Os protestos da fome

Analista socialista iraniana se volta às manifestações que tomaram conta de seu país nas últimas semanas para compreender as razões de tais protestos.

Yassamine Mather 10 jan 2018, 21:06

Correu uma considerável quantidade de notícias falsas sobre as manifestações que começaram em Mashhad e outras cidades da província de Khorasan em 28 de dezembro de 2017. Estas manifestações continuaram, cinco dias mais tarde em Teerã, assim como em muitas outras aldeias e cidades de todo o país. Os manifestantes estão indignados e sem medo, e suas queixas são razoavelmente claras. O que começou como uma explosão de indignação contra a subida dos preços, o desemprego e a pobreza evolui para consignas mais políticas contra a corrupção e contra o ditador, o aiatolá Khamenei.

Os preços dos alimentos básicos dispararam nas últimas semanas, com um aumento do preço dos ovos de 40% em questão de dias. Em algumas das principais cidades do Irã, os aluguéis aumentaram 83% nos últimos 3 anos. O desemprego massivo é um grave problema – em especial nas províncias nas quais surgiram os protestos. A taxa de inflação pode haver caído 35% durante a presidência de Mahmoud Ahmadinejad, mas se mantem em níveis insustentáveis.

Apesar de estar controlado pelas facções do regime iraniano, a diversidade relativa dos meios de comunicação dentro do Irã permitiu que a maioria dos iranianos sejam conscientes, e de fato estão bem informados, dos multibilionários escândalos de corrupção nos quais todas as facções do regime estão implicadas. O governo Rohani, os aiatolás associados com as facções mais conservadoras do regime e o ex-presidente populista Ahmadinejad (que afirmava ser o defensor dos deserdados) estão todos envoltos na corrupção e malversação de fundos públicos. Ahmadinejad e seus aliados enfrentam atualmente graves acusações criminais por corrupção nos tribunais iranianos. Mas o resultado de que as duas facções do regime denunciem os subornos e as fraudes de seus oponentes é que os iranianos são cada vez mais conscientes da venalidade de todo o regime islâmico.

Contradizendo as afirmações iniciais dos aliados de Rohani, os protestos não são parte de uma conspiração das “facções conservadoras” para desacreditar o seu governo. Em Mashhad e outras cidades da província de Khorasan, as consignas tiveram como principal objetivo da maioria dos manifestantes o aiatolá Khamenei. Nos últimos dias, as consignas mais comuns foram: “Marg bar dictador (Morte ao ditador!), “Khamenei Haya kon mamlekato raha kon” (Khamenei deveria se envergonhar – tire suas mãos do país!) e a mais educada, que exige a demissão de Khamenei: “Seyed Ali (Khamenei), nos perdoa. Agora temos que nos levantar!”

Na cidade do norte de Rasht se lançaram inicialmente consignas contra o primeiro ministro Rohani, mas logo se centraram no próprio ditador. Em Teerã, as consignas dos manifestantes estudantis foram muito mais radicais: “na na eslahtalab ossoul gara” (Não aos reformistas, não os conservadores fundamentalistas!); “Estudante-trabalhadores: Unidade!” e “Não queremos eleger entre o ruim e o pior!”

Apesar de todas as reinvindicações dos grupos exilados, que recebem um amplo eco nos meios como a rádio BBC persa (mas, curiosamente, não a BBC TV persa), estes protestos não têm nada que ver com os monárquicos ou com os mujahidin. Seguindo as consignas dos manifestantes nas redes sociais, é evidente que as consignas pró-Xá só apareceram em casos muito isolados, como na cidade religiosa de Ghom. Em uma ocasião em Rasht, um grupo na multidão gritou consignas a favor do Xá, o que foi calado pela maioria com cânticos a favor de uma república do Irã (em contraposição a uma República Islâmica). De fato, os manifestantes estão contrariando possíveis influências monárquicas gritando “na na mir Rahbar, na na Shah Rahbar” (Nem reis, nem Xás, nem líderes supremos!).

Não há que dar maior importância ao fato de que os protestos em Mashhad coincidissem com um chamamento na televisão para sair à rua de um dos pretendentes ao trono, Reza Pahlavi. Faz este tipo de chamamentos quase diariamente e não têm maior eco. Não, o catalisador das manifestações é a fome e o sofrimento dos iranianos, que faz com que os manifestantes gritem que é melhor morrer do que seguir vivendo assim.

Não há futuro no passado

No entanto, valeria a pena recordar aqueles iranianos que pensam que não havia pobreza ou fome sob o Xá uma citação da imperatriz Farah Diba. Quando foi informada por seus assessores que a gente comum se queixava de que não podiam permitir-se o luxo de comprar carne, respondeu como uma Maria Antonieta, que à nação seria bom uma temporada de vegetarianismo.

E quanto à corrupção, é certo que a desconfiança do Xá de todo mundo, incluídos seus ex-ministros, implicava que só um limitado círculo de pessoas próximas ao Xá e à Corte se beneficiavam das fraudes desenfreadas do estado. A multiplicidade de facções no regime islâmico faz com que um grupo muito maior de pessoas e suas famílias sejam beneficiários das riquezas que o capital mundial reserva aos ricos no Terceiro Mundo. Por outra parte, as chamadas “sanções seletivas” impostas pelo Ocidente entre 2007 e 2015 permitiram a setores da República Islâmica com acesso aos mercados negros domésticos e a divisas estrangeiras acumular fortunas astronômicas. Como tal, a República Islâmica é em muitos aspectos inclusive mais corrupta que o Irã do Xá. Mas vivemos tempos diferentes.

E a corrupção não é certamente uma exceção iraniana ou inclusive dos países em desenvolvimento. No entanto, na maioria dos outros países, quando se fartam de seus líderes corruptos podem eleger seus rivais políticos. E ainda que em pouco tempo os novos governantes geralmente superam a corrupção dos seus predecessores, o processo ao menos proporciona a ilusão de que a população tem algum tipo de controle e pode provar novos dirigentes. Mas depois de 39 anos de estarem no poder, todas as facções da República Islâmica imergem na corrupção, inclusive quando estão na oposição.

E quanto à democracia sob o Xá, fundiu o que chamou o partido do “Sim” com o partido “por suposto” em um só: Hezb Rastakhiz. Irã tinha só dois diários, Keyhan e Etelaat. Ambos eram pró-Xá e a falta de facções de oposição dentro do regime garantia que não houvesse revelações de trapos sujos dos oponentes do Xá.

Em relação à repressão, recordemos que as forças de segurança do Xá, a SAVAK, dispararam contra Catherine Adl, a filha paralítica de seu próprio médico, enquanto estava sentada em uma cadeira de rodas, por opor-se à desigualdade e a injustiça no Irã. Pode-se adivinhar o que fazia aos oponentes aos quais não conhecia.

Alguns iranianos, sem dúvida arrastados pelos meios de comunicação financiados por sauditas, israelenses e ocidentais culpam as intervenções do Irã na Síria e Iêmen pela piora da situação econômica. Isto provocou consignas nacionalistas como “Não a Gaza, não ao Iêmen!” O regime não está livre de culpas aqui tampouco: a promoção do general Soleimany como um guerreiro e conquistador “iraniano” sem dúvida tem consequências. No entanto, os estudantes e os jovens de Teerã responderam a estas consignas com outras: “Ham irán, ham ghazeh zahmtkesh taht setame” (Os pobres são oprimidos tanto em Gaza como no Irã!).

Mulás capitalistas

Os verdadeiros motivos da péssima situação econômica do Irã são mais complexos que o gasto nas aventuras militares no Oriente Próximo. A prometida prosperidade econômica após o acordo nuclear não se materializou e agora as dúvidas sobre o futuro do acordo – especialmente tendo em conta a aberta oposição de Trump – provocaram o desespero, sobretudo entre os jovens iranianos. Em resposta aos distúrbios, Rohani afirma que a pobreza, o desemprego e a inflação não são exclusivos do Irã. Isto é certo, mas o que não menciona é que, apesar de sua retórica antiocidental, a República Islâmica é uma ardente seguidora da agenda econômica neoliberal. O governo de tecnocratas de Rohani é acusado com razão de obedecer os programas de reestruturação do FMI e do Banco Mundial, que é uma das causas que estão detrás da crescente brecha entre ricos e pobres. Esta brecha é reflexo de um governo que se esforça constantemente para satisfazer as exigências do capital mundial de reestruturação, supressão de ajudas estatais e privatização. Os subsídios aos alimentos foram cortados drasticamente. A taxa oficial de desemprego (12%) é uma piada – a cifra real é muito maior, inclusive se temos em conta os baixos salários e o emprego precário. Ninguém tem segurança no emprego, a menos que, por suposto, esteja associado com uma facção estável do regime ou as forças de segurança.

2017 poderia passar para a história como o ano em que o neoliberalismo enfrentou sérios desafios nos países capitalistas avançados. Mas até os recentes protestos, no Irã em 2017 foi um ano em que o neoliberalismo ia bem. O Governo de Rohani foi elogiado pelos seus resultados econômicos pelo Banco Mundial e o FMI. Não pode haver nenhuma dúvida, pois, que esta onda de oposição tomou o governo completamente de surpresa. O Ministério de Informação fez patéticos chamamentos à população para que solicite “permissões para organizar protestos”, que obviamente foram ignorados, porque ninguém crê que o regime vai permitir este tipo de protesto.

E certamente não permitirá que a classe operária comece a mobilizar-se como tal: há chamamentos à greve dos professores e trabalhadores metalúrgicos, mas a realidade é que os “mulás capitalistas” (como as pessoas lhes chama nas ruas de Teerã) lograram dizimar a classe operária organizada. Os trabalhadores do aço e do petróleo já não são empregados pelas grandes companhias estatais. Os grandes complexos industriais subcontratam cada fase do trabalhado a contraentes menores. Como resultado, a organização de greves em toda a indústria para não falar em todo o país (um fator importante na queda do regime do Xá) já não é possível.

Tal e como estão as coisas, portanto, as reinvindicações dos manifestantes são bastante difusas e não há uma única força que organize e coordene, permitindo uma saída alternativa para a luta. À medida que se desenvolvam os acontecimentos, este fator será cada vez mais necessário.

Apoio

Há três coisas que podemos fazer para apoiar os protestos no Irã:

1-A solidariedade com os detidos, apoio aos familiares dos assassinados pelas forças de segurança e denunciar as medidas repressivas do governo.

2-Há que recordar a quem mantem ilusões sobre o regime anterior que não era melhor que este e proporcionar exemplos claros no lugar de repetir consignas ou menosprezá-los.

3-Explicar a verdadeira natureza da República Islâmica do Irã, ao mesmo tempo que recordar a esses hipócritas como Trump que “é a economia estúpido!” – a origem da atual rebelião no Irã, é precisamente o modelo econômico neoliberal que ele e seus aliados estão tratando de impor em todo o mundo.

Tradução de Marcelo Martino da versão em espanhol disponível no portal Sin Permiso.


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