Os limites da Frente Única com Lula

Ser unilateral sobre a conjuntura complexa que enfrentamos e perder a independência política sob a pressão do lulismo pode levar a uma perigosa diluição.

Bernardo Corrêa 9 abr 2018, 20:10

O fim da “democracia de cooptação”1 que marca a agonia da Nova República brasileira, no campo das superestruturas políticas, tem como principal vítima sua esquerda institucional. As elites estão dispostas a expelir qualquer resquício de representação dos de baixo (ainda que adaptada ao regime) para impor seu receituário. Por isso querem Lula fora da disputa presidencial. Não porque Lula queira impulsionar os de baixo à ação independente e realizar um programa profundo de mudanças, mas precisamente porque o pacto que ele propõe como saída só seria possível se o PT tivesse condições de acalmar sua própria base social, sem romper com os planos dos de cima. Pelas pressões advindas da crise econômica e política, configurou-se uma nova geografia das frações burguesas e pequeno-burguesas que torna este propósito impraticável.

Como parte de um processo continental de esgotamento do neoliberalismo na América Latina no fim dos anos 1990, Lula foi conduzido ao governo em 2002 por uma potente “esperança que venceu o medo” de mudar. Desde o simbolismo de um dos de baixo chegar lá, até o caldo de cultura política formado pelos movimentos sindicais, juvenis e populares que constituíram por mais de 20 anos a base social do PT, pressionavam o governo por mudanças estruturais.

Lula e a direção do PT, entretanto, tinham outro projeto: acomodar tais pressões às “regras do jogo”. Tal disposição ficou explícita na Carta ao Povo Brasileiro, na composição dos ministérios, na política econômica e na expulsão dos “Radicais do PT” que fundaram o PSOL. A hegemonia lulista, que perdurou por 10 anos (até 2013), tinha como base material a alta das commodities e como base política a pacificação dos conflitos sociais, por meio do consentimento ativo das direções sindicais burocratizadas e políticas sociais que propiciaram um (relativo) crescimento do acesso ao consumo.

Na estratégia petista, os conflitos sociais deveriam ser processados no interior do aparato estatal evitando, a todo momento, qualquer tensão sobre o pacto de conciliação de classes que lideravam e se beneficiavam. Esqueceram que o Estado é um comitê executivo dos negócios da burguesia ou, na pior hipótese, pensaram que poderiam fazer parte do banquete e sair incólumes. É verdade que o PT não recebeu convite formal ao condomínio de poder, mas ao entrar, foi fundamental para reconstituir a legitimidade da democracia de cooptação. Por isso, a crise do PT é, também, indício da crise da Nova República que se instaurou definitivamente após o levante popular de 2013.

Após um acontecimento histórico nada permanece igual, mesmo que não haja uma grande mudança aparente. O acontecimento é o levante do inexistente, por isso quase sempre inapreensível2. Aparece como uma espécie de deformação do espaço-tempo político. As Jornadas de Junho de 2013 foram o principal acontecimento da história contemporânea do Brasil. Um mosaico de desejos reprimidos saíram às ruas. Demandas econômicas, sociais e democráticas transbordaram. Milhões se movimentaram, após anos de letargia. Um copo cheio de insatisfação que teve na luta contra o aumento das tarifas a última gota para transbordar a indignação.

Frente à força do acontecimento, governos – de todas as cores – unidos, primeiramente, deram como resposta a repressão. Não funcionou. E frente à falência da coerção pura, entraram em campo duas estratégias para tentar controlar o movimento.

Por um lado, o governo Dilma em sua disposição de supostamente “escutar as ruas”, propõe cinco pactos e um plebiscito para constituinte da reforma política. Propostas relacionadas à economia, medidas severas à corrupção e investimentos em transporte público, saúde e educação. As propostas tinham apoio dos de baixo, mas não dos que governavam ao lado da Presidente. Ficaram pelo caminho. Para piorar, não faltou ajuda da intelectualidade orgânica da velha esquerda para estigmatizar o levante como um “golpe da classe média” e favorecer à burguesia coesionar os setores pequeno-burgueses em torno de sua pauta.

Por outro lado, a Rede Globo e uma nova direita de base essencialmente pequeno-burguesa (expressas no MBL, Vem Pra Rua, etc.) buscaram apropriarem-se do movimento, ressignificando seus propósitos e rejeitando seus métodos. A criminalização dos protestos havia dado caldo para cravar a cunha entre vândalos e manifestantes e, como se sabe a repressão leva à maior radicalização dos protestos. Mesmo assim, também não pegou. Nenhum aparato da Nova República conseguiu controlar completamente as Jornadas de Junho. Nenhuma das duas estratégias se completaram.

A disputa de narrativas sobre o acontecimento de Junho e as saídas para a crise foram a marca das eleições de 2014. O segundo turno entre Dilma Roussef e Aécio Neves mostrava um país mais polarizado entre dois programas, mas logo após vencer as eleições, Dilma coloca Levy na direção da economia e passa a implementar o programa que combatera. Açoitada pelas dificuldades econômicas e as pressões de seus aliados burgueses, propondo um ajuste anti-povo, sua aprovação popular foi à lona.

A tentativa do governo petista de, mais uma vez, fagocitar os conflitos sociais para o interior do bloco de poder com os de cima entrou em curto-circuito. A contradição da política do governo com os interesses mobilizados em Junho derreteu a base social de Dilma. Junho trouxe a política para as ruas, sua latência era evidente, mas os ouvidos da esquerda institucional tinham paredes. Em paralelo a esta conveniente surdez, a Operação Lava Jato revelava a todo o povo brasileiro como funcionava o matrimônio incestuoso entre o dinheiro e a política do qual faziam parte todos os partidos da ordem.

A principal insuficiência de Junho de 2013 resulta no fato de não ter conseguido produzir uma resultante política. Segundo Badiou (2012), “Uma organização política é o Sujeito de uma disciplina do acontecimento, uma ordem posta a serviço da desordem, a contínua salvaguarda de uma exceção”. Este órgão não se desenvolveu. Ninguém conseguiu ser o partido de Junho. Nós do PSOL não conseguimos. Apesar de não termos sido uma direção política do movimento, fomos parte importante de sua constituição. Mas o PT já não controlava como antes o movimento de massas que se movimentava a despeito de seu governo e dos movimentos sociais e sindicais que dirigia.

O próprio Lula e intelectuais do quilate de Marilena Chauí, saíram atacando as manifestações como revoltas da classe média insatisfeita, reacionária, que reagia à ascensão social dos pobres. As pesquisas mostraram que era uma opinião impressionista, que desorientou milhares de militantes de esquerda que poderiam ter ajudado na luta para que os interesses populares fossem colocados acima dos interesses privados, seja dos empresários ávidos pela “oportunidade” da Copa de 2014, seja pelos políticos da casta ávidos por financiamento de campanha. “Quando se governa com a burguesia, quem governa é a burguesia”, já dizia o velho Bebel.

Este foi o cenário para o grande simulacro que propiciou o impeachment de Dilma.

A receita de ajuste fiscal do governo e a deterioração da situação econômica do país, combinada a uma narrativa vitoriosa de que a corrupção era causa última da crise, permitiu as condições para que setores pequeno-burgueses mais abastados encontrassem eco de suas palavras de ordem em uma parte passiva do povo. O completo abandono de setores importantes da esquerda do necessário combate à corrupção, como parte da luta anticapitalista, deixou um enorme vazio político. A nova direita que começava a surgir neste momento não era produto de um novo acontecimento autêntico, mas sim do seu simulacro.

Como dizia Trotsky, “é precisamente essa desilusão da pequena burguesia, sua impaciência, seu desespero, que o fascismo explora”. Mas o fascismo não é a temperatura normal da dominação burguesa. Ele é acionado quando a dominação se encontra em perigo. O fascismo não é conservador, ele é reacionário, ou seja, reage violentamente à mudança, não tenta conservar o presente. O fascismo tem como combustível o medo do futuro. Por isso é tão perigoso quanto episódico. Importante afirmar isto, pois é tão grave não ver este fenômeno, como fez o estalinismo nos anos de 1930, como também superdimensioná-lo com vistas a coesionar sua própria base social como está fazendo o PT agora. É muito perigoso anunciar o medo quando fascismo está no ar. Este é o afeto político deles. Se o fascismo é um perigo iminente, se Lula tem certeza disso, como líder deveria chamar o povo brasileiro a se mobilizar e, inclusive a se defender.

Mas se trata de uma questão mais complexa. O perigo do fascismo no Brasil é real, mas não é iminente. Ele surge da reação ao crescimento das lutas democráticas e por liberdades civis que modificaram os costumes no Brasil e ganharam um importante impulso em Junho, esgarçando as brechas que nossa democracia de cooptação seguia mantendo. Muitos dos ingredientes do fascismo estão sobre a mesa, porém falta os cozinheiros, os mais importantes. Falta a decisão da burguesia ou da massa do povo em apoiar a “pequena-burguesia falida e os elementos desclassados”, como caracterizava Trotsky a base social do nazismo alemão. A burguesia brasileira está dividida e isso é completamente distinto de estar rumando ao fascismo. A classe trabalhadora, é verdade, não foi em massa defender Lula, tampouco foi à ruas festejar sua prisão como a extrema-direita gostaria.

O fato de o regime estar ruindo coloca uma indefinição pendente à direita, precisamente pela timidez da esquerda institucional em enfrentar os inimigos que são de todos agora, mas que outrora foram seus amigos. Escolher um lado no regime falido não é a melhor política para disputar os rumos desta indefinição. Isso pode cortar a conexão com o movimento de massas e acelerar as piores tendências de despolitização. Pode propiciar uma conexão que ainda não existe entre a indignação popular com a impunidade dos ricos e dos políticos, com elementos de extrema-direita, que são outsiders. Assumir para si a crise do extremo-centro é um grave erro, pois retira a esquerda do espectro anti-regime e, por fim, nos dilui na democracia de cooptação em ruínas. Muitas vezes, os resultados não correspondem às intenções. A não-conformação de um terceiro campo para tentar sermos herdeiros do campo lulista pode deixar muitos órfãos honestos de fora da luta. E, como sabemos, não há espaço vazio na política, alguém vai canalizar sua indignação.

Há quem diga que está utilizando uma tática de Frente Única ao incorporar-se acriticamente à defesa de Lula. Entretanto, a tática de Frente Única pressupõe independência política. Do regime e da classe dominante. De acordo com Trotsky:

“Rompemos com os reformistas e com os centristas para ter liberdade para criticar as traições, a indecisão do oportunismo no movimento operário. Tudo que limitasse nossa liberdade de crítica e de agitação seria, assim, inaceitável para nós. Participamos na frente única mas não podemos nos dissolver nela em nenhuma hipótese. Intervimos como uma divisão independente”.

A perda da independência política por parte de algumas organizações se dá à medida que assumem como palavra de ordem, não a defesa de tarefas concretas ou programáticas, mas a defesa de uma direção política, que nesse caso já provou não ser consequente. A discussão em torno do que Lula apresentou em seu discurso em São Bernardo como programa: 1) a regulação e democratização dos meios de comunicação; 2) a defesa da Lava Jato como forma de investigação e prisão dos ricos; 3) Assembleia Constituinte e 4) taxação das grandes fortunas; poderiam dar base a uma real Frente Única. Será que ele está disposto em organizar uma campanha com base nestes pontos programáticos? Sabemos que não. Por isso dilui o programa e converte a sua própria defesa em estratégia da frente.

Uma frente em defesa da “democracia” em abstrato, que endossa a política do PT no governo e que tem como principal bandeira “Lula Livre” mais parece adesismo. Fizemos e seguiremos fazendo Frente Única com o PT e a CUT contra a reforma trabalhista, previdenciária, contra o fascismo também, mas não em defesa da política do lulismo que traiu a classe trabalhadora. Não nutrimos ilusões nesta direção política. Há que se ter cuidado com os impressionismos neste momento. Defender que Lula seja candidato, denunciar as manobras das elites e lutar contra os planos de Temer são parte de um todo. Ser unilateral sobre a conjuntura complexa que enfrentamos e perder a independência política sob a pressão do lulismo pode levar a uma perigosa diluição.


1 Termo cunhado por Florestan Fernandes. Ver A ditadura em questão (1982), Que tipo de República? (1986) e Nova República? (1986).

2 Ver: Alain Badiou: El despertar de la historia (2012)


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