Stalin, de Leon Trotsky: uma obra-prima do marxismo

Neste artigo publicado em maio de 2016, Alan Woods apresenta o livro Stalin, de Leon Trotsky.

Alan Woods 7 ago 2017, 17:30

Em 20 de agosto de 1940, a vida de Trotsky terminou brutalmente quando um agente estalinista afundou uma picareta de alpinista em sua cabeça indefesa. Entre as obras que deixou sem terminar estava a segunda parte de Stalin. Esta obra é, provavelmente, única na literatura Marxista na tentativa de explicar alguns dos acontecimentos mais decisivos do século XX, não somente em termos das transformações econômicas e sociais que formam uma época, como também da psicologia individual dos que aparecem como protagonistas de um grande drama histórico.

A relação entre a psicologia individual e os processos históricos proporciona um tema fascinante aos estudiosos da história e constitui a base do presente trabalho. De onde veio Stalin, que começou sua vida política como um revolucionário e um bolchevique e terminou como um tirano e um monstro? Estava predeterminado, seja por fatores genéticos ou pelas condições de sua infância?

Há algumas circunstâncias na vida anterior de Stalin, minuciosamente analisadas por Trotsky, que sugerem certas tendências à sede de vingança, à inveja e a uma tendência cruel, inclusive sádica. Consideradas de forma isolada, contudo, estas tendências não podem ter uma importância decisiva. Nem toda criança que é maltratada por um pai bêbado se converte em um ditador sádico, da mesma forma que nem todo artista fracassado, ressentido pela rejeição da sociedade vienense, se converte em Adolf Hitler.

Para que este tipo de transformação ocorra são necessários grandes acontecimentos históricos e convulsões sociais. No caso de Hitler foi o colapso econômico da Alemanha, depois da queda de Wall Street, que lhe deu a oportunidade de dirigir um movimento de massas da pequena burguesia arruinada e do lumpemproletariado desclassificado. No caso de Stalin foi o refluxo do movimento que se seguiu à Revolução Russa, o esgotamento das massas depois dos grandes esforços da Guerra, da Revolução e da Guerra Civil e o isolamento da revolução em condições de atraso e pobreza espantosos, o que levou ao surgimento de uma burocracia privilegiada.

Os milhões de funcionários que afastaram os trabalhadores se consolidaram como uma casta privilegiada. Estes arrivistas necessitavam de um líder que defendesse seus interesses. Mas este líder tinha que ser um homem com credenciais revolucionárias – um bolchevique com um pedigree sólido: “Chegado o momento, chega o homem”. A burocracia soviética encontrou seu representante em Iossif Djugashvili, conhecido como Stalin.

À primeira vista, Stalin não pareceria uma escolha óbvia para calçar os sapatos de Lênin. Stalin não tinha nenhuma ideologia que não fosse a de ganhar poder e se aferrar a ele. Tinha uma tendência à suspeita e à violência. Era um típico aparatchik – de mente estreita e ignorante, como as pessoas cujos interesses representava. Os outros dirigentes bolcheviques passaram anos na Europa Ocidental, falavam línguas estrangeiras com fluidez e participaram pessoalmente do movimento operário internacional. Stalin não falava idiomas estrangeiros e inclusive falava pobremente o russo com um forte sotaque georgiano.

Este paradoxo é explicado por Trotsky. Uma época revolucionária exige dirigentes heroicos, grandes escritores e oradores, pensadores audazes que são capazes de colocar em palavras as aspirações inconscientes ou semiconscientes das massas para mudar a sociedade, traduzindo-as em palavras de ordem apropriadas. É uma época de gigantes. No entanto, um período contrarrevolucionário é um período de refluxo, de retiradas e de desmoralização. Tais períodos não requerem gigantes, mas pessoas de uma estatura muito menor. É o momento dos oportunistas, dos conformistas e dos apóstatas.

Em tais circunstâncias, não mais se requer visionários audazes ou indivíduos heroicos. Governa a suprema mediocridade, e Stalin era a mediocridade suprema. Naturalmente, esta definição não esgota suas qualidades, de outra forma nunca teria tido êxito em se elevar acima das cabeças das pessoas que eram, em todos os aspectos, superiores a ele. Ele também possuía vontade e determinação férreas, uma sede implacável e obstinada pelo poder e pela ascensão pessoal, e uma habilidade inata na manipulação das pessoas, explorando seu lado débil, manobrando e intrigando.

Tais qualidades no contexto de uma revolução que avança são somente de importância de terceira categoria, mas no refluxo da maré da revolução podem ser utilizadas com grande resultado. O modo como isto se aplica no caso de Stalin é explicado por Trotsky com uma massa de material cuidadosamente acumulado, retirado tanto de seus arquivos pessoais quanto de muitas outras fontes, incluindo as memórias de bolcheviques, estalinistas, mencheviques e, sobretudo, de revolucionários georgianos que conheciam intimamente o homem.

O papel do indivíduo

A tentativa de reduzir os grandes acontecimentos a personalidades individuais é superficial e, no geral, reflete a incapacidade de abordar a história a partir de um ponto de vista científico. O materialismo histórico encontra a fonte principal da história no desenvolvimento das forças produtivas. Mas isto de forma alguma nega o papel do indivíduo na história. Pelo contrário, o processo histórico somente pode se expressar através da ação de homens e mulheres.

Descobrir a complexa interação entre o particular e o geral, entre as personalidades e os processos sociais, é uma tarefa difícil. Mas pode ser realizada. Marx se ocupou deste aspecto de forma brilhante em “O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte”, onde mostra como, sob certas circunstâncias históricas, uma mediocridade, como o homem chamado por Victor Hugo de Napoléon le Petit (Napoleão, o Pequeno), pôde chegar ao poder. A forma precisa como o individual atua com os processos objetivos nunca foi examinado com tanto esforço.

Determinou a personalidade de Stalin o destino da URSS? Basta colocar a pergunta para ficar exposta sua total falsidade. A derrota da revolução europeia significou que o regime de democracia operária estabelecido pela Revolução de Outubro não podia sobreviver. Uma vez que a revolução ficou isolada em condições espantosas de atraso econômico e cultural, a ascensão da burocracia era inevitável, com ou sem a presença de Stalin. Mas, pode-se dizer que a natureza particularmente horrível do regime, seus métodos sádicos e a escala monstruosa do terror foram determinados em grande medida pelo caráter de Stalin, sua paranoia e sua insaciável sede de vingança.

O Stalin, de Trotsky, é um fascinante estudo da forma como o caráter peculiar de um indivíduo, suas características e psicologia pessoais interagem com os grandes acontecimentos. Por essa mesma razão teve seus detratores. Houve muitas tentativas de apresentar o Stalin como uma obra motivada pelo desejo de Trotsky de desacreditar o seu inimigo do Kremlin ou, pelo menos, como uma explicação em que os fatores de índole pessoal ou psicológica se prestam a um estudo objetivo impossível. Tal julgamento superficial comete uma grave injustiça ao autor. Trotsky já se antecipava a estas críticas quando escreveu:

“O tema de que agora me ocupo é único. Portanto, sinto que tenho o direito de dizer que nunca contemplei um sentimento de ódio em relação a Stalin. Em certos círculos se disse e escreveu muito sobre meu suposto ódio a Stalin que, pelo que parece, me enche de julgamentos sombrios e problemáticos. Posso apenas dar de ombros em resposta a tudo isto. Nossos caminhos se dividiram há tanto tempo que qualquer relação pessoal que pudesse haver entre nós há já muito tempo se extinguiu completamente. De minha parte, e na medida em que eu seja a ferramenta de forças históricas que me são alheias e hostis, meus sentimentos pessoais em relação a Stalin são indistinguíveis de meus sentimentos em relação a Hitler ou ao Mikado japonês” (Stalin, da atual edição, Capítulo 14: “A Reação Termidoriana”, seção: “A vingança da história”).

É uma característica dos historiadores acadêmicos ocultarem-se por trás de uma fachada do que se supõe ser a imparcialidade. Mas, de fato, todo historiador escreve a partir de um ponto de vista particular. Isto é particularmente evidente nas histórias da Revolução Russa – ou mesmo da Revolução Francesa, para o caso. Como prova disso, podemos assinalar a inundação de livros “especializados” sobre a Revolução Russa que se produzem a cada ano, particularmente a partir da queda da União Soviética, que pretendem aportar a prova irrefutável de que Lênin e Trotsky eram monstros sedentos de sangue e que a União Soviética não logrou nada, exceto a KGB e o Gulag.

Basta arranhar a superfície para que a máscara da objetividade acadêmica deslize, revelando as feias e retorcidas características de um fanático anticomunista. Em contraste com a hipócrita pseudo-objetividade dos historiadores acadêmicos, Trotsky se aproxima da questão da contrarrevolução estalinista como um Marxista e um revolucionário. Existe uma contradição entre ter um interesse apaixonado por mudar a sociedade e, ao mesmo tempo, ser capaz de uma valorização objetiva dos acontecimentos históricos e do papel dos indivíduos no processo histórico? Deixemos que Trotsky responda por si mesmo:

“Aos olhos de um filisteu, um ponto de vista revolucionário é praticamente equivalente à ausência de objetividade científica. Acreditamos em todo o contrário: somente um revolucionário – sempre, é claro, que esteja equipado com o método científico – é capaz de pôr a descoberto a dinâmica objetiva da revolução. A apreensão do pensamento em geral não é contemplativa, mas ativa. O elemento da vontade é indispensável para se penetrar nos segredos da natureza e da sociedade. Da mesma forma que um cirurgião, de cujo bisturi depende uma vida humana, distingue com sumo cuidado entre os diferentes tecidos de um organismo, um revolucionário, se tem uma atitude séria para com sua tarefa, está obrigado com toda a consciência a analisar a estrutura da sociedade, suas funções e seus reflexos” (Trotsky, A revolução chinesa, 1938).

Sobre a nova edição

Ninguém pode reclamar do fato de se haver produzido a edição definitiva do Stalin. Era uma obra inacabada no dia do assassinato de Trotsky e permanecerá inacabada para sempre. O que podemos dizer sem temor à contradição é que esta é a versão mais completa do livro que já foi publicada.

Houve outras edições do livro que nunca foram satisfatórias e algumas eram inclusive enganosas. Para a preparação deste projeto comparamos as traduções de outras versões. Todas elas eram inadequadas de diferentes formas. Reunimos todo o material que se encontrava disponível a partir dos arquivos de Trotsky em inglês e o complementamos com material adicional em russo.

A nova edição contém umas 86.000 palavras adicionais. Isto supõe um aumento de, aproximadamente, trinta por cento sobre o livro em seu conjunto. Mas, na segunda parte, onde se encontra quase todo o novo material, o texto foi aumentado em, aproximadamente, uns noventa por cento.

Se Trotsky não tivesse morrido é claro que ele teria produzido uma obra infinitamente melhor. Ele teria feito uma seleção rigorosa do material bruto. Como um escultor consumado, ele o teria polido e voltado a polir, até que alcançasse as alturas deslumbrantes de uma obra de arte. Não podemos esperar alcançar tais alturas. Não sabemos que material o grande homem teria selecionado ou rejeitado. Contudo, sentimos que estamos sob uma obrigação histórica, pelo menos de pôr à disposição do mundo todo o material que está disponível para nós.

Apesar de todas as dificuldades, este trabalho foi de um grande valor educativo. Encontramos em muitas peças que foram descartadas como coisas sem nenhum interesse uma visão fascinante do pensamento de Trotsky. Igual aos últimos trabalhos de Marx, Engels e Lênin, os escritos dos últimos anos de Trotsky são o produto de uma mente madura que era capaz de dispor de toda uma vida de rica experiência. De particular interesse são suas observações acerca da dialética e da teoria marxista no Apêndice “Stalin como teórico”, as quais, na medida que eu saiba, nunca foram publicadas anteriormente.

Ao colocar à disposição, pela primeira vez, uma grande quantidade de material que foi excluída arbitrariamente do Stalin e que permaneceu escondida em caixas poeirentas durante três quartos de século estamos pagando uma dívida com um grande revolucionário e proporcionando, ao mesmo tempo, uma grande quantidade de material novo e valioso para a nova geração que está lutando para encontrar as ideias e o programa para mudar o mundo. Este é o único monumento que ele teria almejado.

— Londres, 18 de maio de 2016


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