100 anos da Semana de Arte Moderna: um necessário exercício de Antropofagia

100 anos da Semana de Arte Moderna: um necessário exercício de Antropofagia

Centenário da Semana de Arte Moderna.

Iolanda Silva Barbosa 11 fev 2022, 19:34

 A muitos dos diversos episódios da cultura nacional e sua historiografia se confundem o som das vaias, das contestações. Como esquecer, por exemplo, Sérgio Ricardo quebrando seu violão ante a recepção ruidosa de seu arranjo no III Festival de Música Popular Brasileira (1967) ou o esbravejar de Caetano Veloso quando de sua apresentação de “É proibido proibir” no III Festival Internacional da Canção (1968)[1]?

 As vaias, no entanto, se num primeiro momento podem ser resposta a inovações estéticas, muitas vezes se converteram, ao longo dos anos, em laudatórias, na crítica e na academia. Foi o caso de muitas das manifestações relacionadas à Semana de Arte Moderna, que, há cem anos, no Theatro Municipal de São Paulo, se instalou, nas palavras de um de seus principais idealizadores, enquanto um “escândalo público permanente”, com vaias e acaloradas discussões pelas colunas de jornal. Ao longo das décadas, porém, passou-se a considerá-la um grandioso gesto de rebeldia ante a “ditadura do soneto” representada pelos parnasianistas (alcunhados ironicamente de “passadistas”): seus ousados participantes foram então revestidos de heroísmo e o evento foi consagrado como marco da cultura brasileira. 

 Por esse viés, vale resgatar o dito segundo o qual se reconhece a qualidade de uma árvore por seus frutos. Ironicamente, é este- representado em galhos retorcidos, raízes aparentes e frutos destacados em vermelho- o ícone central do cartaz de divulgação da Semana de Arte Moderna, criado por Di Cavalcanti. Assim, pensar o evento a partir de seus frutos, dados à época de sua ocorrência e posteriormente, talvez seja a melhor forma de avaliar sua real importância. Ademais, o exercício de antropofagia, defendido em uma das fases do movimento, se mostra necessário na própria análise do evento, tão mistificado ao longo das décadas.

 Como se sabe, a Semana se organizava em torno de um projeto que propunha, na ânsia por uma “atualização da Inteligência artística brasileira” e sob influência das vanguardas europeias, entre outros pontos, a pesquisa estética enquanto direito permanente. Assim, estava claro para seus artífices e patrocinadores o seu papel no sistema político, cultural e educacional, enquanto projeto e concepção de país. 

 O evento, no entanto, se observado mais de perto e sem os véus impressionáveis de parte da crítica responsável por canoniza-la, é muito mais contraditório do que o aparente. A princípio, por exemplo, o evento pode ser compreendido muito mais como um esforço, por parte de alguns artistas, por visibilidade, do que propriamente um ato, por si só e de imediato, revolucionário. 

 Ademais, ao se pensar em seus participantes, basta dizer que o próprio Plínio Salgado, ainda que discretamente, participou do evento e que parte do movimento posteriormente tendeu, abertamente, para um ufanismo com estreitas afinidades e referências fascistas[2]. Outro participante da Semana, Victor Brecheret, também seria hoje questionado, nas necessárias iniciativas de reflexão sobre os monumentos que exaltam o escravagismo e colonialismo, por seu Monumento às Bandeiras. Pesaria sobre ele algo como o chamado do vaiado Caetano de 1968- “Derrubar as prateleiras, /As estátuas, as estantes, / As vidraças, louças, livros… Sim.”

 Assim como a já cansada reflexão de Brecht, é infeliz a nação carente de heroísmo, seja na história política ou cultural, até porque bem se sabe que os heróis são majoritariamente construídos e monumentalizados pelos donos do poder. Assim, é inarredável reconhecer a forma como a Semana foi beneficiada pelo contexto social, político e econômico da época, haja vista o papel de mecenato da oligarquia cafeeira paulista e a forma como o evento se insere em seu projeto de poder [3].

 Além disso, com exceção da presença de obras de um Manuel Bandeira, por exemplo, e de uma suposta “descentralização intelectual” conquistada pelo movimento, poder-se-ia falar muito mais em uma Semana paulista de Arte Moderna do que propriamente um evento de caráter nacional, haja vista a repercussão negativa do evento também entre aqueles que já produziam arte de caráter essencialmente moderno antes de 22 e fora de São Paulo, e que foram posteriormente reduzidos a um “regionalismo”[4] ou relegados, em reconhecimento, à geração seguinte, a “de 30”[5].

 É importante reforçar, dessa forma, que a construção da aura mítica em torno da Semana se deve tanto a um esforço da imprensa quanto da academia. Se nos atentarmos às datas, se perceberá o quão representativo são os anos de 1932 e 1972, por exemplo. Se no primeiro, nos estertores da “Revolução” paulista, reinou um silêncio acerca do primeiro decênio da Semana, no segundo ela foi lançada a um primeiro plano ufanista, inserida nas comemorações do sesquicentenário da Independência, em plena Ditadura civil-militar[6]. 

 Ademais, a revisão crítica feita pelo próprio Mário de Andrade[7], o movimento, ainda que louvado como “criador de um estado de espírito nacional” e “primeiro movimento de independência da inteligência brasileira”, reconhecia suas limitações no que diz respeito sobretudo à falta de uma “atitude interessada diante da vida contemporânea”. Assim, segundo este que foi o principal nome em torno do projeto da Semana e que posteriormente desenvolveu amplo trabalho no Departamento de Cultura do estado de São Paulo, o Modernismo seria mais uma lição do que um exemplo a ser seguido. 

 Dos frutos dessa árvore e suas repercussões, vale apontar ainda que, nos dias de hoje, o movimento foi resgatado por Emicida, que, numa ação cheia de significados, ocupou o palco da Semana, o Theatro Municipal de São Paulo, para o primeiro show de seu disco AmarElo (2019). O rapper lembrou ainda, em seu documentário É tudo para ontem (2020), que o local também foi palco de outro marco: o ato fundacional do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. Além disso, surgem iniciativas interessantes como foi a Semana de Arte Moderna da Periferia, organizada em 2007, também em São Paulo, com a ideia de uma “antropofagia periférica”.

É interessante pensar também que, em sua proposta, forma e conteúdo, os ideais modernistas podem por vezes se chocar com o que é o Bolsonarismo e seu desastroso projeto de poder. Bolsonaro seria, por si só, uma representação do “antimoderno” [8] e, quiçá, “antimodernista”, não só pelo que nega e persegue na Cultura e nas Artes, suas inimigas de primeira ordem, mas por recusar-se, por exemplo, à crítica, fundamento central da modernidade desde o Iluminismo. Dessa forma, se radicalizadas, as propostas da Semana são ainda um ataque frontal ao projeto em curso no Brasil, no que diz respeito à construção de um verdadeiro patriotismo, que acolha em si a diversidade, os povos originários, e que a partir disso produza algo de genuinamente nosso, solapando a subserviência ao imperialismo, além de enxergar nas outras nações exploradas suas irmãs.

 A partir disso, reconhece-se a necessidade de um exercício crítico desafiador: o de “antropofagocitar”, nesse marco de 100 anos da Semana, os frutos produzidos por essa “árvore”, e analisar o que de fato tal evento representa em nossa história. A priori, ao assimilar as ideias gerais em questão, resta-nos reconhecer a atualidade dos anseios artísticos que inspiraram os modernistas de 22, na urgência de uma cultura capaz de se impor na diretriz dos rumos tomados pelo país, como um de seus melhores frutos, assim como os que herdaram, direta ou indiretamente, o espaço para cuja abertura contribuiu o movimento. 

 Para mais, cem anos depois, a tarefa ainda é refundar o Brasil, projeto em que a estruturação da cultura nacional é eixo fundamental. Afinal, ainda “é tudo para ontem”.

[1]  Parecem existir, de fato, certas afinidades entre o projeto artístico dos modernistas e o dos tropicalistas. Em alguns momentos, o álbum Tropicália (1968) de Caetano, por exemplo, parece ecoar, de certa forma, o Pau Brasil de Oswald de Andrade, modernista que foi também resgatado pelos tropicalistas em montagem feita, em 1967, por Zé Celso, de sua peça O rei da vela.

[2]  Vide o Movimento Verde-Amarelo e Escola da Anta.

[3]  Análise desenvolvida pela professora Maria Regina Machado em “Considerações sobre a formação do Modernismo Brasileiro”.

[4]  O que se deve, em grande parte, ao propósito de Gilberto Freyre e seu “Manifesto regionalista” (1926).

[5]  Exemplo disso é Graciliano Ramos, abertamente crítico ao movimento.

[6]  “Semana de Arte Moderna: o que comemorar?”, Maria Eugênia Boaventura.

[7]  “O movimento modernista”, em Aspectos da literatura brasileira (1943).

[8]  Caracterização já prevista pelo prof. Pedro Duarte em artigo para a Folha de S. Paulo de outubro de 2019 (“Brasil do futuro dorme no passado”).


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