A prisão de Temer e a vacilação na esquerda

Posturas vacilantes são exemplos da confusão e do propagandismo que tanto nos atrapalham na disputa pela opinião pública.

Bruno Magalhães 27 mar 2019, 11:51

As recentes prisões de Michel Temer, de seu ex-ministro Moreira Franco e do “operador financeiro” coronel Lima movimentaram o cenário político brasileiro. Mesmo após a concessão de habeas corpus que libertou os denunciados, este movimento aprofundou a crise de governabilidade vivida nos primeiros meses do governo Bolsonaro e expôs novamente a atitude vacilante de diversos setores de esquerda perante a luta contra a corrupção.

Corrupto notório, Temer foi um presidente com péssimos índices de aprovação e chegou perto de ser derrubado após a divulgação de suas escusas relações com Joesley Batista e Eduardo Cunha (marcadas pela célebre frase “tem que manter isso, viu?”). O fim de seu foro privilegiado era motivo de risco debatido desde o ano passado justamente porque a quantidade de provas de seu envolvimento com esquemas de corrupção é enorme. Sua prisão recente se deu por denúncias de desvios de recursos de obras públicas da usina nuclear de Angra 3, consideradas bem menos graves que as suspeitas que pairam sobre suas interferências no Porto de Santos.

A prisão foi fruto de mais uma ação política da Lava Jato, ocorrida logo após derrotas dos procuradores de Curitiba no STF e de um grave atrito entre Sérgio Moro e Rodrigo Maia. A Reforma da Previdência sofreu um revés imediato: a escalada de guerra entre Maia e o Executivo atinge diretamente a tramitação do projeto e atrapalha o plano de retirada de direitos, desorganizando ainda mais a articulação parlamentar de Bolsonaro. O governo tentou se blindar do caso declarando apoio às investigações, contrapondo sua atual gestão “ideológica” ao anterior pragmatismo de Temer e escondendo os evidentes os casos de corrupção envolvendo também o PSL e a família Bolsonaro.

Mas algo que chamou a atenção neste cenário complexo foi a grande vacilação de diversos setores de esquerda perante a prisão de Temer. Importantes organizações políticas adotaram uma postura de avestruz, apresentando notas jornalísticas e apenas descrevendo os dois lados (os crimes de Temer e os interesses da Lava Jato) para na prática se absterem de uma posição concreta. A defesa da liberdade de Temer, consequência lógica da crítica da prisão, não foi levada adiante à exceção do PT, mas a neutralidade demonstrou a dificuldade de muitos setores em se posicionar perante as contradições da conjuntura política nacional.

Estas posturas vacilantes são exemplos da confusão e do propagandismo que tanto nos atrapalham na disputa pela opinião pública. Muitas vezes a extrema-direita leva a melhor no debate social simplesmente porque apresenta posições concretas (ainda que esdrúxulas) enquanto a esquerda cai em um labirinto argumentativo incompreensível. Pensar sobre esta vacilação, que hoje nos leva até a incrível defesa de Temer, é importante para pensarmos os caminhos futuros da resistência e da construção de uma alternativa.

O contexto da prisão

As provas de corrupção contra o ex-presidente são contundentes, muitas inclusive já reveladas durante a campanha pelo Fora Temer que marcou seu período de presidência. Da mesma forma, há pouca dúvida de que sua prisão foi um instrumento de reavivamento da Lava Jato e retaliação de seus operadores contra Rodrigo Maia e um setor da direita tradicional. A disputa sobre o “pacote anticrime”, a derrota no julgamento do STF sobre o caixa 2, a recusa da indicação de Ilona Szabó, a derrota no decreto sobre a posse de armas de fogo, além da desmoralização da “fundação da Lava Jato” por Raquel Dodge, são fatos que estão no contexto da prisão de Temer. Isto é inegável.

O recente enfraquecimento enfrentado por este setor do judiciário levou a uma resposta juridicamente controversa já repetida outras vezes. As táticas midiáticas da Lava Jato, como os vazamentos e as prisões espetaculares, foram reconhecidas como parte de sua política por integrantes da própria operação que muitas vezes atuaram ilegalmente, como no vazamento do áudio entre Dilma e Lula. O mesmo procedimento acontece novamente, e a jogada da Lava Jato com a prisão de Temer traz de volta os holofotes para a operação. O fato de que Moreira Franco seja sogro de Rodrigo Maia não parece mero detalhe, ainda que os dois sejam de grupos políticos diferentes.

A prisão de Temer foi ruim para o governo, que precisa de estabilidade para aprovar a Reforma da Previdência. A reforma é a principal política do ano para o conjunto unificado da burguesia e será diretamente afetada por esta disputa entre o governo e o Congresso, com a intenção noticiada do “centrão” parlamentar em retomar o projeto anterior do próprio Temer (retirando a capitalização) sendo uma grande alteração no proposto por Paulo Guedes. É fato que a queda de 15% de Bolsonaro nas pesquisas de aprovação, a crescente divulgação das mudanças na previdência entre a população, às crises enfrentadas no governo e a falta de negociação com as burocracias sindicais afetam diretamente a reforma e melhoram nossas possibilidades de luta.

A hipótese de fortalecimento de Bolsonaro com a prisão de Temer é fraca. Ainda que seu filho Carlos tenha relação direta com o conflito e o tema possa tirar momentaneamente o foco dos escândalos de corrupção do governo atual, Bolsonaro procurou blindar o governo e não estremecer ainda mais a relação com o MDB e o DEM. Assuntos como o “laranjal do PSL” e a queda de popularidade perdem lugar no noticiário, ajudando o governo no curtíssimo prazo, mas o conflito aberto atrapalha bastante quando se tem como perspectiva o restante de sua gestão.

As posições contrárias ou relativistas perante a prisão de Temer tem distintas motivações que acabam se ligando na mesma argumentação, indo do levantamento de interesses da Lava Jato ao debate sobre o garantismo penal. Estes elementos são parte importante da análise, mas não são os únicos, e o ato de relatar o que há por trás da Lava Jato ou de expor o problema estrutural do punitivismo no estado burguês não anula nenhum dos fatos públicos que torna o ex-presidente corrupto perante a sociedade. Pelo contrário, demonstra a necessidade de uma política ativa em um cenário cada vez mais turbulento, debatendo as contradições da realidade ao invés de ignorá-las.

Lava Jato e politização do judiciário

Um argumento bastante utilizado pelos críticos da prisão de Temer é a instrumentalização do devido processo legal promovida pela Lava Jato em prol de seu programa político próprio. Este argumento é verdadeiro e os fatos citados acima não parecem ser uma simples coincidência com os prazos processuais, e a Lava Jato opera de forma cada vez mais coordenada com os interesses políticos de seus principais operadores encabeçados por Sérgio Moro.

Apesar de verídico, o argumento é incompleto. O problema da denúncia exclusiva da “politização do judiciário” está na generalização (como se houvesse unidade política neste poder) e na anulação do restante da conjuntura. É evidente que a Lava Jato tem uma posição política, assim como também Gilmar Mendes e o setor “garantista” do STF, assim como Raquel Dodge na PGR e assim como todos os outros operadores do direito no Brasil e no mundo. Notar a politização da Lava Jato e ao mesmo tempo ignorar a politização de Gilmar Mendes demonstra a parcialidade com a qual o problema é tratado, ignorando que as posturas jurídicas hegemônicas anteriormente também representam uma forma de politização.

Ao longo dos governos anteriores também se poderia denunciar a politização do STF e do STJ, que permitia a liberdade indefinida não somente de políticos corruptos, mas de qualquer um que pudesse pagar pelas manobras jurídicas dos grandes escritórios de advocacia. Um exemplo foi o caso Gulliver, no qual o então governador da Paraíba Ronaldo Cunha Lima deu três tiros em um desafeto político em plena luz do dia em um restaurante em João Pessoa e utilizou-se da tática do “elevador processual” para nunca ter sido preso. Outro exemplo fora da política foi o do jornalista Pimenta Neves, diretor de redação do jornal Estado de São Paulo que matou a ex-namorada em público no ano 2000 e cumpriu penas irrisórias.

Toda ação jurídica é política. O judiciário é o instrumento de normatização do estado burguês e através dessas normas organiza a exploração da sociedade capitalista. O “garantismo penal” aplicado aos poderosos sempre foi a regra no Brasil, que hoje se enfrenta contra o “punitivismo” da Lava Jato.

Denunciar a politização de um ou outro campo jurídico faz pouco sentido e lembra as denúncias débeis da extrema-direita sobre a anterior politização do Itamaraty ou do MEC. Um crítico diria que o Itamaraty e o MEC são “politizáveis” porque estão no âmbito do Executivo, evidenciando uma posição crente no judiciário imparcial que exemplifica a penetração da racionalidade própria do estado burguês entre a militância de esquerda. Como este argumento da politização do judiciário não encontra respaldo fora do próprio conjunto das normas jurídicas, seus defensores iniciam uma jornada de defesa de princípios jurídicos que terminam por reafirmar o papel do judiciário e do estado burguês.

Princípios como a presunção de inocência ou o devido processo legal são importantes conquistas democráticas que devem ter como balizador fundamental o recorte de classe, assim como todas as outras garantias jurídicas. O habeas corpus foi instrumento importante na defesa de presos políticos durante a ditadura, ainda que também seja largamente utilizado por criminosos de colarinho branco. A posição dos socialistas deve estar sempre em defesa da classe trabalhadora independentemente de formalismos jurídicos, denunciando as desigualdades do capitalismo e criticando a hipocrisia da justiça burguesa.

A ilusão de que a defesa do garantismo penal para o constitucionalista Temer reforça este mesmo princípio para as classes populares só faz sentido caso se aceite a máxima de que todos são iguais perante a lei, o que não é verdade. A liberdade de Temer não muda em nada a política de encarceramento da juventude negra, e a defesa generalizada do princípio jurídico sem a análise de sua aplicação concreta é um formalismo que demonstra somente a fidelidade à forma jurídica estatal.

O problema do punitivismo

Os princípios jurídicos não devem ser encarados de forma dogmática, de um lado são essenciais contra a criminalização dos mais pobres enquanto por outro são ferramentas em prol de corruptos poderosos. São uma faca de dois gumes que necessita de um recorte de classe que aponte seu papel em cada situação específica. Esta posição escandaliza muitos operadores do direito, mas é a única possível para os marxistas.

O punitivismo é o outro lado da moeda da justiça burguesa, a complementação do discurso cínico que prende e mata pobres em nome da paz e da justiça. A situação dos presídios e a falácia da reintegração social são provas da reprodução em novos marcos da mesma exploração de séculos contra a classe trabalhadora negra, e a violência estatal operada contra presidiários e suas famílias é das mais degradantes.

Nos marcos da justiça burguesa, não há dúvidas de que a justiça restaurativa apresenta propostas bem melhores para o tratamento da violência do que o punitivismo clássico. O processo da fala e da escuta, muito aprofundado pelo campo da psicanálise, inverte a posição até então estática das vítimas silenciadas e questiona a norma da vingança estatal. A lógica punitivista contemporânea segue a mesma lógica contratual da circulação das mercadorias, na qual uma entidade externa regula as relações de violência através de um sistema de equivalências, fazendo o violento ser violentado e declarando uma igualdade formal entre os polos do conflito enquanto a vítima não recebe nenhuma atenção ou protagonismo.

Ir contra o punitivismo é tarefa dos socialistas, mas sempre a partir da perspectiva de classe. Não defendemos um antipunitivismo abstrato que ignora as diferenças entre humildes e poderosos, entre penitenciárias e carceragens da Polícia Federal. Não há possibilidade de justiça restaurativa com políticos corruptos que continuam disputando o poder mesmo quando presos, suas penas ou sanções são de outra natureza ainda que se utilizem dos mesmos artigos da lei. Também não se pode igualar a dor e a potência presentes no diálogo entre violadores e vítimas (é disso que trata a justiça restaurativa) com os cínicos depoimentos de corruptos contumazes preocupados em manter parte de suas fortunas.

As organizações socialistas que vacilam perante a prisão de Temer caem nessa armadilha jurídica que nivela as classes, evidenciando o esquematismo de setores honestos e o oportunismo da velha esquerda. Nosso critério perante qualquer ação do judiciário deve ser o interesse da classe trabalhadora, cuja percepção da vida real muitas vezes está à frente daqueles que procuram dirigi-la.

Nossa posição perante o povo

Como os princípios jurídicos não são parte de nossas premissas, nossas posições perante seus fenômenos devem partir das necessidades imediatas dos trabalhadores em cada conjuntura. Temos como exemplo da luta contra o foro privilegiado, muito importante contra a impunidade nos governos anteriores e que hoje pode mudar de caráter tendo em vista os riscos de fechamento do regime político.

A aliança entre Bolsonaro e a Lava Jato é nefasta, mas vacilar sobre a punição de corruptos nos faz cair na armadilha preparada por estes mesmos setores, entregando à extrema-direita um papel protagonista (e hipócrita) contra a corrupção enquanto nos afundamos em debates abstratos e tergiversações.

A prisão de Lula deve ser criticada porque tem uma natureza diferente daquela de Temer. Neste caso trata-se de defender sua liberdade porque a prisão está diretamente relacionada ao impedimento de participação nas eleições. A manobra que retirou Lula da disputa, permitindo a eleição de Bolsonaro, deve ser criticada pelo que representa politicamente mais do que pela denúncia de desvios processuais ou defesa de sua suposta inocência.

As manobras políticas da Lava Jato (como a prisão de Lula), o incremento da repressão às lutas sociais e a redução do espaço democrático operado através da aliança Bolsonaro-Moro são perigos contra os quais devemos buscar grande unidade, inclusive com Gilmar Mendes. Entretanto, isso não pode significar a aceitação da narrativa da velha política nem das contradições do regime colapsado, uma posição independente é muito necessária nessa situação difícil.

A tarefa atual dos socialistas, construir uma alternativa de poder que responda concretamente tanto sobre a crise atual do capitalismo como sobre a crise da própria esquerda, só se realizará se nossas posições perante o povo forem nítidas e coerentes. Infelizmente, muitas vezes as organizações de esquerda reproduzem um jogo de espelhos no qual se refletem umas às outras em uma dinâmica própria capturada pelos marcos estatais e apartada dos trabalhadores. As posições sobre a prisão de Temer foram um exemplo disso, com declarações confusas e vacilantes enquanto os problemas do governo aumentavam e toda a população aprovava a punição do golpista corrupto.


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