Walter Benjamin: uma arca de palavras

No aniversário de sua morte, publicamos artigo discutindo o seu legado à teoria marxista no campo estético e na filosofia da História.

Antonio Crespo Massieu 27 set 2017, 20:21

Uma versão reduzida deste texto foi minha contribuição ao Fórum sobre Walter Benjamin que abriu a I Universidade de Verão de Izquierda Anticapitalista em Banyoles, Girona, em 25 de agosto de 2010. Não atualizei este escrito —apenas suprimi alguma referência concreta que hoje não tinha sentido— para não atrasar sua publicação como homenagem a Walter Benjamin neste ano em que se cumpre o 75º aniversário de sua morte em Portbou. Em 2010 não existia La Comuna: Presxs del franquismo, nem se havia interposto a querela argentina contra a impunidade do franquismo. Este trabalho está dedicado às companheiras e companheiros de La Comuna e da Coordenadora Estatal de Apoio à Querela Argentina (CEAQUA) e à equipe de juristas que com eles trabalha. Desde a fidelidade ao passado alcançaram o presente. Acudiram a essa “reunião entre as gerações que se foram e a nossa” da qual fala Benjamin. Mudaram a história e o relato dos vencedores. A eles e elas que tiveram “o dom de acender no passado a faísca da esperança”. Em agradecimento.

De onde vêm a permanente fascinação pela obra de Walter Benjamin, sua presença, marginal, heterodoxa, mas, entretanto, tão persistente? Já seu amigo Gershom Scholem, num texto de 1972 fazia-se eco de como “os jovens marxistas citam Benjamin como a Sagrada Escritura”, assinalava como uma das características de sua prosa filosófica o de ‘sua enorme aptidão para a canonização”, e aventurava, com maliciosa ironia, que seu amigo “teria aceitado com beneplácito, ainda que com dialética reserva, ser declarado padre da Igreja ou rabino marxista” (Scholem, 2004: pp. 51-52). Precisamente em 1971 e 1972 publicava a editora Taurus suas Iluminaciones e de 1973 é a edição castelhana de seus Discursos interrumpidos I, onde se incluem as “Teses sobre o conceito de História” com prólogo e tradução de Jesús Aguirre. Desde então a obra de Benjamin caminha, sempre por meandros marginais e um pouco labirínticos, até alcançar, faz alguns anos, uma dimensão notável e uma sólida ocupação do espaço acadêmico.

Estas reflexões, apressadas, tangenciais, incompletas, nascem de uma velha amizade. Por isso quero abri-las com uma citação, por demais malévola, daquele que foi seu grande amigo e com uma referência a esse pequeno livro de capas brancas traduzido por quem me falara pela primeira vez no curso de 1967-68, no deserto intelectual de uma tenebrosa ditadura, do filósofo mais marginal da Escola de Frankfurt. Com duas referências, portanto, à amizade e a dois autores digamos “teológicos” e não-marxistas e com um olhar ao passado, à própria biografia, ao precoce fascínio, essa amizade especial e diferida que entabulamos com um autor que já sempre nos acompanha.

Benjamin sempre se manteve nas margens, já Adorno criticava-o por seu pensamento a-dialético; longe da escolástica marxista (longe de qualquer escolástica, de qualquer escola), mas é verdade que, como assinalava Scholem, exerceu indubitável atração sobre essa linha heterodoxa de um marxismo crítico ou cálido (na qual, entre outros, se situa Ernst Bloch, que fora seu amigo) e que, por isso, sentimos tão próximo. Evitemos a canonização. Melhor falar com suas perguntas. Aceitar a não-resposta, o espaço em branco. E não deveria ser difícil pois seu pensamento, como sua própria vida, tem no fragmentário, no inacabado, na interrupção, no elemento essencial que o define.

Sublinhava Jesús Aguirre como elementos interruptores do discurso em Benjamin estes dois: “O de uma pluralidade discordante das fontes inspiradoras e o da convicção de que a realidade é descontínua (convicção alimentada por uma vontade de que realmente o seja)” (Aguirre, 1973: p. 8).

Crítico da Cultura

Pluralidade de fontes, assunção do diverso. Sua ideia do judaísmo, essencial em seu pensamento, cumpre esta função. Bernd Witte, seu biógrafo, nos diz que “seu judaísmo era o dever de desenvolver uma cultura europeia” (Witte, 1990: p. 27) e que a esta ideia de sua juventude se manteve fiel, e de fato o apartou do sionismo e de sua sempre adiada viagem à Palestina. Fiel a esta assunção da cultura europeia inclusive quando o curso da história (o nazismo) fazia-a já, a todas as luzes, ilusória. O próprio projeto do Livro das Paisagens, o inalcançável intento de por de novo em pé um século e uma cidade ( o que está como inacabado fulgor nos fragmentos que foi desgarrando do livro – os escritos sobre Baudelaire e a Paris do II Império – e no mesmo Livro) deve muito a esta ideia da cultura. Pode parecer um conceito idealista ou quando menos utópico, mas não o é pois quem o assume (inclusive com a teimosa determinação de permanecer em Paris, negando-se assim a própria possibilidade de fuga) é muito consciente de que “todo monumento de cultura é também um monumento de barbárie”. É algo muito mais importante. Trata-se, como diz Michael Löwy, “de redescobrir os momentos utópicos ou subversivos ocultos na herança cultural” (Löwy, 2002: p. 92). Esses instantes de vida que pulsam sempre na obra de arte (ainda que os oculte o relato institucionalizado do poder), esse fulgor que nos deslumbra atravessando os séculos. O que Benjamin nos apresenta é, em palavras de Concha Fernández Martorell, “uma visão materialista da arte, como elemento interruptor do continuum histórico que permite ter com o passado uma experiência única” (Benjamin, 1996: p. 25). A “experiência única” que a obra de arte nos faz viver é suspensão do tempo, anulação do reino da mercadoria, pura gratuidade, vigência do passado, salvação do vivido, restituição… Uma experiência de liberdade que rompe o contínuo histórico, que nega o reino da necessidade e antecipa o reino do possível. Por isso, essa adesão apaixonada a uma herança cultural que para Benjamin é também uma herança de imaginação e esperança, a ela fui sempre fiel; por isso são injustos as reprovação que lhe lançara Paul Celan, que havia sido obrigado pela história a renunciar a essa cultura (e a destruir, a descompor uma língua na qual pudesse dizer Auschwitz sem trair as vítimas); ao menos esta é a leitura que Jean Bollack faz de seu poema “Port Bou: ¿Alemán?” (Bollack, 2005: pp. 153-166), interpretação que, por certo, difere com a que faz do mesmo poema Ulisse Dogá (Dogá, 2012).

Benjamin lê para trás, olha o passado, vive-o e resgata-o para um futuro de esperança; não há complacência, menos ainda arqueologia ou acadêmico respeito. Por isso sua ideia da arte, da cultura “burguesa” é assunção, nunca rechaço, interrogação, nunca simplismo. Quero dizer: em suas leituras não nunca essa tendência, tão presente em quase toda a crítica literária marxista, ao reducionismo sociológico; essa atitude que parece tomar como pretexto a obra literária para ilustrar com ela uma reflexão de caráter social ou histórico ou, pior ainda, essa sensação de que é necessário “encaixar” a criação artística, num marco já preestabelecido como se sua presença causasse um desassossego, como se houvesse ali algo que desconcerta, que não é capaz de explicar (e que poderia destoar com uma concepção de mundo completa e fechada em si mesma). Quando Benjamin lê Baudelaire, Proust, Kafka… a história está presente, ou seja, a luta de classes, os aspectos sociais, as condições materiais, mas não anulam nunca, nem explicam (não o pretendem) nem esgotam o estalido de vida, que pulsa na criação artística. Por isso, é uma leitura aberta que deixa interrogações, a obra literária não se explica (ou seja, se reduz a, se encaixa, num esquema prévio) por uma determinação de classe. Segue aberta, como a história mesma. Há uma lucidez no olhar que não esgota, pois não o pretende, a realidade; igual sucede, por outro lado, em seus escrito autobiográficos, onde, em algumas ocasiões, a mais viva e íntima experiência se envolve no acontecer histórico. No mesmo olhar que, para a criação artística, ensaia Ernst Bloch; ainda que, talvez, com algo de um artifício escolástico que Benjamin nunca transluz. O oposto ao “realismo socialista”, a uma certa e pertinaz ortodoxia marxista que, quem diria, ainda hoje segue vigente. Por isso, creio que esta reflexão não é marginal; muito menos se atendemos ao fato de que algo foi, se algo quis ser, Walter Benjamin, se algum “ofício” ou profissão reclamou em sua vida errante foi a de crítico literário ou crítico da cultura e, no conjunto de sua obra, são estes escritos os que ocupam uma maior extensão.

As Teses

Judaísmo, teologia… marxismo. Estranha combinação! Só um solitário, um perpétuo habitante das margens podia ser tão ousado. Lowy destaca as três grandes escolas de interpretação das Teses sobre o conceito de história (poderia se dizer do conjunto de seu pensamento): a escola materialista que reduz suas formações teológicas a simples metáforas (assim o lia Brecht); a teológica que considera o marxismo como uma peruca acrescentada que desvirtua seu pensamento (assim o vê seu amigo Scholem); e a escola da contradição que considera essa tentativa de conciliar materialismo e messianismo como fracasso pois considera ambas as correntes como incompatíveis (Habermas). Acrescenta Löwy um quarto enfoque “Benjamin é marxista e teólogo” (Löwy, 2002: p. 41). Basta ler a primeira das Teses para compartilhar esta afirmação. Nela Benjamin evoca o relato de Edgar Alla Poe O jogador de xadrez de Maelzel no qual um boneco vestido de turco ganha sempre as partidas. Um sistema de espelhos produz a ilusão de que nada oculta a grande mesa em que está situado o tabuleiro, o autômata sem alma derrota aos melhores jogadores, mas quem move suas mãos é um anão corcunda escondido no interior da grande caixa. Foi um sucesso real que assombrou a corte de Viena em 1789 e depois viajou pelos Estados Unidos. Benjamin compara o “materialismo histórico”, com esse autômata sem alma e ao anão dissimulado e oculto com a teologia. Somente se o materialismo histórico oculta em seu interior a teologia poderá ganhar. A esse anão corcunda, rechonchudo, escondido, essa alma lúcida e ferida do pensamento. Sem ela, sem seu alento, sem sua vida, sem seu incerto horizonte messiânico, a revolução é impossível ou estará condenada a ser de novo, e sempre, traída. É, nos diz com outra imagem, como o secante e a tinta: o secante fixa a palavra, não a borra, a encharca para que permaneça. O autômata, elegantemente vestido, com seu narguilé na mão e sua pomposa autossuficiência, nunca poderá ganhar. Crê que a história é um mecanismo perfeito e ele é o relojeiro, vê um tabuleiro onde todos os movimentos podem ser previstos, calculados, antecipados, submete o sucessivo a uma determinação que ele crê científica. Assim entendiam a história os jesuítas da revolução, os inquisidores de Moscou ou os herdeiros de Kautsky. Para o autômata a grande ausente é a revolução; o acontecimento em que todos os possíveis são reais. Para eles não existe a revolução, suas perplexidades, seu inacabamento; nem a decisão que a faz possível ou a condena. É como se Benjamin nos dissesse que, talvez, para ganhar a partida da história tenhamos que ser um pouco trapaceiros, ter um fundo duplo. E tomar a seu serviço “à teologia que, como é sabido, é hoje pequena e feia e não deve deixar-se ver de modo algum”.

Em verdade, faltava ousadia para levar a herança do judaísmo ao coração do marxismo; isso foi o que nunca compreendeu seu amigo Scholem (nem tampouco, no lado oposto, seu amigo Brecht), que reprovava essa dimensão sua como algo postiço, falso, que enturvava seu pensamento. Não caiamos no contrário e reduzamos a marca do judaísmo a algo anedótico. Esta “pluralidade de fontes discordantes” é o que dá a seu pensamento uma sensação de liberdade, de busca, de interrogações que se abrem e não se fecham. E isso apesar do caráter asseverativo de sua prosa, próxima às vezes à sentença, enigmática em sua condensada formulação: algo que lhe une, e creio que não é a única coincidência, à radicalidade da aventura filosófica de Wittgenstein. Esta liberdade permite, para citar só um exemplo, incorporar um conceito como o de “aura”, para nada marginal em sua obra, e defini-lo da seguinte maneira: “uma trama muito particular de espaço e tempo: irrepetível aparição de uma distância, por mais próxima que esta possa estar. Seguir com toda a calma no horizonte, num meio-dia de verão, a linha de uma cordilheira ou um ramo que projeta sua sombra sobre quem o contempla até que o instante ou a hora participam de sua aparição, isso é aspirar a aura dessas montanhas, desses ramos” (Benjamin, 1973: p. 75). É, como pode ver-se, a exata definição de uma experiência poética.

A Ideia de Progresso

Este olhar livre e ousado que enxerta teologia no materialismo histórico, leva-o a romper com o conceito de Progresso. Ou seja, a estabelecer uma descontinuidade radical com um aspecto central do pensamento ocidental e que afeta também, de maneira relevante, à filosofia marxista. A ideia da História como um continuum em constante e progressivo avanço, um processo dialético, no qual cada etapa supera a anterior. Uma herança do Século das Luzes ( e de sua ingênua cegueira na Razão) e do idealismo hegeliano (a Ideia realizando-se na história) que impregna o marxismo, com todas as matizes que se queiram, e que alcança sua caricatura (trágica caricatura) na social-democracia e no stalinismo. É outro o olhar de Benjamin; o seu tem a lucidez dos avisadores do fogo, dos poucos que anteciparam a catástrofe inimaginável. O que se avizinhava. Essa “quebra de civilização” que foi, em palavras de Enzo Traverso, Auschwitz; esse século da infâmia (de Hiroshima, do Gulag) que ele abandona, mais que à meia-noite, na noite mais cerrada e obscura. Porque o olhar de Benjamin é o olhar do anjo da história, essa pequena aquarela de Klee que comprara por sete marcos e que sempre lhe acompanhou, o anjo de que nos fala na Tese 9. Esse anjo de “olhos desmesuradamente abertos e extensas asas” que volta o rosto para o passado e vê, onde nós vemos uma cadeia de dados, uma catástrofe única que amontoa ruína sobre ruína. Quisera deter-se, despertar aos mortos, recompor o despedaçado. Mas sopra um furacão que o empurra para o futuro, ao qual dá as costas. “Esse furacão é o que nós chamamos progresso” (Benjamin, 1973: p.183). A imagem do processo histórico não pode ser mais desoladora pois o passado é um monte de ruínas que nos afasta de qualquer interpretação teleológica, é uma montanha de escombros que exclui a própria ideia de causalidade (“cadeia de dados”) explicativa. Incapaz de deter-se, arrastado pelo furacão do progresso, ou seja, por essa acumulação de novas catástrofes que será o futuro. É preciso aqui vários cortes taxativos, uma descontinuidade radical com a tradição filosófica ocidental. A primeira, e mais evidente, a já apontada: a história não tem direção nem finalidade; não há nada que garanta um sentido ou uma realização ascendente. Outra a mudança no olhar; esse olhar para trás que é negação da modernidade europeia ocidental. Daniel H. Cabrera recordou como esta modernidade privilegia conceitos como “o adiante e o acima, o avanço e a velocidade” e “nega o atrás e o abaixo, o retrocesso e a lentidão” (Cabrera, 2009: p.42) e, o que me parece ainda mais interessante, chama a atenção sobre o fato de que não é esta a única forma possível, ainda que para nós pareça que sim, de imaginar esta concepção espacial do tempo. Quase todas as culturas atribuem ao futuro uma posição espacial diante do falante, enquanto situam o passado atrás. Entretanto, Cabrera salienta a exceção do povo aymara para quem a palvra nayra que indica o passado significa à vista ou à frente. E a palavra que significa futuro, quipa, quer dizer atrás ou às costas. Qhipüru, manhã, combina qhipa (atrás) e uru (dia) e significa literalmente “dia que está atrás”. A expressão nayra mara que significa “ano passado”, literalmente diz “ano adiante” (Cabrera, 2009: p. 44). A gestualidade reforça esta concepção: quando falam do futuro indicam um espaço atrás deles e para referir-se ao passado assinalam um espaço diante deles. Ou seja, trata-se de uma relação espaço-temporal exatamente inversa à nossa. Mas possível, e ademais racional. Mas que significado adquire em Benjamin este olhar para trás, este deter-se e ver o passado? Esta visão para as ruínas do passado não é nunca uma visão para o morto, arqueologia, contemplação do enclausurado pela história (não é um olhar histórico). Estes escombros que contempla, esta acumulação de fracassos, de derrotas, não são nunca algo definitivo. Como destaca Reyes Mate: “se nega a interpretar o fracasso como natureza morta”, pois para ele “o frustrado da história são ações humanas privadas de realização e, por conseguinte, ações que pedem ser realizadas e redimidas” (Mate, 2009: p. 53). Não é só melancolia, ou seja, a inevitável tristeza ante o que foi vida (beleza consumada, plenitude ou derrota); há melancolia, mas há também uma aposta, e apostar leva em si a esperança (ou ao menos uma remota possibilidade) de ganhar. É resgate do fulgor de vida, da possibilidade não-cumprida, por isso se projeta no presente e ilumina o porvir: que não está escrito, que pode ser, quem sabe, restituição. Seu olhar para trás, o conceito de rememoração, é reviver o passado no presente, sentir a fagulha da iluminação e salvá-lo messianicamente num futuro que não seja já o futuro da história, do progresso. O olhar para o passado não assegura nunca: é dívida. Uma obrigada herança que nos pressiona em prol de seu merecimento. Scholem destacou como os cabalistas “liam a realidade como um texto, mas não para descobrir a lógica da história mas para ver nela os signos do potencial semântico do presente” (Mate, 2009: p. 53). Esse é o olhar, não inventar uma lógica, “uma cadeia de dados”, ao que é acumulação de ruínas, mas trazer ao presente os possíveis não-realizados. Não se trata de olhar ao passado para aprender dele e, por utilizar o tenaz tópico tão do gosto dos historiadores, não cometer os mesmos erros. Os erros se repetem, porque se repetem os fracassos, mas não são nunca os mesmos; a história não tem uma lógica que nos permita, se seguimos as premissas adequadas, evitar as derrotas.

A chamada dos ausentes

O debate sobre a Memória Histórica pode ilustrar o alcance e os riscos de concepções que utilizam conceitos que, em alguns casos, se reclamam do pensamento de Benjamin. O olhar para trás, para as vítimas da Guerra Civil e da ditadura, não é, não deveria ser, alguma destas coisas.

Não é uma simples recuperação de acontecimentos mais ou menos soterrados ou escassamente divulgados. Não é um olhar de aprendizagem; o direito de memória não é ilustração acadêmica do sucedido na história. A argumentação implica considerar, ainda que seja com boa intenção, que a Memória Histórica vem a ser um processo de encaixe de peças que faltavam no relato histórico e a construção de um novo relato “consensual”, “compartilhado” que cimente uma cultura democrática e cívica “institucional”. Trata-se de um ato de justiça, o qual é necessário, mas que cancela o passado, petrifica-o, e, evidentemente, não alcança o presente, não o interroga.

Mas o olhar para trás, a rememoração benjaminiana, tem um valor ativo, projetivo, que alcança o presente. Os ausentes nos chamam o silêncio. O que se escuta no silêncio é a voz, o rosto, dos pisoteados pela história. O anjo da história, por um instante se detém, e acaricia com suas asas rotas as vítimas, resgata seu fulgor ao nomeá-los. E esta necessidade de restituição, esta volta ao presente “os sonhos de felicidade que dormem no fracasso”, estas ações humanas privadas de realização “são ações que pedem ser realizadas e redimidas”. Por isso alcançam o presente, o interrogam. Porque o olhar para trás demonstra que outros possíveis foram abandonados nas encruzilhadas da história, que estas vidas poderiam ter sido vividas em plenitude se tivessem sido outros os caminhos escolhidos. Alcança o presente e questiona o passado, o mais próximo e o mais remoto. Por isso, nenhum relato consolador pode ignorar que os mortos sem sepultara reclamam justiça, descanso, mas também ações que podem ser realizadas. Que um ato elementar de justiça para com as vítimas da guerra civil tenha revelado o caráter da Transição, o passado mais imediato, e os limites do presente ilustra, melhor que nada, esta dimensão política da memória, esta fidelidade com os derrotados que nos impulsiona a modificar o presente. Por isso, a nostalgia encerra uma aposta.

Benjamin olha para trás: seu olhar, como a do anjo da história, está carregada de piedade e de tensão, vê, como os aymaras, o futuro atrás. E lê para trás, pois é esta outra racionalidade possível: podemos ler como as línguas semíticas, como esse hebreu que tantas vezes tentou aprender. É uma maneira de entender o presente para quem, como ele, faz da recordação “a autêntica medida da vida”: “aqueles para quem a vida se transformou em escrito, como para os antigos, unicamente gostam de ler este escrito atrás. Somente assim se encontram a si mesmos, e só assim — fugindo do presente— podem entende-lo” (Benjamin, 1996: p. 24). E é também a sua, me atrevo a qualifica-la assim, um olhar lateral; ou seja, um olhar que amplia o campo visual, que repara nos pequenos detalhes, no que está ao nosso redor e que, com frequência, não vemos. O que deixamos de lado, pois vamos sempre de frente, de pressa, empurrados pelo Progresso. Ele se detém e contempla. Há um solícito “cuidado” (para utilizar a expressão de Heidegger), uma coleta das coisas, os objetos mínimos, os escritos esquecidos, tudo o que não tem importância, o que carece de valor, as pessoas desconhecidas, as visões fugazes, as cidades: caminhar por elas sem rumo fixo, como um flâneur perdendo-se seus labirintos. A figura do colecionador, que ele mesmo encarnou, incorporou tanto o olhar para trás, para o passado, como esta visão lateral, este reparar nas pequenas coisas que não estão mortas pois nelas segue vivendo a aura que as animou. Trata-se de juntar os pedacinhos rotos, as marcas, os fragmentos do passado, o resgatar as derrotas? Pois disso se trata. Os ausentes voltam para a ordem do dia, os citamos, resgatamos o resplandecer de seu fracasso porque somos cronistas especiais, que não hierarquizamos, que não queremos dar nada por perdido: “O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos da conta de uma verdade: que nada do que uma vez tenha acontecido tem de dar-se por perdido para a história” (Benjamin, 1973). É este o corte definitivo. A detenção da história. O momento em que, por fim, cesse o furacão e o anjo de olhos desmesuradamente abertos e asas rotas, pode deter-se, voltar atrás, ir nomeando. Então, “cada vítima do passado, cada tentativa emancipatória, por humilde e pequeno que tenha sido, ficará a salva do esquecimento e será ‘citado na ordem do dia’, isto é, reconhecido, honrado, rememorado (Löwy, 2002: p. 64). Um conceito que deve muito aos estudos de Scholem sobre a cabala; com efeito, para a cabala luriânica, o tikkun é o terceiro momento, o por chegar, o ainda não sucedido, em que os vasos rompidos pelo alento divino voltarão a se unir (Cohen, 1999: p. 75); seu equivalente na teologia cristã é a apocatástase: a salvação de todas as almas sem exceção, o regresso de todas as coisas a seu estado originário. A revolução como equivalente profano da redenção, horizonte messiânico em que se detém a história e é possível outro tempo: talvez um tempo que caminha para trás ou que, simplesmente, não caminha. O fato de que tudo deve ser salvo, tudo o que já aconteceu, a demanda por uma lembrança integral do passado, o grande e o pequeno, no momento da revolução aponta para o infinitamente aberto do momento revolucionário onde tudo, o grande e o pequeno, é possível. Neste agora, no fato de que se abriu uma cesura no continuum histórico, nada está enclausurado, muitas são as direções possíveis. É o instante que se abre de novo a todo o vivido, o grande e o pequeno, a todo o enclausurado pela história; ou seja, por esse relato de quem não cessou de vencer. Mas a detenção do anjo, seu regresso para todos os ausentes, seu despertar para os mortos, seu juntar pedacinhos rompidos, fragmentos de vida, estancar as feridas.. esse movimento de piedade, ou se preferirem um termo mais profano, esta fraternidade infinita, esta restituição definitiva, onde a situamos? Como tornar compatível esse sossego, este solícito cuidado a tudo o que foi a vida, esta pausa, esta carícia do passado, esta demora com a aceleração vertiginosa do tempo histórico que caracteriza a revolução? É, como pensa Lowy, algo que somente será possível na sociedade sem classes? Não estaremos secularizando excessivamente o pensamento de Benjamin, não estaremos adiando? Será que de algum modo possível que ação e pausa confluíam no instante da revolução? Este momento político, necessário, da piedade, do reconhecimento, esta fraternidade sem limites, onde a situamos? Ao menos conviria não perdê-la nunca de vista, não esquecê-la no tempo da ação.

Uma arca de palavras frente ao fascismo

Perguntas. Não podia ser de outro modo falando com este “colecionador de citações”, este pensador “obstinadamente assistemático”, que se nega a “qualquer empenho por elaborar uma edificação teórica com intenções doutrinais” (Carretero Pasín, 2009: p. 71). Benjamin reúne materiais para seu inacabado Livro das passagens, acumula na Biblioteca Nacional de Paris fichas e mais fichas com as mais heterogêneas anotações. Quer construir “uma arca de palavras frente ao dilúvio fascista” (Sholem, 1987: p. 207). Pretende levantar de novo o fulgor de todo um século mas não explica-lo. Conduz materiais, os ordena, lhes cede a palavra; mas se nega a qualquer sistematização pois, como diz Hannah Arendt, “a transmissibilidade do passado tinha sido substituída por sua possibilidade de ser citado” (Arendt, 1971). Nos diz Benjamin: “As citações são como ladrões escondidos no caminho que atacam armados e despossuem de suas convicções o ocioso”. Talvez tão só, ainda que de uma maneira muito diferente, a radicalidade absoluta do pensamento de Wittgenstein daqueles anos, sua obstinada tentativa de demolir certezas, seja comparável a este semeador de dúvidas que afirma: “convencer é estéril” (Benjamin, 2005). E reparemos no intercambiável que resulta a citação.

Mas no assistemático Benjamin há, atravessando os anos, as descontinuidades, as interrupções, umas quantas fidelidades sobre as que não se edifica nenhum sistema mas sim a coerência de uma biografia. Recordemos. A fidelidade aos despossuídos: “só por amor aos despossuídos nos deram a esperança”, escreveu aquele que em sua infância era chamado “senhor dos quintais”. Teimosa fidelidade a conceitos que lhe ofereceu o marxismo: a luta de classes, a ideia de revolução. E a aposta melancólica sobre a que edifica sua descontínua e azarada vida: fazer como se esta fosse possível. Não renunciar nunca a esta difícil esperança. Muito perto daqui, em Portbou, numa paisagem que condensa todo o peso da história, disse adeus a esta esperança. Ninguém sabe o lugar exato em que estão seus restos, confundido para sempre com os que deixaram marcas borradas, com os fuzilados junto às taipas, os jogados nas valas. Mas permanece como uma ausência que nos chama, uma pausa que invoca a muda presença de todos os desaparecidos, um luminoso silêncio no qual se pode escutar a voz dos ausentes. Hoje voltamos a esta esperança que nos sussurram os vencidos: ser fiéis também a esta aposta melancólica pela revolução.

(Artigo originalmente publicado em Viento Sur)


Bibliografia 

Arendt, H. (1971) Walter Benjamin, Bertold Brecht, Hermann Broch, Rosa Luxemburgo. Barcelona: Anagrama.

Benjamin, W. (1973) Discursos interrumpidos I. Madrid: Taurus.

— (1996) Escritos autobiográficos. Madrid: Alianza.

— (2005) Dirección única. Madrid: Alfaguara.

Bollack, J. (2005) Poesía contra poesía. Celan y la literatura. Madrid: Trotta.

Cabrera, Daniel H. (2009) “El atrás como fantasmagoría moderna”. Anthropos, 225.

Carretero Pasin (2009) “Walter Benjamin: explorando lo social desde la heterodoxia marxista”. Anthropos, 225.

Cohen, E. ( 1999) El silencio del nombre. Barcelona: Anthropos.

Dogá, U. (2012) Port Bou:¿Alemán? Paul Celan lee a Walter Benjamin. Madrid. La balsa de la medusa. Antonio Machado.

Löwy, M. (2003) Walter Benjamin. Aviso de incendio. México: FCE.

Mate, R. (2009) “Sobre la fuerza subversiva del trapero”. Anthropos, 225.

Scholem, G. (1987) Walter Benjamin. Historia de una amistad. Barcelona: Península.

— (2004) Los nombres secretos de Walter Benjamin. Madrid: Trotta.

Witte, B. (1990) Walter Benjamin. Una biografía. Barcelona: Gedisa.


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