São Paulo não se vende! Por que somos contra privatizações?

Em meio à ofensiva privatista do prefeito de São Paulo, os autores desmistificam a privatização a partir de conceitos basilares da teoria marxista.

Gustavo Rego e Sâmia Bomfim 24 jul 2017, 17:01

O prefeito de São Paulo, João Dória Jr., apresentou à câmara de vereadores de São Paulo um projeto de privatização de equipamentos públicos fundamentais para o patrimônio da cidade: parques (como o Ibirapuera), praças, Pacaembu, Interlagos, Anhembi, Mercadões, bilhete único e alguns terrenos. O projeto foi aprovado em primeira instância ao apagar das luzes: na exata véspera do recesso parlamentar, às 3:30 da manhã, após horas de negociações entre prefeitura e vereadores. O rito perverso foi sacramentado com uma cínica “selfie” em que sorridentes vereadores seguravam um cheque imenso, como daqueles programas de auditório. O projeto é vago e contém inconsistências que colocam sob suspeita a lisura do processo. Essa foi a razão pela qual a bancada do PT alegou votar contra o projeto, fato, aliás, que até mesmo alguns vereadores da bancada tucana reconheceram, apesar de terem votado a favor mesmo assim. Nós concordamos que a proposta de Dória esteja tecnicamente mal acabada, mas temos motivos mais profundos para nos opor não apenas a este projeto específico, mas, por princípio, a qualquer forma de privatização. Neste texto, pretendemos expor esses motivos.

Primeiramente, por que defendemos os serviços públicos? A esfera pública é uma proteção contra a exploração e a ganância desenfreada do capitalismo. Pois, a despeito dos alegados princípios “sustentáveis” ou “socialmente responsáveis” que o marketing do capitalismo “humanizado” apregoa, o fim que realmente motiva qualquer empresa privada é o lucro, mesmo que isso signifique achatamento dos salários, intensificação da jornada de trabalho, destruição do meio ambiente, etc. Dessa forma, os equipamentos públicos geridos pelo Estado democrático são o meio de garantir um mínimo patamar civilizatório, independentemente (ou, ao menos, não completamente dependente) dos interesses privados. Em outras palavras, sustentam o mínimo de bem estar social — como o acesso a educação, saúde, cultura, lazer, etc. — a todos, inclusive para aqueles que não podem pagar, mesmo que isso não seja lucrativo. Mas, mais do que isso, os direitos sociais são uma forma pela qual a classe trabalhadora, por meio de sua luta, pode reapropriar-se de parte da mais-valia, isto é, daquela parcela de valores gerados por seu trabalho que é apropriada pelos capitalistas. Quando os trabalhadores lutam e conquistam, por exemplo, uma praça pública, isso significa que uma parte do valor excedente gerado por seu trabalho, que a princípio seria apropriada por capitalistas, é expropriada pelo Estado, por meio dos impostos, e retorna aos próprios trabalhadores na forma de um serviço, neste caso, o lazer. Parte da riqueza gerada pelos produtores retorna a eles. Portanto, os equipamentos públicos e os direitos sociais são resultado legítimo da luta dos trabalhadores.

Dito isto, deve estar relativamente claro que as privatizações são um ataque da classe dominante a essa ferramenta pela qual os trabalhadores fazem dirimir parte de sua exploração — manobra decisiva no contexto de crise econômica. Esse processo pode ser melhor entendido à luz do conceito de neoliberalismo. Esta corrente política e ideológica já existia teoricamente no pós guerra nas obras de Friedman e Hayek, mas ganhou corpo a partir dos governos de Reagan e Thatcher e consolidou-se como corrente hegemônica internacionalmente entre os anos 1980 e 1990. A retórica neoliberal sustenta — tendo como base o desmonte dos estados soviéticos e a crise de estagflação supostamente gerada pela política socialdemocrata de salário mínimo elevado, pleno emprego e direitos sociais — que um Estado “grande demais” e a influência “nociva” dos sindicatos seriam produtores de estagnação econômica e inflação. Sendo assim, seria necessário manter um patamar “saudável” de desemprego e combater a elevação dos salários. Além disso, os equipamentos públicos promoveriam uma elevada carga tributária, o que diminui a margem de investimento e provoca inflação, sendo necessário privatizar o patrimônio público. Finalmente, a globalização e a especulação financeira seriam necessárias ao crescimento econômico, cabendo ao Estado eximir-se de qualquer regulamentação. Tudo isso sedimentado na concepção reificada1 de que “não há alternativa”2 às férreas leis da Toda-Poderosa “economia” (capitalista, leia-se). De acordo com esta concepção, a busca pela felicidade e bem estar deve ser ação exclusiva dos indivíduos, da iniciativa privada, pois possui a eficiência necessária de quem, diferente da esfera pública, não se “distrai” com objetivos “políticos” escusos (como o “populismo”).

Em síntese, os interesses declarados do neoliberalismo são diminuição do Estado e eficiência. No entanto, esses interesses são uma farsa. O neoliberalismo na realidade procura aumentar o controle direto do capital sobre o Estado e, por meio disso, a taxa de mais-valia absoluta, ou seja, aumentar a parcela do excedente de produção expropriada pelos capitalistas não pelo aumento da produtividade mas pela simples intensificação da exploração do trabalho. Não é por acaso que o neoliberalismo tenha ganhado corpo justamente quando o movimento de expansão da economia iniciado no pós guerra, os tais “30 gloriosos” ou “anos dourados”, dava seus sinais de esgotamento. Na verdade, qualquer capitalista consciente sabe que necessita do Estado não apenas para salvaguardar a propriedade privada, promover a expansão de mercados por meio da guerra, garantir a hegemonia burguesa, etc. mas como garantir seu ritmo normal de acumulação. Vejamos que, por exemplo, um dos ícones do neoliberalismo, Ronald Reagan, nunca “diminuiu o Estado”, mas, ao contrário, aumentou a demanda deste sobre o complexo bélico-militar, inclusive com endividamento público. Ou ainda, que as relações de trabalho “modernas” que a burguesia brasileira atualmente tanto deseja necessita do braço armado do Estado para impor, pela força da lei, uma “reforma trabalhista” que garanta o arrocho salarial, o desemprego e a precarização. Nada torna isso mais evidente do que o lobby por meio do qual as empresas privadas controlam diretamente as políticas públicas, seja em sua forma legalizada, como ocorre nos EUA, ou na forma mais descarada das propinas e investimentos de campanha tal qual revelados nas operações Lava-Jato e Carne Fraca. Portanto, o que os neoliberais de fato desejam não é menos Estado, mas menos interesse público, menos controle e usufruto da classe trabalhadora.

A privatização, portanto, é a intensificação disso. Trata-se de ampliar o terreno de acumulação do capital submetendo os direitos sociais à sua lógica. “Do gado se faz sebo e das pessoas dinheiro”3 — da saúde, educação, infraestrutura, numa palavra, o bem estar social, se faz lucro. Mais ainda, bloqueia-se o mecanismo supracitado por meio do qual a classe trabalhadora reapropria-se de parte da mais-valia. Desmonta-se, assim, mais um elemento da retórica neoliberal: a eficiência. Os neoliberais argumentam que os equipamentos públicos oneram excessivamente o Estado e que sua burocracia torna os serviços necessariamente mais lentos e de pior qualidade. Mas por eficiência compreende-se, tal como defendido em manuais de administração e gestão tão referenciados pelos propagandistas desta ideologia, aumento de bens e serviços gerados em relação a investimento em trabalho humano e recursos financeiros. Ora, uma simples dedução lógica nos leva a perceber que privatização significa aumento dos custos já que prevê não apenas compensação do investimento mas também o lucro, ou seja, menos eficiência do ponto de vista do Estado e do interesse público. Mais ainda, se o que rege a empresa privada é a lógica da eficiência (para si própria), isso significa que os serviços sociais por ela administrados não terão o máximo de qualidade pelo menor custo ao público e ao Estado, mas, ao contrário, um patamar mínimo de qualidade pelo preço mais alto possível.

Vejamos alguns exemplos disso.

O subsídio que a prefeitura de São Paulo encaminha às empresas responsáveis pelo transporte público na capital é proporcional ao número de passageiros transportados e não ao número de quilômetros rodados pelos ônibus. Isso significa que, para estas empresas, é mais racional elevar o número de passageiros por veículo, aumentar o preço das passagens e concentrar suas atividades nas regiões centrais. Para a população, o resultado disso é bem conhecido: ônibus lotado e muitas horas perdidas em deslocamento. Para as empresas, lucros astronômicos. Infelizmente, a CPI que destinava-se a abrir a “caixa preta” dos transportes de São Paulo terminou em pizza em 2014. Mas estimativas do Fórum de Transparência e Controle Social de São Paulo e do Movimento Passe-Livre indicam estes lucros podem estar muito acima dos limites legais. Apenas observando os dados constantes nas planilhas de custo das empresas de transporte disponíveis nos arquivos da Secretaria de Transportes é possível concluir que, entre 2011 e 2012 (justo antes dos multitudinários protestos que tiveram como estopim a luta contra o aumento da tarifa), as empresas de transporte obtiveram crescimento em seus lucros na ordem de 141% a 2056%!

Já o caso da “privataria tucana” (como bem denominou Amaury Ribeiro Jr. em seu livro homônimo as privatizações realizadas pelos governo federal de FHC e governos estaduais de José Serra e Mário Covas, em São Paulo) comprova que as privatizações não desoneram o Estado, mas, ao contrário, fazem com que ele deixe de arrecadar recursos importantes. Em meados dos anos 1990, FHC e outros políticos de direita diziam que a Vale do Rio Doce (para tomarmos apenas o exemplo mais conhecido e absurdo) só dava prejuízo, era uma péssima aplicação financeira, e que sua venda faria o Estado deixar de gastar dinheiro com ela para poder investir em saúde e educação. Uma constatação simples comprova a falácia do argumento: em toda a história da companhia, o governo investiu R$ 2,71 bilhões e retirou R$ 3,8 bilhões, ou seja, necessariamente houve lucro. Mas bastaria ainda uma questão lógica bastante trivial: se dá prejuízo, por que alguém seria maluco de comprar? Em 1997, a Vale do Rio Doce foi vendida por R$ 3,3 bilhões, mas, ato contínuo, seu valor de mercado foi revelado como sendo de aproximadamente R$ 100 bilhões. Além disso, a companhia foi vendida com R$ 700 milhões em caixa. Hoje a Vale é uma das maiores companhias de mineração do mundo. Aliás, a mesma cuja “eficiência” foi responsável recentemente pelo maior desastre ambiental de nossa história. Quantos bilhões estão deixando de ir para os cofres públicos para abastecer os bolsos de seus acionistas às custas de destruição de nosso meio ambiente?

A mesma lógica aplica-se ao caso do Pacaembu, um dos principais focos da privatização de Dória. Alega-se que o estádio é deficitário, no entanto, toma-se como referência apenas os dados mais recentes e não toda a série histórica — até 2014, o Pacaembu tinha superávit. Além disso, o seu rendimento poderia ser muito superior não fosse pela dívida ativa dos clubes, muitos dos quais já foram anistiados.

Mas, um neoliberal poderia nos interpelar: e o caso daqueles serviços em que fica flagrante a inépcia do Estado, como, por exemplo, saúde e educação? Nestes casos, não seria correto entregar esses serviços à iniciativa privada cujos serviços se provaram de melhor qualidade? Este pensamento não faz sentido pelo seguinte: se os serviços públicos estão precários, isso significa que os recursos do Estado estão escassos, e, portanto, deve-se aumentar o investimento neles e não retira-los absolutamente. O argumento neoliberal equivale a, por analogia, se uma criança apresenta notas baixas, tirá-la da escola já que não estuda o suficiente ao invés de motivá-la a estudar. É o velho movimento perverso, por vezes consciente, de sucateamento e privatização. Um determinado serviço público passa anos com investimentos abaixo do necessário. Em cima disso constrói-se a ideologia de depreciação da esfera pública. Finalmente, a concessão ao mercado aparece como a solução mágica que resolverá o problema que o Estado “não foi capaz” de resolver. Novamente tomando de exemplo São Paulo, as farmácias populares estão com uma crítica falta de medicamentos. Ao invés de resolver o problema do subfinanciamento, Dória propôs que a distribuição fosse feito pelas grandes drogarias como Onofre, Drogasil e Drogaria São Paulo.

Por essas razões somos contra o conjunto de privatizações de Dória. Elas retiram dos cidadãos paulistanos equipamentos públicos que oferecem lazer, cultura, esporte, espaços de convivência, direito à cidade e, importante frisar, receita pública. Mais ainda, elas são uma pequena parte do projeto de Dória e seus colegas burgueses de sair da crise pela intensificação da barbárie — retirada do mínimo patamar civilizatório precariamente conquistado pela classe trabalhadora brasileira — e mercantilização de todas as esferas da vida social. Seremos sempre defensores da ampliação dos bens e serviços públicos e dos interesses dos trabalhadores.

Para isso, o nosso mandato adotou duas iniciativas.

Primeiramente, um PDL (Projeto de Decreto Legislativo) que submete todo o plano de desestatização (alienação, concessão, parceria público-privada) a plebiscito popular. Por meio disso, pretendemos fazer com que o público de São Paulo decida sobre os rumos de seus próprios equipamentos públicos. Esta é uma forma de retirar do clube de milionários e seus asseclas legisladores literalmente a posse sobre o patrimônio da cidade.

Em segundo lugar, no dia 31/07, sexta-feira, a partir das 18h na Câmara de São Paulo, faremos uma audiência com a sociedade civil sobre este tema. Estarão presentes movimentos sociais em defesa da cidade, especialistas em gestão pública e quem mais estiver disposto a debater.

São Paulo não se vende!


Notas dos autores

1 “Reificação” (do latim, res = coisa, ou seja, “coisificação”) é um conceito cunhado pelo filósofo e revolucionário Georg Lukács e refere-se à prática de se tomar relações sociais como coisas naturalmente dadas e imutáveis capazes de controlar os seres humanos. Tem como base a noção de “fetichismo” apresentada por Karl Marx em O capital.

2 “There is no alternative” — velha máxima de Margareth Thatcher.

3 Esta frase, de Kürnberger em Cansado da América, é citada por Max Weber em sua construção do conceito de “espírito” do capitalismo: WEBER, Max. (2010) A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, p. 45


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