China 1989: Os manifestantes, o Partido e o massacre de Beijing

Sobre os trinta anos do massacre na Praça da Paz Celestial.

Simone Pieranni 4 jun 2019, 17:46

Todos acreditamos saber algo dos acontecimentos que se sucederam na China, em Beijing, há 30 anos. Falamos habitualmente dos “eventos”, do que ocorreu na Praça de Tianamen em termos de um relato simples. Protestos e demandas de reformas democráticas por parte de estudantes universitários, que o Partido Comunista enfrentou com uma cruel repressão, o que conduziu ao “massacre de Tiananmen”.

Sabemos también que Beijing apagou de modo efetivo esses dias da história oficial: ninguém fala deles e não se pode encontrar informações na internet chinesa “revisada”. Além disso, não será fácil hoje em dia encontrar uma pessoa jovem que saiba algo sobre este tema. Não se duvida de nenhum destes fatos. Entretanto, a história do que passou durante esses dias de maio e junho de 1989 entranha na realidade uma mescla mais complexa de elementos do que habitualmente se conhece.

Houve muita gente que protestou nas ruas durante esses dias, tanto universitários como gente de outras categorias sociais. Evidentemente, costuma se dar a cobertura midiática mais ampla aos “líderes” dos protestos, inclusive anos depois dos acontecimentos. Alguns deles escaparam da repressão graças à solidariedade de muitos outros; alguns conseguiram chegar a Hong Kong e dali voaram para os Estados Unidos.

Alguns dentre eles contaram sua experiência daqueles dias. A vida de alguns mudou completamente: uns se tornaram milionários, outros se converteram ao cristianismo. Entretanto, se sabe muito menos das histórias das pessoas que morreram (trezentas pessoas, de acordo com os números do Partido Comunista, mas muito mais, na casa dos milhares, de acordo com ativistas, famílias das vítimas e uma série de organizações humanitárias), ou acerca dos milhares de detidos (o último em ser liberado, que era então trabalhador de uma fábrica, saiu da prisão em 2016). Pode-se saber mais sobre muitos dos protagonistas dosacontecimentos no livro de Louisa Lim,

The People’s Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited.

Nos relatos midiáticos, houve escassas menções dos problemas inerentes que possuía o “movimento estudantil” (a este respeito, Beijing Coma de Ma Jian constitui um livro excelente para chegar a entender os diversos erros e limitações que apresentavam os manifestantes estudantis).

Ainda menos gente sabe —ou, se o sabem, julgam digno de ressaltá-lo

 — as particulares condições econômicas e o “clima” que reinava nas fábricas durante esses anos, fatores que seguem sendo cruciais para a China, tal como é hoje em dia. Adicionalmente, a decisão do Partido Comunista de lançar o exército contra as pessoas que protestavam nas ruas e praças teve lugar num momento dramático para o PCCh, pois tinha que lidar com as sequelas da Revolução Cultural, que havia terminado somente uma década antes.

As reformas postas em prática por Deng Xiaoping estavam mudando o país a um ritmo veloz, o que conduziu, entre outras coisas, a novos critérios para valorizar a “eficiência” de quem se encontrava em posições de poder, diferentes dos do passado.

O partido estava mudando de um modelo de “gestão política” do país para um modelo de “gestão econômica”: este processo causou uma série de problemas e uma generalização da corrupção, o qual foi uma das muitas razões dos protestos durante esse período.

Decido a este complexo cenário, “os fatos” em torno da Praça de Tiananmen ainda são estudados pelos pesquisadores, e às vezes se descobrem novas revelações.

Entre a multidão de diferentes interpretações, vereditos e excessivas simplificações comuns, a sequência básica dos acontecimentos segue sendo a mesma: o massacre cometido contra estudantes, trabalhadores e cidadãos de Beijing; a dramática decisão do Partido Comunista de proceder a medidas repressivas, ao final de uma luta interna que marcaria para sempre o rumo do PCCh; e atrás de tudo isso, a “primavera chinesa”, que fora o resultado de um período de intensa e vívida atividade cultural e política durante os anos 80.

O ano 1989 constitui um divisor de águas na recente história da China, pois foi este o ano no qual o contrato social entre o povo chinês e o Partido Comunista se viu efetivamente transformado, levando o país à senda de crescimento econômico que alçou sei status como poder global de grande evergadura hoje.

Começar pelo final: as repercussões do massacre de Beijing

Em junho de 1998, o presidente norte-americano Bill Clinton viajou à China e assistiu a uma cerimônia de boas-vindas na Praça de Tiananmen em Beijing. A mídia estadunidense criticou o presidente,  acusando Clinton de respaldar a tentativa do Partido Comunista de apagar da memória os acontecimentos de 1989. Efetivamente, o governo Clinton estava tentando justamente isso, em favor da política de aproximação com a China depois do embargo que lhe foi imposto depois do massacre.

A este respeito, resulta interessante advertir que, desde 1949, Washington havia se mostrado sempre muito preocupado pela China durante sua fase  “maoísta”. Por óbvio, tratava-se de um receio ideológico, baseado no temor de que o comunismo se estendesse cada vez mais. Depois, ante a abertura realizada por Deng Xiaping, os EUA — sobradamente encantados com a oportunidade de romper a frente comunista e isolar a União Soviética — começaram um longo processo de aproximação com a China, que terminou com a entrada de Beijing na OMC em 2001: o ano em que se sucederam os massivos protestos contra a globalização em Gênova, e também o ano em que a história dos Estados Unidos estava prestes a mudar para sempre.

Para apoiar a integração da China nas instituições econômicas mundiais, os EUA ocultaram debaixo do tapete episódios como os de 1989 (contribuindo assim para realçar o perfil de um país que chegaria a ser visto, hoje em dia, como “inimigo”).  Os norte-americanos demonstraram estar equivocados muitas vezes em sua avaliação da probabilidade de que as reformas econômicas trouxessem a democracia de maneira automática.

Certamente, os acontecimientos de 1989 demonstram justamente o contrário. O que ocorreu em 4 de junho de 1989 acabou por ser um precedente sancionado do caminho autoritário empreendido pelo capitalismo global desde então. De acordo com Naomi Klein, foi precisamente este “choque” o que impulsionou finalmente a China pelo caminho neoliberal em direção à globalização.

Se voltarmos a 1998, com a visita de Clinton à China e a controvérsia acerca do lugar que representavam simbolicamente os acontecimientos de 1989, Jay Mathews, repórter do Washington Post que estava presente em Beijing em 1989, sentiu a necessidade, dez anos depois dos fatos que rodearam Tiananmen, de pôr em relevo uma série de fatos cruciais, começando por um debate sobre um ponto que poderia parecer trivial a princípio, mas que resulta de fato bastante importante:  a saber, que vincular la palavra “massacre” com “Tiananmen” é um erro, pois, como escreve Mathews, “pelo que pode se determinar a evidência disponível, não morreu ninguém nessa noite na Praça de Tiananmen”.

Mathews não levava em consideração o fato de que o exército matou, desde cedo, gente nessa noite: de acordo com muitos outros testemunhos, jornalistas e demais, reconstruiu a seguinte sequência de acontecimentos: “Morreram nessa noite centenas de pessoas, a maioria deles trabalhadores e transeuntes, mas em lugar distinto e em circunstâncias diferentes. O governo chinês estima que se produziram trezentos mortos. As estimativas ocidentais são algo mais elevadas. Muitas vítimas foram tiroteadas baleasas nos arrededores de Changan Jie, a Avenida da Paz Eterna, como a um quilômetro e meio da praça, e em enfrentamentos dispersos em outras partes da cidade, onde, é necessário acrescentar, muitos soldados foram golpeados ou queimados por trabalhadores irados”.

Deveríamos deicar muito claro este fato, ninguém — à parte alguns teóricos da superconspiração, ou recorrendo a um termo  melhor, dos negacionistas — não há dúvida alguma do fato de que ocorreram estes eventos violentos na China em 1989, tanto em Beijing como em outras cidades.

Não obstante, tal como apontava Mathews em seu artigo, se reconhecemos a “excessiva simplificação” dos fatos realizada pela mídia, podemos chegar a uma compreensão do complexo conjunto de circunstâncias do que se passou em 1989.

“O problema”, escreve Mathews, “não repousa tanto em localizar os assassinatos no lugar equivocado mas em sugerir que a maioria das vítimas eram estudantes”. Tal como escriben George Black y Robin Munro en su libro Black Hands of Beijing: Lives of Defiance in China’s Democracy Movement, “lo que tuvo lugar fue una matanza, no de estudiantes sino de trabajadores y residentes corrientes, precisamente el objetivo pretendido por el gobierno chino”.

Black e Munro apontam ainda assim que a repressão mais violenta ocorreu nos bairros ocidentais do raio de Beijing, não Praça de Tiananmen. Jonathan Fenby, historiador e expert em Asia e China, coincide também que ali foi onde se produziu o verdadeiro “massacre”, contra os trabalhadores e os residentes locais. Centenas de trabalhadores formam massacrados nas ruas. Esta é a razão pela qual uma série de especialistas acadêmicos e dissidentes chineses preferem a expressão “massacre de Beijing” à “massacre da Praça de Tiananmen”.

O Partido

Como reagiu o Partido Comunista aos crescentes protestos, ocorridas simultaneamente à visita de Mikhail Gorbachev à China no final de maio? Este é um dos aspectos mais interessantes quando se examina a situação em 1989. O Partido Comunista atravessou muitas fases diferentes nesse período, como pode se ver nos sucessivos expurgos e nas lutas internas sem restrições, no estabelecimento de um “Comitê Permanente” paralelo, composto pelos chamados ‘oito imortais’, e até na nomeação, por meios tecnicamente inconstitucionais, de Jiang Zemin, prefeito de Xangai, como novo Secretário do PC.

O fato de que os mortos foram em sua maioria trabalhadores nos permite compreender melhor o modo como o Partido filtrou a informação chegada do exterior, nem tanto e não só da própria Praça de Tiananmen. Em 1989, o Partido já estava há dois anos trabalhando para marginalizar a influência política de Hu Yaobang. Se tratava de um reformista considerado demasiadamente indulgente com os protestos que vinham se convertendo em um traço recorrente na China desde 1986.

Hu morreu em 15 de abril de 1989 de um ataque no coração durante uma reunião do Partido, e o luto por sua morte se converteu em um acontecimento que desencadeou os protestos em grande escala dos estudantes, que ocuparam nesse dia a Praça de Tiananmen.

Deng Xiaoping havia decidido que deveria expurgar Hu, ainda que este último tenha sido escolhido por Deng mesmo como seu sucessor (foi preciso esperar até 2005 para que a imagem de Hu ficasse finalmente reabilitada). O ancião Deng era o grande manipulador dos fios do teatro de marionetes no seio do PCCh, ainda que vivesse já então en sua residência particular, longe de Zhongnanhai, o Kremlin chinês. Estava rodeado, entretanto, de seu pessoal, que podia fornecer-lhe informação instantânea acerca do que se sucedia no país.  

A casa do ancião Deng seria cenário da reunião mais importante durante esses frenéticos dias de junho de 1989. Deng, veterano político e reconhecido estrategista, captou de imediato a natureza do problema: se os protestos estudantis se extendiam aos trabalhadores, a situação se tornaria desastrosa para o PCCh. 

Deng insistiu repetidamente que deveriam ser feitas reformas, mas que era necessário ter ordem para que isso passasse: a população deveria estar trabalhando, não protestando.  

Pensou que tinha conseguido arrumar a situação marginalizando Hu Yaobang, mas seu substituto, Zhao Ziyang, se sentia predisposto às reformas, e isso prontamente se converteu num problema para os “oito imortais”.

Em 2001 foram publicados Os papéis de Tiananmen, [The Tiananmen Papers], um livro que contém material de extraordinária importância para uma melhor compreensão  do que estava se passando dentro do PCCh por esses dias.

Como escreveu Marina Miranda num artigo de 2001 publicado em Mondo Cinese, o livro é “uma coleção de documentos neibu, ou seja, altamente confidenciais e cuja circulação  ficava restringida ao seio do Partido Comunista Chinês”. Estes documentos de alto secredo deve ter sido vazado por alguém que gozava de um papel privilegiado dentro do mecanismo interno do Partido.

Quem os vazou, supostamente “um alto funcionário do Partido”, decidiu adotar um particular pseudônimo: Zhang Liang. “Esta escolha do pseudônimo”, escreve Miranda, “possui um claro significado político: é o nome de um estrategista falecido no ano 187 a.C., célebre por seu ódio em relação à temível dinastia Qin (221-207 antes de Cristo), cujo tirânico governo se compara frequentemente com o regime do Partido Comunista”. Mao acabou associado também à dinastia Qin, da mesma forma que Xi Jinping em época mais recente.  De acordo com um  especialista acadêmico em China, Kai Vogelsang, os Qin nao só puseram em prática a primeira ideia do Império Chinês tal como hoje o concebemos habitualmente, mas que criaram também um sistema social caracterizado por un nível extremo de vigilância. 

Ao olhar para os acontecimentos de 1989, os  documentos dos Tiananmen Papers resultam de crucial importância. São muitos os que debatem sobre sua autenticidade, no entanto. A este respeito, Miranda, junto a outros muitos especialistas acadêmicos na China, sustentam que se pode dar por suoerada a controvérsia, pois temos muito boas razões para confiar na reputação dos especialistas acadêmicos que copiaram e publicaram os documentos: “podemos, em qualquer caso, tomar a reputação acadêmica séria da qual gozam os compiladores do livro como garantia da autenticidade do material: Perry Link, professor de Lengua e Literatura Chinesas na Universidade de Princeton, e Andrew J. Nathan, Professor de Ciência Política na Universidade de Columbia”.

Os anos 80 e os protestos

Ilaria Maria Sala, que estava presente em Beijing em 1989, escrevia recentemente acerca do espírito dessa “primavera chinesa”: 1989 foi o ponto culminante de um período enormemente notável no final dos anos 80: “o país encontrava-se em meio a uma agitação social, política e cultural”, escreve Sala, “um mundo ébrio de possibilidades: revistas e jornais eram mais interessantes, com longos artigos de pesquisa publicados em novos meios de notícias, os chamados Baogao Wenxue (“Reportagens literárias”).”

Em 1988 “estava se produzindo uma profunda reflexão sobre a história chinesa”, e se colocavam novas perguntas sobre o que verdadeiramente significavam a identidade e a cultura chinesas. Em seu artigo, Sala recorda o modo en como descreveu Link, o especialista acadêmico da Universidade de Princeton que trabalhou nos Tiananmen Papers: “em todos os campos todos os intelectuais suscitavan estas grandes questões. É um contraste enorme com o que hoje se sucede”, escreve Sala.

As possibilidades pareciam infinitas. Nos campi “os quadros de anúncios ofereciam aulas de idiomas e de dança, assim como foros de debate que permitiam com bastante liberdade aos estudantes uma ampla variedade de temas”.

Ao mesmo tempo, o mundo do trabalho encontrava-se em plena turbulência.

Desde um ponto de vista econômico, o período de reformas criou duas tendências claras: a proletarização, o período de reformas havia criado duas tendências claras: a proletarização de enormes massas da população e o surgimento de uma nova classe de capitalistas.

O processo de proletarização se produziu, em termos gerais, como resultado de três fatores: a emigração forçosa do campo para as cidades, a derrubada das empresas de gestão estatal nas cidades e a dissolução dos negócios locais nas aldeias. O deslocamento rural para as cidades constituiu uma tarefa imensa, que envolveu cerca de 120 milhões de pessoas desde 1980, em algo que pode ser sustentado que tenha sido a maior migração da história humana (ver Walker R. & Buck D., “The Chinese road, Cities in the Transition to Capitalism,” New Left Review, agosto de 2007).

Um segundo fator responsavel pela criação de uma nova classe salarial na China foi o desmantelamento das empresas de propiedade estatal (SPE).

As SPE foram o núcleo da industrialização maoísta, e contabilizaram quatro quintas partes da produção agrícola do país. A maioria destes gigantes se localizava nas cidades, onde empregavam cerca de 70 milhões de pessoas em 1980. As primeiras etapas dol desmantelamento se iniciaram em 1988, e o processo prosseguiu a um ritmo rápido depois da comoção de 1989, momento em que foram aplicadas drásticas medidas no contexto de uma economia aquecida marcada por uma elevada inflação.

Foram realizadas outras reformas na década seguinte, confirmando o significado do que ocorrera em 1989. Em 1994 se incentivou uma maior eficiência mediante cortes na mão de obra. Esta nova direção da gestão conduziu a demissões massivas no final dos anos 90, quando o capitalismo chinês experimentou sua primeira crise de superprodução, a qual marcou uma brusca transição da velha economia de escassez a uma nova economia de mais-valia. O resultado foi espectacular: o emprego nas empresas de propiedade estatal ficou reduzido à metade, à medida que 40 milhões de pessoas encontraram-se sem a tradicional “tigela de arroz de ferro”, símbolo e garantia de segurança no emprego nas velhas empresas estatais.

Para este grupo de indivíduos, a maioria de idade mediana, encarava a perspectiva de converter-se numa sorte de “infraclasse urbana”, tal como explicava Dorothy Solinger em seu artigo “From Master to Marginal in Post-Socialist China: The Once-Proletariat as New Excluded Entrepreneur”, publicado em Social Exclusion and Marginality in Chinese Societies (Hong Kong Polytechnic University, Center for Social Policy Studies, 2003).

“Ironicamente”, escevia Solinger, “em sua marcha rumo à modernização e à reforma econômica, ainda quando a direção política tenha dado renda solta e incentivado às forças de mercado, deteve ao mesmo tempo o pleno desenvolvimento de alguns dos processos que surgem de modo geral da mercantilização em outras partes. Assim pois, na China, em lugar da crescente opulência, ol aumento do nível educativo e o  aburguesamento de uma grande parte da clase trabalhadora, que se produziu em muitas sociedades junto ao desenvolvimento  econômico — e de maneira muito destacada entre os vizinhos da China no Leste da Ásia, como Coreia do Sul, Japão e Taiwan— esta informalização da economia urbana representa uma regressão, não um ascenso para uma parte bastante numerosa da população urbana”.

Assim, esta população urbana enfrentou o difícil desafio da relocalização social no campo laboral, levando em conta suas origens culturais: “A esmagadora maioria deles foi privada de educação formal, obrigados a deixar a escola e se somar à Revolução Cultural (o que incluia, para a maioria, um período prolongado no campo), durante uma década mais ou menos depois de 1966, e vendo-se portanto desprovidos de toda capacitação”.

Estes processos, que chegaram ao auge nos anos 90, foram resultado direto do que ocorrera na China no final dos 80. Em outubro de 1983, o Diário do Povo escrevia que os trabalhadores não tinham do que se queixar: a recessão que se apoderara do mundo capitalista no início dos anos 80 ofereceu a oportunidade às autoridades chinesas de recordar os trabalhadores do país que estavam melhor do que já estiveram algum dia, assinalando o elevado desemprego do Ocidente como prova da “superioridade do socialismo”.

A direção chinesa considerou este o momento de ressaltar seus êxitos: tal como escreve Jackie Sheehan em seu libro Chinese Workers: A New History (Londres, NuevaYork, 1998), se tratava de uma situação na qual “alguns trabalhadores já estavam advertindo os benefícios do aumento salarial e das bonificações, de acordo com as reformas, e todos esperavam se beneficiar num futuro próximo”.

Mas estas expectativas acabaram  desmentidas pela realidade, porque estavam começando a aparecer sinais de patente injustiça: “Havia pouca aceitação entre os trabalhadores a ideia de que tudo iria bem se ‘uns quantos se fazem rico primeiro’; consideravam isso simplesmente como uma injustiça distributiva”. Além disso, “muitos trabalhadores se sentiam profundamente agravados até por diferenças salariais que eram consideradas muito grandes de acordo com critérios ocidentais aí onde se advertiam, no entanto, como injustas […]. Um ressentimiento especialmente agudo foi o que provocou a brecha cada vez maior entre as bonificações pagas aos trabalhadores e as que recebiam os gestores superiores das empresas, que em alguns casos podiam ser de vinte a trinta vezes maiores que o pagamento equivalente aos trabalhadores”.

No entanto, o efeito negativo das reformas sobre as relações entre os trabalhdores e a  gerência logo se extenderia “para além das disputas sobre o aumento da desigualdade de renda, por mais séria que esta fosse”.

Numa época na que se exigia mais e mais eficiência aos trabalhadores, durante as frenéticas horas de maio e junho de 1989, “as deficiências de gestão se converteram em significativa maçã da discórdia de um modo que nunca antes havia se sucedido”, escreve Sheehan, uma questão que Deng mesmo fez questão de repetir. Depois de expressada sua solidariedade aos estudantes, começaram a bulir as tensões na panela de pressão que era a Chiba em 1989.

A ‘agitação’ e o resultado final

Neste contexto, a presença dos estudantes na Praça de Tiananmen començou a ser causa de grande preocupação para o Partido Comunista, temeroso de voltar ao período de domínio das multidões durante os dias da Revolução Cultural.  

Deng mesmo expressou a crescente sensação de irritação, afirmando numa  reunião do Partido no final de abril que “não se trata de um movimento estudiantil corrente. Se trata de agitação”.

Ao mesmo termo se recorreria no artigo de opinião do Diário do Povo publicado em 26 de abril, que condenava os protestos estudiantis com toda nitidez. Foi este o momento em que se deteriorou sem remédio a relação entre  o Partido Comunista e os manifestantes. 

Desde esse momento, Deng trabalharia junto ao Comitê Permanente até a dramática votação sobre a declaração do estado de sítio (que seria revogado apenas em 1990). Em  sua crônica desde a China, com data de 20 de Julho de 1989, publicada em The New York Review of Books, Roderick MacFarquhar escreveu, “Dividido na cúpula, o Partido Comunista Chinês já não podia lidar com as múltiplas pressões que sofria e e rachou. Enquanto que o primeiro-ministro, Li Peng atuou como líder severo a modo de testa-ferro,  está claro que as decisões não foram tomadas em última instância em seu Conselho de Estado, ou o Politburó, nem sequer pelos cinco homens do Comitê  Permanente mas pela dupla encarregada pela  Comissão de Assuntos Militares, Deng Xiaoping e presidente Yang Shangkun, secundados por um grupo de idosos revolucionários virulentos”.

O voto para declarar a lei marcial supôs um exemplo claro do funcionamento do mecanismo que havia sido estabelecido: em essência, Zhao Ziyang era o único a favor de escutar os estudantes,  inclusive de apoiar algo assim como uma “retratação” do artigo de 26 de abril (uma idea rechaçada de forma clamorosa por parte de Bo Yibo, um dos “oito inmortais” e pai de Bo Xilai, de mais recente fama).

Entre 26 e 27 de abril, o Comitê Permanente do Politburo se reuniu para votar a proposta de declarar o estado de sítio.

Os cinco membros votaram do seguinte modo: Li Peng e Yao Yilin votaram a favor, Zhao Ziyang votou contra e Qiao Shi se absteve. Nesse momento, a iniciativa passou para os oito inmortais: já não havia volta.

Tal como se afirma em The Tiananmen Papers, “Na manhã de 18 de maio, os oito anciãos —Deng Xiaoping, Chen Yun, Li Xiannian, Peng Zhen, Deng Yingchao, Yang Shangkun, Bo Yibo e Wang Zhen— se reuniram com os membros do Comitê Permanente do Politburó Li Peng, Qiao Shi, Hu Qili e Yao Yilin, e com os membros da Comissão de Assuntos Militares, o general Hong Xuezhi, Liu Huaqing e o general Qin Jiwei, e acordaram formalmente declarar o estado de sítio em Beijing”.

O Secretário Geral Zhao não assistiu a este encontro e pouco depois foi expulso de seu posto. Antes de que se pusesse sob prisão domiciliar, situação na qual permaneceria até sua morte em 2005, em 19 de maio, às quatro da manhã, Zhao compareceu à praça e se mesclou entre os estudantes. Acompanhado pelo Diretor do Gabinete Geral do Partido, Wen Jiabao (que se desempenharia mais tarde como primeiro-ministro da República Popular da China entre 2002 e 2012), Zhao disse aos estudantes: “Chegamos demasiado tarde”.

Antes, em 18 de maio “Li Peng e outros funcionários do gobierno se encontraram no Grande Salão do Povo com Wang Dan, Wuerkaixi, e outros representantes estudantis. Li afirmou que ninguém havia declarado nunca que a maioria dos estudantes tivesse sido vista envolta em agitações, mas que, com excessiva frequência, gente sem intenção de criar agitação o que de fato conseguira era provocá-la. Manteve-se firme com respeito à redação do editorial de 26 de abril e afirmou que o momento atual não era apropiado para debater as duas demandas dos estudantes. Wang Dan havia declarado que a única maneira de tirar os estudantes de Tiananmen consistia en reclassificar o movimento estudiantil como patriótico e retransmitir ao vivo o diálogo entre os estudantes e a direção na televisão”.

Não havia mais espaço para o compromisso: a decisão de “desalojar a praça” veio diretamente de Deng Xiaoping e o “massacre de Beijing” teve lugar durante a noite de 3 a 4 de junho.

Foi um momento no qual se caçava literalmente as pessoas nas ruas da China. Entretanto, no interior do Partido Comunista tomava forma uma ideia clara: não se devia ía permitir que o que acabava de passar voltasse a acontecer de novo.


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