Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome

Uma análise crítica da proposta de reforma da previdência e das alterações no BPC.

Isaque Castella 16 abr 2019, 15:07

Quando falamos em sociedades estamentais, a primeira coisa que talvez passe pela cabeça de muitos de nós seja a divisão social no mundo feudal, marcada pela impossibilidade de movimentação para além de condições perpétuas, impostas pelo nascimento, a saber, pelos lugares de origem. Todavia, se repararmos bem o contexto de sociedades como as do século XXI, dúvidas não restarão quanto à proximidade de contemporâneos e medievais.  Mesmo após as revoluções burguesas, a formação dos Estados liberais modernos e o posterior desenvolvimento de paradigmas outros de Estado de direito, diante das lutas em torno de demandas sociais, econômicas, participativas, culturais, ecológicas, continuamos no rastro de relações sociopolíticas pré-modernas, calcadas na estaticidade típica dos antigos.

​Se o artigo 3º, inciso III, da Constituição Cidadã de 1988, estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, o que vemos, na prática, é, pelo contrário, o aumento do enorme abismo separando as classes sociais, a cristalização de barreiras aparentemente intransponíveis entre elas, o que se verifica de modo concomitante ao precipício, de que fala Boaventura de Sousa Santos, interposto entre a consagração de direitos fundamentais e a performatividade de tais direitos, associada à dimensão da efetividade.

​Se soma, hoje, a esse grande desafio o permanente e incessante ataque visando à própria desfiguração dos direitos fundamentais sociais no Brasil. Padece de violenta inconstitucionalidade qualquer proposta que promova o retrocesso social, vedado pela ordem constitucional. É o caso da PEC 6/2019 em diversas disposições. Trata-se da debatida Reforma da Previdência.

​Tratando também de mudanças de regras da assistência social, um dos pontos mais cruéis e pouco comentado da Proposta de Emenda à Constituição, de autoria do governo Jair Bolsonaro (PSL), é justamente com relação ao benefício assistencial de prestação continuada, garantido aos idosos com 65 anos ou mais e às pessoas com deficiência, desde que comprovem a ausência de meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida pela família. 

​A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) estabelece como requisito, para o recebimento do benefício correspondente a um salário mínimo, que seja a renda mensal per capita do grupo familiar inferior a ¼ do salário mínimo vigente, critério flexibilizado, contudo, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo diante do afastamento da aplicação exclusiva dessa condição de miserabilidade, a PEC de iniciativa do Executivo reintroduz a exigência e mais: estabelece patrimônio familiar máximo, aprioristicamente fixado em R$ 98.000,00. 

​Ora, não se trata da criação de um critério absurdo apto a excluir diversos idosos e pessoas com deficiência, em situação de vulnerabilidade, do acesso ao benefício assistencial? É sabido que imóveis em áreas periféricas e de baixíssimo padrão superam facilmente o limite patrimonial imposto como requisito objetivo para comprovação da miserabilidade.

​Como se não bastasse a restrição da possibilidade de recebimento do benefício de prestação continuada, o valor do benefício também é alvo de alterações claramente prejudiciais aos que dependem da assistência para a subsistência, enquanto garantia mínima da dignidade humana. Com a PEC 06/2019, o valor do BPC para idosos vulneráveis, entre 60 e 70 anos, é reduzido em mais da metade, passando a ser equivalente a 400,00 reais. Apenas quando da chegada aos 70, o idoso poderá receber o mínimo vigente.

​Diante dessas mudanças, resta evidenciado que a garantia do mínimo existencial para que as pessoas de baixa renda possam sobreviver, e terem alguma chance de amenizarem a condenação a um destino pré-estabelecido pela origem humilde, parece não ser uma preocupação do novo governo brasileiro, eleito com um projeto (inacreditavelmente!) contra os direitos fundamentais. Em que democracia um Presidente da República, eleito democraticamente, se orgulha de prometer governar na contramão da ordem jurídico-normativa constitucional?

​A grande questão que se coloca diante da absurda intenção de se fazer com que os pobres arquem, de forma completamente distorcida e desproporcional, com os custos da crise econômico-financeira é a seguinte: até que ponto um projeto de país pode ser desenvolvido a partir da restrita perspectiva do confronto entre receitas e despesas? No combate a um cenário de rombo fiscal, vale tudo para a busca do equilíbrio financeiro ou seria mais justa e ética a consideração de alternativas que levem em conta também a realidade social, o direito ao futuro e os contextos a longo prazo? 

De uma resposta estou convencido: definitivamente, gente não é pra morrer de fome. Sacrificar a prestação civilizatória estatal mínima em nome da frieza dos números e da ditadura do mercado constitui afronta direta ao pacto político-jurídico vigente e, digo mais, a qualquer compromisso com a justiça, a saber, aquela que, por mais que se confunda com o direito, sempre o excede.


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