A Europa e a clivagem de classe

A forma como a União Europeia foi construída funciona objetivamente para beneficiar os mais ricos.

Thomas Piketty 26 maio 2019, 16:15

Três anos após o referendo sobre o Brexit, e às vespéras de novas eleições europeias, a Europa ainda suscita um ceticismo muito forte, em particular no seio das categorias sociais mais carentes.

O mal é profundo e antigo. Em todas as consultas referendarias dos últimos 25 anos, as classes populares exprimiram sistematicamente seu desacordo com a construção europeia tal como ela foi proposta, enquanto as classes mais ricas e mais favorizadas a apoiavam.

Na ocasião do referendo sobre o Tratado de Maastricht, em 1992, constata-se que os 60% dos eleitores que dispunham de renda, patrimônio ou diplomas mais baixos votaram pelo não, enquanto que os 40% de eleitores do alto preferiam o sim, com uma lacuna tão forte que o sim ganhou por curta vantagem (51%). A mesma coisa aconteceu com o Tratado Constitucional em 2005, ainda que desta vez apenas os 20% mais alto apoiava o sim, enquanto que os 80% mais baixo apoiavam o não, dando uma clara vitória a este último (55%). Idem para o referendo sobre o Brexit, em 2016: desta vez, os 30% do alto apoiavam a manutenção na EU com entusiasmo. Mas como os 70% mais baixo preferiram a saída, esta ganhou com 52% dos votos.

Como explicar que os votos na União Europeia se caracterizam sempre por uma clivagem de classe tão marcada? Este resultado é tanto menos vidente já que a estrutura do voto para os diferentes partidos parou de ter, ao longo do tempo, uma estrutura classista tão clara, com as três dimensões de clivagem social (diploma, renda, patrimônio) empurrando a mesma direção. Desde os anos 1970-1980, os mais diplomados apoiaram claramente os partidos de esquerda nos dois países, enquanto que os de maior renda e patrimônio continuaram a apoiar mais fortemente os partidos de direta, eles mesmo em recomposição. Entretanto, nas votações europeias de 1992, 2005 e 2016, as elites intelectuais e econômicas dos dois campos se encontraram no apoio à EU tal como ela existe, enquanto que as categorias modestas de esquerda e de direita a rejeitaram.

Para explicar essa situação, as classes mais favorizadas tem uma explicação: as categorias populares seriam nacionalistas e xenófobas, quem sabe mesmo atrasadas. Acontece que a xenofobia do povo não é mais natural que aquela das elites. Há uma explicação muito mais simples: a União Europeia, da forma que ela foi construída ao longo das últimas décadas, se apoia sobre a concorrência generalizada entre territórios, sobre o dumping fiscal e social em favor dos atores econômicos mais móveis, e funciona objetivamente em benefício dos mais favorizados. Enquanto a União Europeia não tomar medidas simbólicas fortes para reduzir as desigualdades, como, por exemplo, um imposto comum que pese sobre os mais riscos que permita abaixar aquele dos mais pobres, essa situação continuará.

A visão hayekiana ainda predominante

Essa oposição entre diferentes visões da Europa não é nova, e vale ser recolocada em perspectiva histórica. Em 1938, jovens militantes lançam o movimento Federal Union no Reino Unido. Aderido rapidamente por figuras universitárias como Beveridge e Robbins, ele inspirou a proposição de criação de uma União Federal Franco-Britânica formulada por Churchill em junho de 1940, recusada pelo governo francês então refugiado em Bordeaux, que prefere dar plenos poderes a Pétain. É interessante notar que um grupo de universitários britânicos e franceses se reuniram em Paris em abril de 1940 para estudar o funcionamento de uma possível união federal, no início a nível franco-britânico, depois alargada a nível europeu, sem chegar a um acordo.

A visão mais impregnada de liberalismo econômico foi defendida por Hayek, que apoiava uma pura união comercial fundada sobre os princípios da concorrência, da liberdade das trocas e da estabilidade monetária. Robbins também tinha uma linha bem próxima, visando a possibilidade de um orçamento federal, e em particular de um imposto federal sobre as heranças em caso da liberdade das trocas e da livre circulação das pessoas não fosse suficiente para difundir a prosperidade e reduzir as desigualdades. Outros membros do grupo tinham visões muito mais próximas do socialismo democrático, a começar por Beveridge, adepto dos seguros sociais, assim como asocióloga Barbara Wootton, que propunham um imposto federal sobre a renda e heranças, com uma taxa superior a 60%, dublê de um sistema de renda e herança máxima.

Os participantes da reunião se dividem a partir de um constante desacordo sobre o conteúdo econômico e social da união federal planejada. Todos esses debates ao redor do movimento Federal Union fizeram eco na Europa inteira. Altiero Spinelle, militante comunista então detido nas prisões de Mussolini, neles se inspirou, por exemplo, para redigir em 1941 seu Manifesto por uma Europa Livre e Unida, o Manifesto de Ventotene (batizado a partir do nome da ilha na qual estava preso)

Não existe, contudo, nenhuma fatalidade na Europa atual continuar impregnada de uma visão hayekiana. O estandarte europeu é hoje instrumentalizada por pessoas que se servem dele para impor sua política de classe. Resta apenas a nós se lembrar que a Europa poderia se organizar de outra forma, como já pensaram Wooton, Beveridge ou mesmo Robbins há quase 80 anos.

Artigo originalmente publicado no Le Monde em 11 de maio de 2019. Tradução da Revista Movimento.

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