“Ontem, tínhamos a segregação social. Hoje, ela é econômica”

Reverendo ativista analisa a evolução da questão racial nos EUA cinquenta anos após a morte de Martin Luther King.

Jesse Jackson 4 abr 2018, 20:53

Representante de Illinois no Congresso de 1995 a 2012, ele foi duas vezes candidato à nominação democrata para a Casa Branca (1984 e 1988). Ele nos recebeu no dia 6 de março, na sede de seu movimento, Rainbow Push Coalition, em uma antiga sinagoga (1923) do bairro de Bronzeville, no South Side de Chicago. O reverendo Jackson não dá entrevistas sem antes começar com uma lição de história

Le Monde – Cinquenta anos após o assassinato de Martin Luther King, em 4 de abril de 1968, qual a sua visão sobre a herança dele?

Jesse Jackson – Há uma tendência em escrever sobre as realizações ou os eventos desse período, mas não se pode esquecer do pano de fundo. Ano que vem iremos comemorar a chegada dos primeiros negros, em 1619, na Virgínia. É isso que nos define: nossa viagem, os 244 anos de escravidão legal. Nós chegamos como mercadorias. Eu sublinho, aliás, que a França e a Inglaterra se beneficiaram enormemente de nosso trabalho sem salário. Esses dois países apoiavam o Sul escravista. Graças a Abraham Lincoln, que nos libertou em 1863, eles mudara de ideia, especialmente quando o Norte começou a ganhar a guerra [de Secessão].

Durante esses 244 anos, nós constituímos o principal ativo econômico do país. Houve muitas humilhações, mas, no fim das contas, relativamente poucos assassinatos: era importante nos manter num estado apto para o trabalho. As crianças eram vendidas como gado. Os homens brancos utilizavam as mulheres negras para sua satisfação pessoal. Isso mudou a constituição de nossa raça. Em 1863, nós obtivemos a liberdade. Em 1870, nós obtemos o direito de voto [graças à 15ª emenda da Constituição]. Pela primeira vez, nós tivemos o direito de nos casar, de comprar uma terra e de ter acesso à justiça.

Contudo, em 1877 nós fomos traídos. A promessa da liberdade foi traída [o compromisso Tilde-Hayes colocou fim ao controle federal sobre os Estados do Sul, que instalaram, então, o regime de segregação “separados, mas iguais”, mantido em vigor até 1964]. Os estados que não podiam mais nos manter em escravidão se serviram do sistema militar e do terror para controlar novamente o processo eleitoral. O apartheid se tornou legal. Isso durou 58 anos, até a decisão da Suprema Corte, em 1954. Entre 1880 e 1950, 5000 negros foram linchados sem procedimentos judiciais.

É esse contexto que fez emergir Martin Luther King em 1955, durante o boicote dos transportes em Montgomery, no Alabama. O seu objetivo era testar a decisão de 1954 eliminando a segregação na educação. Foi preciso ainda dez anos para ter uma legislação que colocasse fim à separação nas repartições públicas [Civil Rights Act de 1964]. Depois, em 1965, o Voting Rights Act afirmou a proteção federal do direito ao voto. Isso abalou o sistema político que funcionava em isolamento.

Depois disso, Martin Luther King veio para Chicago.

Sim, em 1966. Ele queria ver se sua tática de não-violência podia ser replicada no Norte, que tinha sido antiescravista mas prendia os negros nos guetos. Muitos pensavam que o que havia dado certo nos estados rurais do Sul funcionaria a fortiori em uma cidade grande como Chicago. No início, sua prioridade era a desagregação na educação pública. E ele me confiou o projeto “breadbasket”, em que o objetivo era utilizar nossa alavancagem econômica para fazer pressão sobre o setor privado e lutar contra os empregadores que recusavam contratar pessoas do gueto.

Paralelamente, um outro grupo no West Side se concentrava sobre a habitação. Nós queríamos que fossem interrompidas as práticas abusivas dos slumlords, esses comerciantes do sono que exploravam os inquilinos e não mantinham os prédios. Foi realizado testes com a urina das crianças: todas as pinturas tinham chumbo.

Martin Luther King se mudou para um apartamento dilapidado de North Lawn e nós lançamos a marcha pelo open housing, o fim da discriminação racial na atribuição das habitações sociais. O projeto suscitou muito oposição: nós fizemos nosso cavalo de batalha. Em 5 de agosto, o Dr. King foi atingido por um tijolo [durante uma manifestação em um enclave branco]. De fato, a resistência dos brancos em Chicago era mais violenta que em Birmingham, no Alabama.

O movimento conseguiu um acordo com a secretaria de habitação de Chicago, que prometeu parar de se opor à interdição da discriminação. Em troca, King parou com as marchas e saiu da cidade.

Era preciso refletir sobre a sequência. Nós tínhamos obtido a desagregação nos locais públicos e a proteção federal do direito de voto. Nós então decidimos atacar as injustiças econômicas, lançando a Poor People’s Campaign, a “campanha para eliminar a pobreza”.

Ainda hoje, 55% dos negros ganham menos de 15 dólares por hora, e 50% menos de 12 dólares. A discriminação continua substancial no acesso ao capital, nos empréstimos financeiros. Não há um só imóvel construído pelos negros nos centros das cidades, seja em Memphis, Nova Iorque ou Miami. Um branco munido de um simples projeto pode obter um empréstimo superior àquele obtido por um negro que oferece em troca um bem como garantia.

É uma derrota do movimento dos direitos civis?

Ontem, nós tínhamos a separação social. Hoje, é a segregação econômica. Nós socializamos, nós vamos às partidas juntos, frequentamos os mesmos parques, mas nós temos essa fossa econômica, essa concentração extrema de riqueza nas mãos de alguns. Cada vez menos gente tem cada vez mais dinheiro, e cada vez mais gente tem cada vez menos.

O resultado é mais pobreza, uma polarização maior de raça e de classe, e um aumento da violência. Nós somos, de longe, o país mais violento do mundo. Nós produzimos o maior número de armas e nós as vendemos. Nós fabricamos o maior número de bombas e nós as lançamos. Nosso orçamento [a despesa discricionária, por oposição às despesas obrigatórias (aposentadorias, serviço da dívida, etc.)] é consagrado, em 54%, à defesa.

O Dr. King colocou os fundamentos de uma nova América. Ele nos livrou das leis Jim Crow que permitiram a segregação. Ele nos trouxe o direito ao voto. Em treze anos de ação ele mudou o quadro social. Contudo nada, com o fim da segregação, nos trouxe a igualdade econômica, o acesso ao capital. Martin Luther King pregava a defesa dos pobres, mas eles são cada vez mais numerosos. Ele advogava pela não-violência, mas a violência aumenta. Isso não significa que ele foi derrotado: ele nos deixou o voto como herança.

Você acha que esse direito esta ameaçado ?

O Voting Rights Act de 1965 está sendo atacado. Jeff Sessions [o ministro da justiça de Donald Trump] trabalha como um fanático para enfraquecê-lo. Não é o primeiro assalto. Desde a decisão da Suprema Corte “Citizens United” [que permite a participação financeira das empresas nas campanhas eleitorais], em 2010, alguns indivíduos podem comprar votos massivamente. Isso corrompe o processo eleitoral. Se voltarmos na história, é por causa do colégio eleitoral que Al Gore e Hillary Clinton perderam a Casa Branca, mesmo que eles tenham ganho o maior número de votos. É preciso não esquecer que a instituição do colégio eleitoral é resultado de um compromisso com os estados escravistas.

A eleição de Barack Obama, em 2008, foi a realização do “sonho” de Martin Luther King?

Obama encontrou uma resistência implacável, mas ele fez um trabalho extraordinário. Ele superou a crise financeira; a indústria automobilística estava à beira do colapso, ele tomou o risco de fazer um empréstimo, e ela sobreviveu. Vinte e cinco milhões de americanos tiveram um seguro saúde pela primeira vez: foi histórico. Ele reatou com Cuba. Ele assinou o acordo de Paris sobre o clima. Ele chegou a um acordo com o Irã que desacelera o programa nuclear. Ele nomeou juízes. Com certeza, poderia ter feito mais.

Notavelmente em Chicago, onde muitos bairros estão ainda, de fato, em um estado de segregação.

Nós tínhamos feito um apelo a Obama para organizar aqui uma conferência da Casa Branca sobre a violência, suas causas e seus remédios, e a construção urbana. O projeto nunca aconteceu. Ele disse não podia, mas não deixou claro os motivos. Resultado: ainda mais zonas abandonadas, mais fechamentos de escolas. A taxa de desemprego é superior a 20% em nove bairros de Chicago. Mas a questão não é o que Obama fez ou deixou de fazer. É o que Trump tenta fazer.

Trump está tentando sabotar cinquenta anos de trabalho. Ele tenta desfazer as proteções dos consumidores contra os bancos. Ele torna a América isolacionista em um universo globalizado, onde a maioria dos moradores são negros, asiáticos ou latinos. Mas nós resistimos. Nós sobreviveremos a Trump. A herança do Dr. King é também essa: uma visão do mundo que nos preparou para essa resistência.

O senhor tinha 26 anos quando Martin Luther King foi assassinado, praticamente sob os seus olhos, no Lorraine Motel de Memphis (Tennessee). Ele tinha 39 anos. O senhor se considera como o seu herdeiro?

(Risos). Eu faço parte da equipe. Há uma geração de herdeiros que nunca pararam de lutar, às vezes no deserto. Houve muitas ações e vociferações. Mas para nós, não era questão deixar uma batalha matar um movimento.

Entrevista realizada por Corine Lesnes para o Le Monde. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.


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