Marxismo, arte e o artista

O artista que não reconhece os mecanismos da ideologia é cúmplice de um sistema opressor. A partir de uma perspectiva socialista, qual deve ser o papel de um artista informado e consciente?

Jeanne Willette 16 ago 2017, 12:07

Em sua antologia Marxismo e Arte, Maynar Solomon conta que embora Karl Marx e Friedrich Engels tivessem interesse em artes literárias no início de suas respectivas carreiras, ambos estavam distraídos pela filosofia. Como resultado, “Não existe uma estética marxista ‘original’ para marxistas posteriores aplicar. A história da estética marxista tem sido a história do desdobramento de possíveis aplicações das ideias e categorias marxistas à arte e à teoria da arte”. O mesmo pode ser dito sobre a história da arte, que também aplicou a ideia marxista de uma crítica do sistema social e econômico ao utilizar a análise marxista de uma obra de arte para mostrar os mecanismos através dos quais o modo de produção interfere no artista. Em oposição aos fragmentos escritos pelos dois autores, o que é mais interessante é como as ideias de Marx podem ser usadas em relação à arte.

De acordo com Karl Marx, a arte é parte da superestrutura e é inescapavelmente determinada pelo modo de produção e pelo sistema econômico. O capitalismo produz mercadorias, cada uma delas é um “fetiche”, ou um objeto com valor abstrato. Fetichismo é a projeção da natureza humana e dos desejos humanos em um objeto externo. Se aceitarmos a proposição de que a arte é transformada em mercadoria (e a arte deve ser uma mercadoria em uma sociedade capitalista), logo, certas consequências decorrem de tal afirmação. Todos os artistas são produtores culturais que trabalham em um sistema capitalista em benefício do mercado. Todo o tipo de arte feito dentro desse sistema é uma mercadoria para ser comprada e vendida como um objeto de desejo, objetos de desejos esses sobre os quais os sentimentos humanos são projetados. A obra de arte em uma sociedade capitalista deve ser um objeto consumível e, assim sendo, também deve ser um objeto de desejo, um fetiche.

A ideologia do mercado, o lugar onde as mercadorias são compradas e vendidas, é uma experiência viva na consciência de todo artista. A mente do artista é imputada com História e não pode escapar de seu próprio tempo. O marxismo oporia a tese de uma vanguarda transcendente que se projeta no futuro e se destaca da sociedade. De um ponto de vista marxista, a arte se refere sempre sobre a sociedade e o artista é sempre parte da cultura, a arte nunca é independente ou absoluta.

Pelo fato do artista ter sido abandonado por Deus, a arte moderna pode ser apenas irônica, no sentido sugerido por Friedrich Schiller. Na contemporaneidade, a arte moderna pode apenas exibir a alienação humana. Com nada mais para simbolizar, o simbolismo dá lugar à alegoria. O uso de símbolos comunica diretamente um sentido, mas a alegoria é um agrupamento ou uma coleção indireta de sentidos. Como resultado da quebra da união de humanos com um senso de espiritualidade, a arte moderna é sempre indireta e referencial porque ela está ligada à ideologia capitalista, que é meramente um pensamento burguês, uma ilusão que esconde os fatos sobre os quais as crenças são construídas.

Em seu ensaio escrito em 1939 “Arte de vanguarda e o kitsch”, o escritor de arte norte-americano Clement Greember propôs que o socialismo promoveria a liberdade que o artista de vanguarda necessita, já que o sistema capitalista recompensa o artista por responder às demandas da sociedade, que está, por sua vez, sob a influência da ideologia. A classe dominante produz uma ideologia em seu próprio benefício, mas avança a ideologia de modo a fazê-la parecer “real”. Nós nos referimos a essa operação de reificação como efeitos naturalizantes. Longe de ser “natural”, o que a ideologia constrói, sejam elas crenças ou a própria arte, é cultural. É através dos mecanismos de ideologia que o que é cultural se torna natural.

Relações sociais são presumidamente “naturais” e, consequentemente, as pessoas não reconhecem ou nem mesmo percebem que os meios pelos quais elas interagem são “culturais”. A ideologia permanece invisível. Uma obra de cultura visual expressa a ideologia predominante, não apenas no que se refere ao que a obra de arte expressa, mas também ao que a obra de arte não diz. A arte possui a marca da história de seu próprio tempo e não é nem atemporal nem transcendente. Longe de ser livre ou independente, o artista de vanguarda é reconstruído, a partir de uma perspectiva marxista, é um intelectual servo do sistema. Como Marx observou:

“A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias. (…) [os intelectuais] vivem apenas enquanto eles encontram trabalho, e (…) encontram trabalho apenas enquanto os seus próprios trabalhos valorizam o capital. Esses trabalhadores, que devem se vender eles próprios por etapas, são uma mercadoria como qualquer outro artigo do comércio, e estão, consequentemente, expostos a todas as vicissitudes da competição e a todas as flutuações do mercado (…)”1

Longe de ser um rebelde, o artista é um trabalhador cultural sem uma “auréola”. O artista que não reconhece os mecanismos da ideologia é cúmplice de um sistema opressor. A partir de uma perspectiva socialista, qual deve ser o papel de um artista informado e consciente? De acordo com Auguste Comte, a arte se erige do estudo da natureza e deve facilitar a contemplação de valores morais. A oposição de Comte, para quem a arte é a representação ideal da realidade, é essencialmente a perspectiva acadêmica que prevalecia em sua época. Escrevendo décadas depois, Proudhon sugere um papel mais específico para o artista em Du Principe de l’art (Do Princípio da arte) de 1865. O realismo e o naturalismo ultrapassaram o Romanticismo nos anos de 1860 e Proudhon viu a arte como possuidora de um papel social que deveria subordinar a arte a fins políticos e sociais. O que distingue a posição de Proudhon é que esses “fins” seriam aquelas da crítica da sociedade e de suas práticas injustas.

Agindo como um crítico ou uma crítica de seu próprio tempo, o ou a artista se torna um(a) profeta para a humanidade que deve condenar a sociedade presente e que pode antever um futuro melhor. De um ponto de vista socialista, o artista é um servo da sociedade que possui o dever moral de revelar os mecanismos da ideologia apontando a verdade. Se não é correto afirmar que todos os artistas e escritores realistas eram socialistas, é correto dizer que a missão dos realistas na França e na Inglaterra era mostrar a vida contemporânea. Revelações da realidade dos tempos modernos seriam comumente consideradas como manifestações políticas, justamente pelas forças que funcionam melhor quando essas “verdades” eram mantidas veladas pela ideologia.

(Publicado originalmente no portal Art history unstuffed. Tradução de Pedro Micussi.)


Nota do tradutor

1 Marx e Engels, Manifesto Comunista, 1848


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