Sindicato Único Nacional de la Construcción y Afines), sindicatos da saúde, varios setores de ADEOMS (Asociación de Empleados y Obreros Municipales de Salto), os comerciários da FUECYS (Federación Uruguaya de Empleados del Comercio y Servicios), entre outros, não só cruzaram os braços como promoveram uma assembleia na praça pública da cidade. No pacote comum de reivindicações, agitado pelas diferentes categorias, sobressaíram-se as bandeiras de 6% do PIB para Educação e 1% do PIB para pesquisa (promessa eleitoral da FA, aliás), negociação coletiva permanente, recomposição salarial e proteção ao emprego. A vanguarda foi o setor da educação, que realizou uma manifestação com sindicatos como o AFFUR e pela Federação de Estudantes Universitários, acompanhada pelos setores mais combativos do movimento social.

A greve geral teve forte impacto em meio à deterioração dos índices sócio-econômicos do país. Com vistas a atrair investimentos externos, cada vez mais escassos desde o fim do boom das commodities, Tabaré Vázquez e o ministro da Economia Danilo Astori buscam enxugar o déficit público (em torno de 4%), penalizando os setores sociais mais vulneráveis com sucessivos tarifazos e cortes nas áreas sociais. Se a previsão para 2017 é de retomada tímida do crescimento do PIB (2%), após dois anos de patinação, a curva do desemprego permanece ascendente (9%, atualmente, patamar similar a 2007), atingindo com força às mulheres (11% em média) e os mais jovens (25%, entre 14 e 24 anos). O processo de redução da pobreza e da indigência, observado desde 2004, congelou-se a partir de 2015 e hoje cerca de um terço das crianças com menos de 6 anos de Montevidéu reside em lares pobres.

Para complicar o difícil momento da Frente Ampla, o vice-presidente Raúl Sendic – uma das apostas de sucessão à Vázquez – foi atingido em junho por uma investigação acerca de supostos gastos irregulares com cartões corporativos no tempo (2010-2013) em que administrava a ANCAP, a refinaria estatal de petróleo. Outros casos de corrupção no governo Mujica (2010-2015) estão sob a mira dos órgãos de controle. Em dois anos, a desaprovação de Vázquez saltou de 15% para 40%, conforme pesquisa de Equipos Consultores. Nas recentes sondagens para as eleições de 2019, os partidos de oposição à direita (Nacional e Colorado) já superam a Frente Ampla por uma margem crescente.

Ajuste continental e as greves como métodos de luta

É impossível não constatar que ajuste fiscal antipopular – aumento de impostos regressivos e sucateamento dos serviços públicos essenciais – constitui um projeto de austeridade permanente continental. Seja na Argentina de Macri, seja no Brasil de Temer, seja no Uruguai de Vázquez, quem tem pagado a conta é a classe trabalhadora, após sucessivos crescimentos – puxados pela demanda chinesa – nos quais a estrutura de apropriação da renda nacional permaneceu inalterada. No caso uruguaio, cabe sublinhar o papel sub-imperialista da burguesia brasileira que exerce todo tipo de pressão para o rebaixamento do nível dos salários e dos direitos sociais, a fim de compensar sua perda de dinamismo com mais superexploração da força de trabalho também dos país vizinhos economicamente dependentes dos capitais vindos do Brasil. Não à toa, em novembro do ano passado, Tabaré Vázquez compareceu ao lado de Geraldo Alckmin um evento organizado pela LIDE-Grupo de Líderes Empresariais (grupo de lobby de João Doria), ofertando seu país ao empresariado brasileiro, meses depois de aprovar medidas que atrapalham o direito de greve no Uruguai.

Durante a greve de ontem, Tabaré Vázquez estava em Mendoza, celebrando novos pactos comerciais, na reunião do Mercosul, junto com Temer e Macri. A linha política de maior “abertura”, é na verdade um alinhamento maior com os países à direita, cujo produto será homogeneizar os padrões de “produtividade”, retirando mais direitos, fechando fábricas e unidades de produção, para garantir a ampliação dos investimentos externos. A serviço dessa política foi aprovada a reforma trabalhista no Brasil, e setores empresariais e políticos da Argentina já preparam medidas similares para serem aprovadas no país vizinho.

Contudo, paulatinamente, as classes trabalhadoras da Argentina, Brasil e Uruguai se mobilizam em contraposição ao arrocho salarial e o desmonte dos estados. Apenas em 2017, o continente sul-americano pôde assistir à realização de greves gerais nestes três países (6 de abril na Argentina, 30 de Abril no Brasil, 21 de Julho no Uruguai). Uma nova geração de trabalhadores vai esboçando uma correspondente consciência de classe, driblando a ineficiência e o desinteresse das burocracias, a partir das ferramentas comunicacionais gestadas nestes séculos. O bloqueio midiático com frequência é furado pelas convocatórias nas redes sociais e já não é possível ocultar as demonstrações de força do operariado contemporâneo. Inevitavelmente, as experiências de lutas, de uma forma ou de outra, acabam sendo transmitidas e conectadas na velocidade da internet, antecipando características de um internacionalismo que deve ganhar corpo no próximo período caso a resistência contra o capital avance. São experiências fundamentais para o conjunto da classe trabalhadora no Cone Sul, que resiste e se depara com importantes lutas operárias como as da Argentina onde os operários da Pepsico e do frigorífico Cresta Roja colocam em questão os ataques contra os trabalhadores.

A experiência do dia 8 de março, greve internacional de mulheres, que alias, no Uruguai teve sua maior concentração com mais de 300 mil mulheres tomando às ruas, é outro passo na construção de uma ação internacional. O protagonismo dos trabalhadores contra as medidas de ajuste começa a ecoar em diferentes países.

Ainda estamos distantes da experiência europeia, quando em 2012, construíram uma greve ibérica, juntando trabalhadores de diferentes nacionalidades. Porém, é preciso encontrar pontos de unidade e ação coordenada, exigindo das centrais sindicais a capacidade de construir vínculos, e trocando experiência entre os setores classistas e combativos. O Cone Sul sempre teve um compasso político muito aproximado, em que pese diferentes ritmos e tempos: a luta contra as ditaduras, a ofensiva neoliberal, a experiência de governos social-liberais. No interregno, para abrir um novo ciclo, será fundamental acompanhar como o movimento de trabalhadores do Cone Sul se comporta.

O governo da FA, seus ataques e a necessidade de colocar em pé uma esquerda combativa

Voltando ao Uruguai, objeto deste texto, é necessário pontuar que o país atravessa um fim de ciclo iniciado em 2005 com a chegada da Frente Ampla (coalizão de quadros progressistas da sociedade uruguaia oriundos da social-democracia, comunismo e dissidências democráticas dos tradicionais partidos Colorado e Blanco) ao governo. O governo da FA foi caracterizado por uma linha “social-liberal”. Em sua primeira gestão (2005-2010), Tabaré Vázquez conseguiu inserir a economia nacional no chamado vento de proa no âmbito internacional, iniciando uma série de 10 anos de crescimento médio de 5%. Tal margem de manobra nas finanças permitiu que o governo da FA estabelecesse, além de medidas de atenuação da pobreza, mesas de negociação coletiva com os principais sindicatos, fidelizando uma base sindical que lhe seria útil nos anos seguintes. Ao mesmo tempo em que a Frente Ampla abraçava uma política econômica ao gosto do empresariado local, bastante beneficiado pela elaboração de zonas francas isentas de impostos, subsídios escamoteados, anistias fiscais, cotas de publicidade na grande mídia privada e taxas de juros acima das praticadas internacionalmente. A Vázquez sucedeu o ex-guerrilheiro Pepe Mujica, o qual deu continuidade ao modelo anterior, incrementado os alguns avanços democráticos, exemplificados na Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, Lei de Matrimônio entre pessoas do mesmo sexo e a emblemática Lei da Marihuana, que regulamenta a produção, o comércio e o uso da droga no país.

Os sintomas da crise capitalista global de 2007-08, ainda que retardados, eclodiram também na região do Mercosul. A recessão de seus dois parceiros econômicos mais importantes, Brasil e Argentina, derrubou a formação bruta de capital no país e desvalorizou o peso frente ao dólar, impactando nos custos de vida da população. A renda per capita estagnou, dívida pública já extrapola 33 bilhões de dólares (para um PIB de 54 bilhões de dólares) e as reservas do Banco Central estão sendo drenadas para o controle inflacionário. Neste contexto, o segundo governo de Tabaré Vázquez empreendeu uma completa guinada à direita, encampando o programa eleitoral da direita neoliberal de guerra ao déficit público (leia-se, congelamento dos salários dos funcionários públicos), preservando a maioria dos privilégios fiscais das classe dominantes (principalmente os banqueiros e latifundiários), como atesta a Rendição de Cuentas protocolada em junho. A matriz produtiva do país não se desenvolveu e Vázquez segue flertando com o capital especulativo, ao oferecer o patrimônio nacional sob a forma de concessões via Parcerias Público-Privadas.

Do ponto de vista no tratamento às demandas dos trabalhadores, recrudesce a truculência governamental. Meses depois de sua recondução ao Edifício Libertad, Vázquez declarou guerra aos sindicatos docentes, enviando uma lei ao Congresso que na prática eliminava o direito de greve. A impopularidade da medida foi tamanha que o projeto não prosperou. Em seguida, seu ministro da Economia, Danilo Astori preparou um pacote de cortes na Educação e um aumento de tarifas, culminado na imensa greve geral de julho de 2016. Por fim, Vázquez em abril deste ano editou um decreto que autoriza a ação repressiva das polícias nos cortes de estrada efetuados pelos sindicatos e movimentos sociais.

As tensões dentro e fora da FA levam a diferentes setores começarem a questionar sua linha de conciliação de classes. No sindicalismo, a contradição entre a política de Tabaré Vázquez , leva a um descolamento das direções, causando crise entre a base frenteamplista no meio sindical. A oposição de esquerda, com apenas um deputado, Eduardo Rubio, da Unidade Popular (UP) consegue pautar pelo viés dos interesses de classe, vários projetos de âmbito nacional. No calor das greves, os setores combativos se colocam a necessidade de levantar uma bandeira de independência política e democrática para apontar uma mudança estrutural no país e preparar o novo ciclo que está por vir. Por isso, também é necessário dar o combate no Brasil contra os setores petistas que buscam forjar um modelo “a la Frente Ampla”, como resolução da crise do projeto lulista.

Fundamental é a troca entre a esquerda socialista brasileira e a uruguaia para construírem laços para forjar uma nova estratégia de enfrentamento, a quente, dos capitalistas e seus agentes; para levar adiante a experiência que foi feita com governos de caráter social-liberal; e sobretudo, para aproveitar o melhor da vanguarda militante que está combatendo por seus direitos, com os métodos históricos da classe, sob a perspectiva do internacionalismo, para construir uma nova hegemonia no movimento de massas do Cone-Sul.

(Texto originalmente publicado pelo Portal de la Izquierda)


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