Saúde Mental na quarentena: o autocuidado e o cuidado como prática de coletividade

A piora no estado de saúde mental em geral da população vem não apenas da quebra de rotina e do isolamento, mas sobretudo da incerteza material.

Luana Alves 9 abr 2020, 14:15

São profundas as mudanças na vida econômica, social e afetiva causadas pela pandemia do Covid-19. Não é exagerado dizer que a nossa geração, ou uma parte significativa dela, ficará definitivamente marcada pela experiência de viver de forma aguda um risco epidemiológico grave, de temer seriamente pela vida de seus familiares mais vulneráveis, de aderir a um isolamento social inédito. As vozes consequentes do campo da Ciência, da Saúde e da Saúde Pública, carregadas de responsabilidade social e de rigor técnico, se  tornam, mais do que nunca, um elemento orientador e mesmo apaziguador para nossas rotinas rompidas. Nesse cenário, é bastante positivo que intelectuais e profissionais da área de saúde mental se disponham a ir a público falar da necessidade das práticas de autocuidado num momento em que o isolamento, a quebra da rotina e das expectativas já estabelecidas para o futuro geram angústia e ansiedade generalizada. A suspensão de organizadores da vida neste momento não é apenas uma questão de quebra de rotina, porém. É importante nos atermos a isso, para não cair no erro de procurar soluções individuais para problemas de ordem coletiva. Ao mesmo tempo que a angústia é gerada pela falta de marcadores diários que organizam o cotidiano, como sair de casa todos os dias, tomar café naquele local, voltar para casa em certo horário, não podemos entender esse processo de forma isolada. A piora no estado de saúde mental em geral da população vem não apenas da quebra de rotina e do isolamento, mas sobretudo da incerteza material, da insegurança financeira profunda, e do caos informacional. A incerteza material não é determinante novo na vida da população brasileira, majoritariamente pobre, negra  e sub-empregada. Mas essas incertezas e inseguranças se aprofundam de forma aguda com a pandemia, circunstância que chegou muito repentinamente para a maioria da população. 

Um artigo divulgado pela Revista Lancet no dia 26 de fevereiro aborda os efeitos psicológicos da quarentena. A Lancet é uma revista britânica referência mundial no campo da Medicina, e um dos mais antigos periódicos científicos do mundo.  O artigo revisa 24 estudos anteriores que pesquisaram o tema nas ocasiões de crise da SARS, do H1NI1, do Ebola, e outras epidemias relativamente recentes. É interessante discutir aqui alguns de seus resultados, à luz do entendimento que a maneira como se vive, se trabalha, se adoece e se cura é sobretudo determinada pela posição dos indivíduos na sociedade de classes, e que a resposta aos adoecimentos sofridos individual ou  coletivamente passa por questionar esse sistema econômico. Sociedade de classes e também estruturada pelo racismo e pelo patriarcado. Uma das primeiras conclusões do artigo é que, durante e após a quarentena, surgem “sintomas” relacionados ao chamado estresse pós-traumático, que podem incluir medo, raiva, luto, torpor, confusão, insônia induzida por ansiedade, e comportamentos compulsivos (como lavar as mãos constantemente, e passar a evitar aglomerações por um longo tempo). Esse efeito não se daria de forma uniforme: pessoas que já sofriam de adoecimentos psíquicos anteriores, e profissionais da saúde, estariam mais vulneráveis. Existiriam também fatores estressores que podem piorar os efeitos durante a quarentena: duração longa de isolamento, frustração e tédio, informações inadequadas e mantimentos inadequados. O óbvio se coloca: o central da tarefa de manter a saúde mental das pessoas em quarentena passa por garantir que se tenha acesso à renda, à segurança alimentar e financeira, e a informações corretas. Quando nós, da área de saúde, falamos da relação entre estresse e falta de dinheiro, ou mesmo estresse e pobreza crônica, nem sempre nos atentamos à profundidade do que estamos falando. Não é um estresse pontual, que se manifesta de forma aguda. Também não é simplesmente fruto da frustração de desejo, que todos devemos aprender a lidar. É um lugar de sofrimento permanente, que independe das ações, da capacidade de trabalho, ou mesmo dos recursos psíquicos do indivíduo. É um lugar de precariedade permanente que não deveria existir, e só existe pois estamos numa estrutura econômica fundada sobre a exploração e a desigualdade, em que uma fatia da sociedade deve necessariamente viver em condições ruins, para que uma absoluta minoria concentre riqueza.  O sofrimento causado por estar nesse lugar não é pontual, e “estresse” talvez não seja a melhor palavra descrevê-lo. Os sentimentos como raiva, medo, confusão, torpor, causadas por insegurança e injustiça econômica, leva ao comprometimento da capacidade de viver e planejar a vida de forma plena, de se enxergar como sujeito social e histórico, de fazer projetos e planos de longo prazo, de compreender as próprias capacidades laborais e criativas e usufruir plenamente delas. Em resumo, a injustiça econômica, e a insegurança financeira, a preocupação com o que se vai comer amanhã não apenas leva ao estresse pontual, mas causa prejuízo em saúde mental permanente para grande parte da população. 

A pandemia causada pela Covid-19 acentua esses processos, e revela como a maneira que organizamos globalmente a vida, o trabalho e a produção não é capaz de responder a uma pandemia que pode comprometer a vida de milhões. Por quê é tão polêmico um debate sobre renda mínima digna em um contexto que é absolutamente necessário que se diminua a circulação social? Por quê uma epidemia local se transformou em uma pandemia tão rapidamente?  Porque os efeitos psicológicos da quarentena, que podem ser diminuídos com medidas orientadas pela coletividade, não são considerados uma prioridade para os governos? Não basta que se oriente às pessoas que reorganizem sua rotina e tenham práticas de autocuidado como meditação, exercícios físicos e leituras, ainda que isso seja importante. Não há possibilidade de diminuir os prejuízos à saúde mental sem que haja, como coloca o artigo, garantia financeira, e garantia de informações claras e rápidas. 

Esse outro elemento colocado pelo artigo, a garantia de informações claras e rápidas, também é comprometido por uma estrutura desigual e exploratória. Parte da população não tem acesso, ou às informações claras, ou à educação formal que permita compreender e se apropriar dessas informações. No caso do Brasil, o governo federal, em especial no seu núcleo mais ideologicamente reacionário, age para confundir e falsear. O Presidente Jair Bolsonaro chegou a falar que se trata de uma “gripezinha”, distorceu falas de autoridades públicas da Saúde, espalhou inverdades sobre medicamentos que curariam a Covid-19. Seu exército bem pago dos aplicativos de mensagens segue disparando notícias falsas ou distorcidas, na tentativa de proteger a imagem do governo durante a crise. Crise da qual esse governo obviamente não têm interesse nenhum de proteger a população brasileira e seu bem estar. Os estados de medo, confusão, pânico e torpor que se manifestam de forma individual tem relação direta com isso. Em especial para idosos, ou pessoas com pouco acesso ao chamado letramento digital, mais propensas a acreditar nas mais variadas notícias e informações inadequadas. 

A negligência e descompasso do governo também se choca com mais um elemento trazido pelo artigo: a questão da duração da quarentena. Segundo os autores, para diminuir os danos na saúde mental, deve-se procurar quarentenas curtas, o máximo posśivel respeitando-se as recomendações epidemiológicas. Também se deve evitar a qualquer custo a extensão desse período. Melhor orientar claramente a população para uma quarentena de três semanas, por exemplo, do que impor uma de 10 dias e estender por mais uma semana. O governo reluta em orientar uma quarentena completa de duração adequada, e o desalinho entre a presidência e os governos estaduais e municipais apenas atrasa o isolamento que deve ser feito, causando ainda mais dúvidas na população. A falta de testes, reflexo do desmonte do SUS, em especial da Vigilância em Saúde, não apenas gera subnotificação, mas causa a necessidade de estender o tempo de quarentena, pois não se tem um mapeamento de quais são e onde circulam os infectados. 

A frustração e o tédio na quarentena também são apontados como estressores, e medidas que possam diminuir a ansiedade e aumentar a comunicação, como acesso universal à internet de qualidade, são protetoras da saúde mental. Essas medidas passam por redefinições pessoais mas principalmente por estrutura social, é importante lembrar. É interessante refletirmos sobre uma contradição colocada pela estrutura capitalista global: as grandes aglomerações urbanas, as megalópoles, em que milhões de pessoas convivem, uma maioria em adensamentos de moradia precária, ao potencializar a capacidade de contágio do coronavírus, causa mais afastamento entre nós. A irracionalidade das megalópoles se revela. Ao mesmo tempo que nos reúne, nos afasta. Se há algo possível de ser generalizado como universal na humanidade, é que somos sociais e interpessoais. Nos fazemos a partir do outro, somos porque somos em relação. A nossa aproximação nas grandes aglomerações urbanas, porém, se dá a favor de um capital ilógico e insustentável, que cria desigualdades, angústia, isolamento e riscos sanitários. 

Um último elemento trazido pelo artigo nos dá uma boa pista do rumo que podemos tomar: segundo os autores, ainda que não tenha sido possível um estudo que comparasse isoladamente a diferença na saúde mental entre os que entraram em quarentena de forma obrigatória e os que entraram de forma voluntária, várias publicações demonstravam que os sintomas de estresse, ansiedade, raiva e medo associados à quarentena eram reduzidos quando as pessoas sabiam que sua atitude eram significativas para preservar a vida do pŕoximo, em especial dos mais vulneráveis. Também havia diminuição do estresse quando socialmente esse esforço essa reforçado, com as mídias e as autoridades públicas agradecendo publicamente os que estavam em quarentena. Essa conclusão nos dá o princípio de algumas respostas: enquanto o governo brasileiro e parte da mídia não reconhecer e valorizar publicamente os que estão em quarentena, a angústia para parte da população não irá ser mitigada. Também nos diz que o objetivo das práticas de autocuidado – diminuição dos níveis de angústia, estresse, ansiedade – também é atingido quando se sabe que sua ação preserva a vida de outras pessoas. É importante que continuamente, nos lembremos disso. Também nos aponta que a resposta para parte da angústia não está apenas nos cuidados centrados em si. Exercer  solidariedade ativa, como por exemplo por meio de campanhas de cuidado coletivo, campanhas financeiras, campanhas de arrecadação de mantimentos, compreendendo como o capitalismo e suas crises diminuem o valor das vidas periféricas, é importante. É reconhecer também que a resposta passa centralmente por engrossar o caldo social de resistência ao “andar de cima”, representado pelo governo Bolsonaro e pelos empresários megamilionários, que continuamente impõem ao povo um programa econômico e social que coloca o lucro de alguns acima da vida da maioria. O neoliberalismo não é apenas uma reorganização econômica das forças produtivas a fim de acirrar a exploração sobre os trabalhadores: também é uma forma de sociabilidade, que induz ao individualismo e a estados afetivamente caóticos. Muitos têm colocado que a crise do Covid-19 pode deixar como legado formas diferentes de se relacionar socialmente, com o cuidado, a solidariedade e a coletividade sendo tomados como valores mais centrais. É imprescindível que o questionamento à ordem econômica global que gera o individualismo e a injustiça seja parte dessa possível mudança nas formas de cuidar de si e dos outros. 

Referências

Magalhães B. Novo coronavírus: a necessidade de uma resposta dos povos.

Gonçalves, NP; Alves, L; Martins, J; Minowa, E; Pennachioni, N; Couto, V. Coronavírus: A falência do sistema capitalista e a defesa radical do SUS

Brooks, SK; Webster, RK; Smith, LE; Woodland, L; Wessely, S; Greenberg, N; Rubin, GJ. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. Lancet 2020, 395.


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