O léxico de Gramsci: filosofia da práxis, Estado e sociedade civil, sociedade regulada

Dicionário com alguns dos conceitos de Antonio Gramsci elaborado a partir de curso sobre o pensamento do comunista italiano.

Alvaro Bianchi 28 nov 2017, 12:21

As notas que seguem devem ser lidas como verbetes de um dicionário. Elas têm um caráter fortemente didático. Nasceram em um conjunto de cursos e conferências que tiveram lugar ao longo do primeiro semestre de 2017 na Rede Emancipa, primeiro em São Paulo e, depois, em Porto Alegre. São uma introdução à trama conceitual dos Quaderni del carcere de Antonio Gramsci. Obviamente, elas carregam consigo uma certa maneira de ler o texto gramsciano. Metodologicamente estas notas valorizam o ritmo do pensamento, a história interna do texto e sua conexão com o ambiente político cultural de sua época. Politicamente elas destacam o caráter revolucionário do pensamento que tomam como objeto. O objetivo destas notas é, portanto, bastante modesto. Introduzir as ideias de Gramsci para um público formado por militantes políticos e apresentar uma maneira de ler seu texto.

Um dos problemas que a leitura dos Quaderni carrega consigo é o modo particular como eles foram produzidos. Escritos na prisão como um conjunto de anotações organizadas a partir de um programa de pesquisa “für ewig” (para sempre) tais cadernos foram produzidos em diferentes fases. A partir de 1929, Gramsci redigiu notas esparsas sobre diversos e heterogêneos temas – a economia italiana, a história dos intelectuais e da cultura, a filosofia da época, o americanismo, etc. Os cadernos nos quais essas notas estão inscritas são conhecidas como cadernos miscelâneos. Mais tarde, depois de maio de 1932, começou a redigir cadernos chamados de especiais, nos quais as notas precedentes eram agrupadas tematicamente, depois de revistas e reescritas, algumas vezes com importantes modificações. As notas de primeira redação são conhecidas pelos pesquisadores como textos A, a segunda redação dessas notas leva o nome de textos C e as notas que só tiveram uma versão, ou seja, que não foram reescritas, são os textos B.

Gramsci trabalhava com vários cadernos ao mesmo tempo e nos cadernos especiais às vezes pulava as primeiras páginas, deixando-as em branco para preenchê-las mais tarde. O processo de escrita era, portanto, muito complexo, mas ele não era arbitrário, obedecia a um plano. Por isso é tão importante reconstruir a história interna dos cadernos. Ela nos revela as intenções e os motivos de Antonio Gramsci, ou seja, permite uma compreensão mais rigorosa daquilo que ele estava querendo fazer com seu texto.

Filosofia da práxis

É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são ‘filósofos’, definindo os limites e as características dessa ‘filosofia espontânea’, peculiar a ‘todo o mundo’, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular, e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por ‘folclore’1.

De acordo com Gianni Francioni e Giuseppe Cospito este é o parágrafo que abre o Caderno 11, o mais sistemático e acabado daqueles que Gramsci escreveu prisão2. Esse caderno leva o título de Introdução ao estudo da filosofia, e é nele que se encontra a crítica ao manual de materialismo histórico de Nicolai Bukharin. O ponto de partida dessa Introdução está, portanto, em uma concepção ampliada de filosofia: “todos os homens são ‘filósofos’”, são portadores de uma filosofia espontânea. A utilização das aspas não é acidental. Ele revela o uso particular que Gramsci faz da noção de filosofia. A filosofia, em seu sentido estrito, é uma “concepção de mudo criticamente coerente”, uma “ordem intelectual”, “a crítica e a superação do senso comum”. Em seu sentido mais amplo a filosofia é toda concepção de mundo que se expressa; 1) na linguagem; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular.

A noção de filosofia elaborada por Gramsci tem um caráter fortemente político. Uma concepção de mundo criticamente coerente só poderia ser obtida por meio de uma “luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real”3. Naquele sentido estrito, ou seja, “como concepção de mundo criticamente coerente”, a filosofia é “uma ordem intelectual, o que nem a religião, nem o senso comum podem ser. (…) A filosofia é a crítica e a superação da religião e do senso comum e, nesse sentido, coincide com o ‘bom senso’, que se contrapõe ao senso comum”4.

A religião popular e o senso comum caracterizam-se pela ausência de unidade e coerência: “seu traço fundamental e mais característico é o de ser uma concepção (inclusive nos cérebros individuais) desagregada, incoerente inconsequente, conforme a posição social e cultural das multidões das quais é a filosofia”5. Esse caráter fragmentado e contraditório impede o senso comum de se tornar a base para uma vida autônoma e emancipada. O senso comum é o fundamento ideológico de uma vida subalterna na qual o grupo social encontra dificuldades para conseguir sua unidade e forjar uma concepção de mundo coerente e integral e uma norma de conduta adequada a ela (uma “religião” no sentido que Benedetto Croce atribuía ao termo, laicizando-o). Ancorada no senso comum a consciência apresenta-se “ocasional e desagregada” e a própria personalidade individual é “compósita”, existindo nela elementos de várias concepções de mundo, de sistemas filosóficos antagônicos, ou mesmo de diferentes épocas6.

A elaboração de um “grupo social homogêneo” tem, assim, como pressuposto a crítica do senso comum e a formação de uma “filosofia homogênea, isto é, coerente e sistemática”7. Enquanto essa crítica não conseguir se realizar e essa filosofia não surgir, predominarão sempre no novo grupo social, ou seja, nas classes trabalhadoras, concepções de mundo que amarram o novo ao velho. Os efeitos dessa consciência incoerente e amarrada ao velho mundo podem se manifestar na vida prática, na ação desses grupos subalternos ou dos seus indivíduos mais ativos (de sua vanguarda, ou mesmo no partido que organiza essas pessoas). A consciência que se manifesta na ação desses grupos ou indivíduos e une todos os seus membros com o objetivo de superar uma condição subalterna pode estar em contradição (e frequentemente está) com a consciência que se expressa no senso comum e vincula estes àquela condição subalterna. Esta consciência próxima ao senso comum:

[…] liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode até mesmo atingir um ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política8.

A crítica ao senso comum adquire, assim, um valor político. Trata-se de afirmar uma concepção de mundo própria, sistemática e coerente com uma atividade que vise transformar a realidade. Gramsci dá a essa concepção de mundo o nome de filosofia da práxis. Na reforma criptográfica que realiza nos Quaderni com o objetivo de fugir da censura, as expressões marxismo e materialismo histórico foram substituídas por filosofia da práxis. Não é, entretanto, uma simples troca de equivalentes. Gramsci se apropria da ideia de filosofia da práxis da obra de Antonio Labriola, Discorrendo di socialismo e di filosofia, e lhe atribui um sentido novo9. Com essa operação terminológica marcou seu afastamento do materialismo vulgar e do marxismo oficial e põe ênfase na autoatividade humana. A filosofia da práxis afirmava-se polemicamente como uma filosofia de combate:

Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação dos modos de pensar precedentes e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E, portanto, antes de tudo. Como crítica do ‘senso comum’ (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que ‘todos’ são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida intelectual de ‘todos’ mas de inovar e tornar ‘crítica’ uma atividade já existente) e, posteriormente, como crítica da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que enquanto individual (e de fato ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como ‘culminância’ do progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, também do senso comum popular10.

A afirmação de uma concepção de mundo unitária e superior é o resultado para Gramsci de uma “luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real”11. Aqui a unidade entre teoria e prática finalmente se apresenta com toda sua força. Tal unidade deve ser concebida como um dever ser que se realiza por meio do choque entre práticas e concepções intelectuais contrastantes. A primazia da prática sobre a teoria seria um indício de que no âmbito da filosofia da práxis permanecem resíduos de concepções mecanicistas, revelando que esta ainda se encontra em um estado inicial de elaboração, ou seja, que não foi ainda capaz de realizar a crítica do senso comum e das filosofias precedentes e que por isso só consegue pensar a teoria como subordinada a uma prática social irrefletida. De acordo com Gramsci:

A insistência sore o elemento ‘prático’ da ligação teoria prática (…) significa que se está atravessando uma fase histórica relativamente primitiva, uma fase ainda econômico-corporativa, na qual se transforma quantitativamente o quadro geral da ‘estrutura’ e a qualidade superestrutura adequada está em vias de surgir, mas não está ainda organicamente formada12.

Como visto, a filosofia da práxis tem como ponto de partida a crítica ao senso comum, mas Gramsci insiste que ela não se detém nesse ponto. Não é possível separar organicamente a filosofia dos intelectuais daquela contida no senso comum. Por um lado, o senso comum recolhe e reelabora as filosofias pretéritas dos intelectuais. No senso comum elementos de religiosidade e cultura popular entrelaçam-se com fragmentos filosóficos reelaborados e apropriados de modo espontâneo. Por outro, contemporaneamente, a filosofia dos intelectuais não deixa de ser a expressão de um senso comum dos filósofos.

Enquanto para as classes dirigentes a filosofia dos intelectuais é um elemento de coesão interna, para as classes subalternas, que desconhecem esses sistemas, ela é sempre uma força externa, “um elemento de subordinação a uma hegemonia exterior”13. Sem realizar a crítica dessa filosofia dos intelectuais a filosofia da práxis não poderá afirmar sua própria hegemonia e, consequentemente, romper com esses elementos de subordinação: “a filosofia da práxis só pode ser concebida em forma polêmica, de luta perpétua. Todavia, o ponto de partida deve ser sempre o senso comum, que é, espontaneamente, a filosofias das multidões, as quais se trata de tornar ideologicamente homogêneas”14. É, pois, como parte integrante de sua teoria da hegemonia que Gramsci pensa a filosofia da práxis:

A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, ou melhor, ela é a própria teoria de tais contradições; não é o instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte do governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis e em evitar os enganos (impossíveis) da classe superior e, ainda mais, de si mesmas15.

A afirmação dessa filosofia da práxis, entretanto, é um processo árduo e difícil. Como concepção de mundo de um grupo social, ou seja, como filosofia de massas ela é um “movimento cultural”, “uma ‘religião’”, “uma fé”, “uma ‘ideologia’”, ou seja, a premissa “teórica” implícita em uma atividade prática individual e coletiva. Aparece aqui a “questão política dos intelectuais”16. A elaboração de uma concepção de mundo coerente, que se apresente como ponto de culminância da cultura de sua época só pode ser levada a cabo por uma elite de intelectuais muito próxima da vida dos “simples”, de modo que seja conservada a unidade ideológica de todo o “bloco social”:

[…] a organicidade do pensamento a solidez cultural só poderia ocorrer se entre os intelectuais e os simples se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas massas, ou seja, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, construindo assim um bloco cultural e social17.

É no interior do partido que esse contato entre os intelectuais e os simples pode ocorrer de forma mais efetiva. Segundo Gramsci,

Deve-se sublinhar a importância e o significado que têm os partidos no mundo moderno, na elaboração e difusão das concepções de mundo, na medida em que elaboram essencialmente a ética e a política adequadas a elas, isto é, em que funcionam, como ‘experimentadores’ históricos de tais concepções. (….) Por isso, pode-se dizer que os partidos são os elaborados das novas intelectualidades integrais e totalitárias, isto é, o crisol da unificação da teoria e prática entendida como o processo histórico social18.

A exposição da filosofia da práxis por Gramsci assumia um viés fortemente critico perante o marxismo oficial e, em particular, perante as concepções fatalistas e deterministas que lhe são próprias. Para Gramsci, tais concepções eram “a religião de subalternos”19. Segundo o sardo:

Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecânico, tenha sido um ‘aroma’ ideológico imediato da filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao modo dos narcóticos), tornada necessária e justificada historicamente pelo caráter ‘subalterno’ de determinados estratos sociais. Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta termina assim por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecânico se transforma em uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada20.

O fatalismo e o mecanicismo poderiam ter cumprido um papel positivo quando os grupos subalternos davam seus primeiros passos organizativos e expressavam-se ainda em um nível econômico-corporativo21. Essa função positiva se esgotaria quando os subalternos se tornassem classe dirigente e assumissem funções estatais: “quando o ‘subalterno’ se torna dirigente e responsável pela atividade econômica de massa, o mecanicismo revela-se num certo ponto como um perigo iminente”22.

A crítica gramsciana se estendia ao economicismo. Analogamente ao fatalismo, o economicismo é expressão de uma fase primitiva do desenvolvimento político e social dos grupos subalternos e da própria filosofia da práxis:

Economia e ideologia. A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) de apresentar e expor qualquer flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da infraestrutura deve ser combatida, teoricamente, como um infantilismo primitivo, ou deve ser combatida, praticamente, com o testemunho autêntico de Max, escritor de obras políticas e econômicas concretas23.

A filosofia da práxis não separa estrutura e superestrutura. No processo histórico real afirma-se a unidade destas duas dimensões, as quais interrelacionam-se reciprocamente constituindo um bloco histórico: “A estrutura e as superestruturas firmam um ‘bloco histórico’, isto é, o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção”24.

Estado e sociedade civil

Em uma carta dirigida a sua cunhada Tatiana Schucht, em 7 de setembro de 1931, Antonio Gramsci resumiu o estado de sua pesquisa revelando o nexo profundo que existia entre sua investigação sobre a história dos intelectuais italianos e a teoria do Estado. Escreveu ele:

Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo também leva a certas determinações do conceito de Estado, que, habitualmente, é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um dado momento), e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc), e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais.

No Primo quaderno o Estado foi definido de maneira bastante convencional como “a forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção”25. A fórmula, entretanto, foi matizada e tornou-se mais sutil na segunda versão:

Se bem que seja certo que para as classes produtivas fundamentais (burguesia capitalista e proletariado moderno) o Estado não seja concebível mais que como uma forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção, não é dito que a relação entre meios e fins seja facilmente determinada e assuma o aspecto de um esquema simples e óbvio à primeira vista26.

Entre a primeira e a segunda versão está aquela carta a Tania, na qual era apresentado um abrangente programa de pesquisa que entrelaçava a questão política dos intelectuais com uma teoria que concebia o Estado como um equilíbrio da sociedade política, o aparelho coercitivo ou governativo, com a sociedade civil, “o conjunto das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.”. Essa investigação inseria-se no quaderno 6, escrito entre 1930 e 1932, o qual reúne em sua maioria textos B (que não receberam uma segunda redação).

Foi neste quaderno que Gramsci expôs a noção de Estado integral. A fórmula aparecia pela primeira vez em uma análise do processo de constituição de uma nova ordem política após a Revolução Francesa de 1789. Segundo Gramsci, nessa ocasião a burguesia “pode se apresentar como ‘Estado’ integral, com todas as forças intelectuais e morais necessárias e suficientes para organizar uma sociedade completa perfeita”27. A questão foi retomada e desenvolvida mais adiante, quando a iniciativa jacobina, após 1793, era descrita como a tentativa de

[…] unificar ditatorialmente os elementos constitutivos do Estado em senso orgânico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil) em uma busca desesperada de apertar no punho toda a vida popular e nacional, mas aparece também como a primeira raiz do Estado laico moderno, independente da Igreja, que procura e encontra em si próprio, em sua vida complexa, todos os elementos de sua personalidade histórica28.

No parágrafo seguinte, Gramsci colocou a noção de maneira sintética mas extremamente eficaz em sua crítica à ideia de Estado-policial a qual identificava Estado e governo:

Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e governo, identificação que é, precisamente, uma representação da forma corporativa econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que se deve notar que, na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)29.

A questão foi posta de modo similar no § 137 – “por ‘Estado’ deve se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil”30 – e no § 155 – “Estado (no sentido integral: ditadura + hegemonia)”31.

Uma vez que no debate político atual a noção de sociedade civil indica frequentemente uma esfera associativa não-estatal, sede dos potenciais emancipatórios e progressistas presentes na sociedade, é importante desafazer a confusão e retornar ao conceito gramsciano de sociedade civil. O ponto de partida pode ser a “doutrina de Hegel sobre os partidos, e as associações como trama ‘privada’ do Estado”, exposta por Gramsci no Primo quaderno32. Vale lembrar que para Hegel, a sociedade civil abarcava as corporações profissionais e a atividade econômica, constituindo desse modo uma esfera de mediação entre o privado e o público, a esfera da família e o Estado, “o racional em si e para si”33. Quando Marx citou o conceito de sociedade civil no Prefácio de 1859 à Contribuição à crítica da economia política, escreveu que este expressaria a “totalidade” das “relações materiais da vida” sem, no entanto, referir-se às corporações ou à esfera associativa presente naquele conceito original34. Sobre esse conceito hegeliano, Gramsci escreveu:

Governo com o consenso dos governados, mas com o consenso organizado, não genérico e vago tal como se afirma no momento das eleições: o Estado tem e pede o consenso, mas também ‘educa’ este consenso através das associações políticas e sindicais, que, portem, são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente. Assim, em certo sentido, Hegel já supera o puro constitucionalismo e teoriza o Estado parlamentar com seu regime de partidos35.

Essa raiz hegeliana da noção de sociedade civil exposta por Gramsci aparecerá ainda no quaderno 6:

A sociedade civil. É preciso distinguir a sociedade civil tal como é entendida por Hegel e no sentido em que é muitas vezes usada nestas notas (isto é, no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado) do sentido que lhe dão os católicos, para os quais a sociedade civil, ao contrário, é a sociedade política ou o Estado, em oposição à sociedade familiar e à Igreja36.

A ideia hegeliana de Estado ético, apropriada e reformada pelo neoidealismo italiano em chave liberal (Benedetto Croce) ou fascista (Giovanni Gentile) era vista por Gramsci como expressão de um período histórico, inaugurado pela Revolução Francesa, no qual o desenvolvimento da burguesia parecia ilimitado, ou seja, de um período histórico no qual a universalidade burguesa parecia se afirmar e na qual todo o gênero humano parecia identificar-se com a burguesia. Nesse contexto,

[…] todo Estado é ético na medida em que uma de suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes. A escola como função educativa repressiva e negativa é a atividade estatal mais importante nesse sentido, mas na realidade, para este fim tende uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho de hegemonia política e cultural das classes dominantes37.

Sociedade política e sociedade civil mantém no pensamento gramsciano uma relação de unidade-distinção. Mas unidade e distinção se manifestam de maneiras diferentes. No texto de Gramsci a unidade é sempre orgânica e se expressa no Estado integral, enquanto a distinção é de ordem metodológica, é um recurso analítico. Retomando uma fórmula política renascentista, o autor dos Quaderni escreveu:

Afirma Guicciardini que, para a vida de um Estado duas coisas são absolutamente necessárias: as armas e a religião. A fórmula de Guicciardini pode se traduzir em várias outras fórmulas menos drásticas: força e consenso, coerção e persuasão, Estado e Igreja, sociedade política e sociedade civil, política e moral (história ético-política de Croce), direito e liberdade, ordem e disciplina, ou, com um juízo libertário, violência e fraude38.

Esta concepção unitária do Estado é o que Gramsci denominou de “dupla perspectiva”:

Outro ponto a ser fixado e desenvolvido é o da ‘dupla perspectiva’ na ação política e na vida estatal. Vários são os graus através dos quais se pode apresentar a dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos. Mas eles podem se reduzir teoricamente a dois graus fundamentais correspondentes à natureza dúplice do Centauro maquiaveliano, féerica e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele universal (da ‘Igreja’ e do ‘Estado’), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia39.

Sociedade regulada

A noção de sociedade regulada presente nos Quaderni del carcere oferece uma solução elegante para o problema do fim do Estado na teoria marx-engelsiana. Em seu enunciado mais forte essa tese aparece na terceira seção do Anti-Dühring de Friedrich Engels no seguinte trecho:

O primeiro ato no qual o Estado realmente atua como representante de toda a sociedade – a tomada dos meios de produção em nome de toda a sociedade – é, ao mesmo tempo, seu último ato [autônomo] enquanto Estado. [De esfera em esfera, a intervenção do poder estatal nas relações sociais cai se tornando supérflua e acaba por desativar-se.] O governo sobre pessoas é substituído pela administração de coisas e pela condução de processos de produção. A sociedade livre não pode utilizar ou tolerar nenhum ‘Estado’ entre ela e seus membros. [O Estado não é ‘abolido’, mas definha e morre]40.

Gramsci tratou do fim do Estado em uma nota do quaderno 5 intitulada “Machiavelli” na qual discute a arte a ciência da política, uma reflexão que culminava na noção de “príncipe”41. Era a respeito da fundação de um “novo tipo de Estado” que Gramsci escrevia, um Estado no qual a sociedade civil se encontraria de tal modo entrelaçada com a sociedade política que cada cidadão se sentiria parte do governo:

Sobre esta realidade que está em contínuo movimento não se pode criar um direito constitucional de tipo tradicional, mas apenas um sistema de princípios que afirmam como fim do Estado o seu próprio fim, o seu próprio desaparecimento, isto é a reabsorção da sociedade política na sociedade civil42.

O “fim” do Estado se resolveria, assim, na relação entre a sociedade política e a sociedade civil. Neste processo, a sociedade civil dissolveria em seu interior as funções que antes se encontravam alocadas no interior da sociedade política.

No quaderno 6, aquele dedicado ao conceito de Estado, Gramsci apresentou a noção de sociedade regulada em um conjunto de notas. Trata-se de textos que, como a maioria das notas desse caderno, não tiveram uma segunda redação. Essa noção era afirmada em contraposição aos teóricos do Estado fascista e, também, àqueles do Estado liberal. Em sua primeira aparição, Gramsci enfatizou que a noção de sociedade regulada não poderia ser confundida com o Estado-classe, ou seja, nem com o Estado burguês, nem com o Estado proletário. Enquanto persistisse a desigualdade econômica entre os indivíduos, a igualdade política não teria lugar. Este seria um elemento de realismo presente nas teorias dos utopistas, segundo Gramsci, os quais sempre insistiram que a igualdade econômica era o fundamento da sociedade projetada. Era nessa medida que os utopistas poderiam ser também considerados “cientistas da política”43.

A noção de sociedade regulada era um desenvolvimento da teoria gramsciana do Estado, como se pode ver nos §§ 65 e 82 do quaderno 6. Esse desenvolvimento foi apresentado de modo mais acabado no § 88, justamente aquele no qual aparece a fórmula “Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia encouraçada de coerção”. A continuação do texto já definia a direção do argumento: “Em uma doutrina do Estado que o conceba como tendencialmente passível de exaurimento e de resolução na sociedade regulada, o argumento [aquela concepção de Estado] é fundamental”44.

A questão do fim do Estado encontrava nessa “doutrina” uma solução possível. Se no comunismo o poder público perde seu caráter político, como escreveram Marx e Engels no Manifesto comunista, onde residiria o poder público?45 E de onde viria sua força? De acordo com Gramsci: “Pode-se imaginar que o elemento Estado-coerção exaure-se à medida em que se afirmam elementos sempre mais conspícuos da sociedade regulada (ou Estado ético, ou sociedade civil)”46. A sociedade regulada é, assim, um “Estado sem Estado”, baseado no pressuposto de que “todos os homens são realmente iguais e portanto igualmente razoáveis e morais, isto é, capazes de aceitar a lei espontaneamente, livremente e não por coerção, como imposta por outra classe, como coisa externa à consciência”47. Na sociedade regulada, a sociedade civil absorve e dissolve a sociedade política e suas funções.

Para Gramsci, a transição para uma sociedade regulada implica em uma fase de Estado-guardião noturno, uma fórmula que toma emprestada do pensamento político liberal, “isto é, de uma organização coercitiva que tutelará o desenvolvimento dos elementos de sociedade regulada em contínuo incremento e, portanto, reduzirá gradativamente suas intervenções autoritárias e coercitivas”48. Teria início, assim, uma “era de liberdade orgânica”.

A distinção entre partido e governo seria, nesse processo, essencial. Em uma sociedade de transição, “o partido dominante não se confunde organicamente com o governo”. O § 65, no qual é feita essa distinção discute, obviamente a União Soviética sob Stalin, embora o pretexto seja Napoleão III. Gramsci faz referência às “estruturas governativas iliberais (isto é, aquelas nas quais a sociedade civil se confunde com a sociedade política)” e distingue as estruturas despóticas, nas quais uma oligarquia pretende ser toda a sociedade, das estruturas democráticas, nas quais “o povo indistinto pretende e acredita ser verdadeiramente o Estado”49. Gramsci alertava para o uso, por parte de Napoleão III, de “argumento democrático que se transforma em justificativa de atividade oligárquica”. A sequência do argumento, entretanto, torna evidente que o objeto da reflexão era Stalin. Segundo Gramsci o Estado “pode ser ‘democrático’ apenas na sociedade na qual a unidade histórica entre sociedade civil e sociedade política é entendida dialeticamente (na dialética real e não apenas conceitual) e o Estado é concebido como superável pela ‘sociedade regulada’”50. Nesse processo de superação do Estado, o partido, presente na sociedade civil, “é instrumento para a passagem da sociedade civil-política para a ‘sociedade regulada’”51.


Notas

1 Q 11, § 12, p. 93. Ao longo deste texto os Quaderni do cárcere serão citados do seguinte modo: Q xx, § yy, p. zz, onde xx é o número do caderno, yy do parágrafo e zz das páginas. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere: edizione critica a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 1977.

2 FRANCIONI, Gianni; FROSINI, Fabio. Nota introduttiva al quaderno 11. In: Quaderni del carcere: edizione anastatica dei manoscritti. Cagliari: Biblioteca Treccani; L’Unione Sarda, 2009, p. 3

3 Q 11, § 12, p. 103.

4 Q 11, § 12, p. 1378.

5 Q 11, § 13, p. 1396.

6 Q 11, § 12, p. 1376.[7 Q 11, § 13, p. 1396.

8 Q 11, § 12, p. 1385.

9 “E assim estamos mais uma vez na filosofia da práxis, que é o miolo do materialismo histórico. Esta é a filosofia imanente às coisas sobre as quais se filosofa. Da vida ao pensamento e não do pensamento à vida; aqui está o processo realista”. LABRIOLA, Antonio. Saggi sul materialism storico. Roma: Riuniti, 2000, p. 238.

10 Q 11, § 12, p. 1383.

[11] Q 11, § 12, p. 1385.

12 Q 11, § 12, p. 1386-1387.

13 Q 11, § 13, 1396.

14 Q 11, § 13, p. 1398.

15 Q 10/II, § 41, p. 1320.

16 Q 11, § 12, p, 1386.

17 Q 11, § 12, p. 1382

18 Q 11, § 12, p. 1387. Totalitárias aqui é sinônimo de totais. Embora alguns escritores italianos utilizassem a expressão totalitarismo para definir o fascismo, Gramsci não usa a expressão com esse sentido nos Quaderni del carcere.

19 Q 11, § 12, p. 1389.

20 Q 11, § 12, p. 1388.

21 Walter Benjamin faz afirmações similares em suas Teses sobre a história.

22 Q 11, § 12, p. 1388.

23 Q 7, § 24, p. 871.

24 Q 8, § 182, p. 1051

25 Q 1, § 150, p. 132.

26 Q 10/II, § 61, p. 1360.

27 Q 6, § 10, p. 691.

28 Q 6, § 87, p. 763.

29 Q 6, § 88, p. 763-764.

30 Q 6, § 137, p. 801

31 Q 5, § 155, p. 810-811.

32 Q 1, § 47, p. 56.

33 De acordo com Hegel, a sociedade civil abrange: “A. A mediação da carência e a satisfação do singular pelo seu trabalho e pelo trabalho e pela satisfação de todos os demais – o sistema das carências. B. A realidade efetiva do universal da liberdade aí contido, a proteção da propriedade pela administração do direito. C. A prevenção contra a contingência que resta nesses sistemas e o cuidado do interesse particular como algo de comum pela polícia e pela corporação” (HEGEL, G.W.F. A sociedade civil: tradução, introdução e notas Marcos Lutz Müller. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução, Campinas, n. 6, 2003, p. 21). De acordo com Lefebvre e Macherey: “É por intermédio de seu pertencimento à corporação que o indivíduo particular, sujeito econômico da sociedade civil, torna-se cidadão do Estado, sujeito político no sentido estrito. A corporação desempenha, portanto, um papel essencial de mediação que é fundamental para o desenvolvimento da sociedade: não estando ainda dentro do Estado, ela já não está mais inteiramente na sociedade civil” (LEFEBVRE, Jean-Pierre; MACHEREY, Pierre. Hegel e a sociedade. São Paulo: Discurso, 1999, p. 60.

34 MARX, Karl. Preface. A contribution to the critique of political economy. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected works. New York: International Publisher, 1975, v. 29, p. 262.

35 Q 1, § 47, p. 56.

36 Q 6, § 24, p. 703.

37 Q 8, § 179, p. 1049. Gramsci acrescenta aqui uma ressalva importante. A hegemonia da burguesia na fase atual seria sempre restrita, na medida em que ela não seria capaz de “criar um organismo social unitário técnico-moral”. Apenas “o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados etc.”. Q 8, § 179, p. 1050.[38 Q 6, § 87, p. 762-763.

39 Q 8, § 86, p. 991.

40 ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring: a revolução da ciência Segundo o senhor Eugen Dühring. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 316

41 Segundo Gramsci, “neste sentido ‘príncipe’ pode traduzir-se na língua moderna por ‘partido político’”. Q 5, § 127, p. 662.

42 Q 5, § 127, p. 662.

43 Q 6, § 12, p. 693.

44 Q 6, § 88, p. 764.

45 “Quando no curso do desenvolvimento, desaparecerem os antagonismos de classes e toda a produção for concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político”. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998, p. 59.

46 Q 6, § 88, p. 764.

47 Q 6, § 88, p. 764.

48 Q 6, § 88, p. 764.

49 Q 6, § 65, p. 734.

50 Q 6, § 65, p. 735.

51 Q 6, § 65, p. 734.


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