Notas sobre a ruptura com o PT e algumas propostas

Documento de dezembro de 2003 tratava da expulsão pelo PT dos parlamentares que fundariam o PSOL.

Coordenação Nacional do MES 27 nov 2019, 16:17

Coordenação Nacional do MES – Dezembro de 2003

1) No dia 14 de dezembro a Direção Nacional do PT confirmou a expulsão dos parlamentares Heloisa Helena (AL), Luciana Genro (RS), Babá (PA) e João Fontes (SE). O clima na reunião não refletia em nada os inúmeros apelos contrários às expulsões vindos de todo o país. As denúncias não partiam apenas de militantes organizados ou ativistas sociais. Conceituados escritores como Luis Fernando Veríssimo denunciavam a perseguição como uma mancha na historia do PT. Também do exterior chegavam protestos de ativistas e intelectuais como o linguista norte-americano Noam Chomsky. Os ecos destes protestos pareciam esbarrar na porta de entrada da antessala de reunião do luxuoso hotel de Brasília, o Blue Tree Park.

Alguns passos dali os integrantes do DN escutaram, no sábado, primeiro o ministro Celso Amorim defender o suposto triunfo para o Brasil representado pelo curso atual das negociações da ALCA e, em seguida, a exposição do ministro Antônio Palocci bancando uma vez mais a politica do governo de ajuste e o acordo com o FMI, tudo como se fossem necessárias medidas para o bem-estar do povo, cantilena enfadonha e mentirosa, para usar uma expressão tão cara à senadora recém-expulsa. No dia seguinte, o veredicto decidido antes da reunião pela cúpula dirigente do campo majoritário – de acordo com a determinação dada pelo presidente Lula – foi confirmado na votação: por 56 votos a favor e 27 contrários, os parlamentares foram desligados do partido.

2) Na verdade, desde o início do ano, as cúpulas do partido e do governo trabalharam para excluir das fileiras partidárias qualquer questionamento intransigente às linhas políticas adotadas pelo governo seguindo os ditames do Fundo Monetário Internacional. As expulsões dos que não capitulassem pelo menos parcialmente estavam anunciadas quando a governo garantiu aos chamados mercados duas blindagens, uma econômica e outra política: o acordo com o FMI, por um lado, e a disciplina da bancada parlamentar, por outro.

A decisão do DN representou, portanto, mais do que um ato de restrição qualitativa dos espaços democráticos no interior do PT, mas a confirmação pública da transformação do PT em um partido já totalmente contrário aos interesses dos trabalhadores, agente da aplicação dos planos de ajuste capitalistas. A medida disciplinar foi apenas o coroamento, o símbolo – junto com o novo acordo com o FMI – da afirmação do “New PT”.

3) No mesmo dia em que os parlamentares estavam sendo expulsos, intelectuais históricos da esquerda brasileira e do PT anunciavam seu desligamento do partido. De SP, rompeu Chico de Oliveira, sociólogo que está entre os mais importantes intelectuais brasileiros. Em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, “Tudo que é sólido desmancha …em cargos”, expôs suas razões: “Me afasto do PT porque não votei nas últimas eleições presidenciais e proporcionais no Partido dos Trabalhadores para vê-lo governando com um programa que não foi apresentado aos eleitores. Nem o presidente nem muitos dos que estão nos ministérios nem outros que se elegeram para a Câmara dos Deputados e para o Senado da República pediram meu voto para conduzir uma politica econômica desastrosa, uma reforma da previdência antitrabalhador e pró-sistema financeiro, uma reforma tributária oligarquizada, uma campanha de descrédito e desmoralização do funcionalismo público” (…) “para não me alargar, um governo que é o terceiro mandato de FHC”.

Do RJ, romperam com o PT o professor Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e o jornalista Milton Temer, ex-deputado federal e por duas vezes candidato da esquerda partidária a presidente do PT. Chico de Oliveira e o trio do RJ serão acompanhados por muitos outros, como Paulo Arantes, Ricardo Antunes, assim como as correntes organizadas (MES, a CST, o Socialismo Revolucionário, o MTP)  acompanharam os parlamentares expulsos e se definiram rompidos com o PT e em defesa da construção de uma nova alternativa partidária. Mais de 6 mil militantes assinaram a declaração com este conteúdo impulsionada pelos mandatos de Luciana Genro e Babá, pelos os agrupamentos políticos citados e os companheiros do Socialismo e Liberdade e MTL. Com ela, trabalharam inúmeros dirigentes sindicais, especialmente dos funcionários públicos, trabalhadores da educação e da saúde, entre muitos outros. Também a subscreveu um importante intelectual paulista, Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da Unicamp.

Finalmente, no dia seguinte às expulsões, militantes da tendência interna Democracia Socialista do RJ e do Paraná anunciaram seu desligamento do PT, Espontaneamente, sem organização, um número incerto, mas certamente que chega a alguns milhares, começou a se desfiliar, um processo, aliás, que já começou durante os encaminhamentos da reforma da previdência.

4) A ruptura atual, portanto, tem uma importância significativa, histórica. Logicamente o processo de ruptura não terminou. É certo que novas levas de simpatizantes, amigos e militantes deixarão o PT. A crise da esquerda partidária, por exemplo, é gritante. A ausência de discurso é total porque já ninguém pode realmente acreditar na possibilidade de se resgatar o PT, ao mesmo tempo em que o discurso em defesa do socialismo no interior do partido se mostra cada dia mais vazio, já que não tem nada que ver com a que faz todos os dias o governo petista. O entusiasmo com o qual Lula e o governo brasileiro foram recebidos pela Internacional Socialista, dirigida pela velha socialdemocracia europeia, hoje convertida em agente do capital imperialista europeu, durante seu congresso realizado em outubro em SP, foi mais do que demonstrativo do real significado do PT. Por isso é possível que outros setores organizados venham a sair.

O incompatível, o inviável, é a manutenção de uma política socialista coerente e o acomodamento no PT, a ausência de uma denúncia pública, aberta, de que o governo e o PT estão do lado da burguesia, de sua dominação de classe. Milhares de apoiadores do partido tomaram consciência deste fato e decidiram se afastar. O desafio de aglutiná-los começa já. Mais uma razão para que a expulsão dos parlamentares tenha se transformado no momento decisivo da ruptura do PT, o ponto de qualidade capaz de marcar um antes e um depois da expulsão na história deste partido que foi o maior partido de esquerda da América Latina e que se converteu em seu contrário.

5) A ampla cobertura da mídia nacional acerca da reunião do DN – com repercussão em órgãos da imprensa da América Latina e da Europa – não foi por um motivo qualquer. O interesse despertado pelo fenômeno dos radicais foi resultado do interesse em acompanhar as profundas transformações do PT em sua passagem da oposição ao governo nacional. Praticamente toda a população que acompanha a política nacional reconheceu que o PT mudou. É quase unânime a opinião de que os radicais defendem as bandeiras históricas do partido.

É claro que parcelas importantes da população concordam com as mudanças ou pelo menos não têm opinião formada. Nisso a mídia joga um papel, elogiando invariavelmente o suposto amadurecimento do PT, seu reconhecimento de que a responsabilidade de governo deve ser assumida, uma responsabilidade que os “radicais” se recusam a assumir, sempre segundo o ponto de vista deles. Este enfoque da mídia, expressão da ideologia da burguesia, tem enorme influência e reproduz os interesses da própria cúpula partidária.

Por outro lado, e isso é um dado fundamental, o reconhecimento de que os parlamentares expulsos mantêm a coerência das ideias do PT quando estava na oposição nos abre uma ligação com o movimento de massas impressionante, um patrimônio que ninguém tem, pelo menos na defesa das bandeiras que empunhamos. São bandeiras de referência para centenas de milhares, talvez alguns milhões de trabalhadores e jovens, parcelas do povo que não abriram mão das mesmas. Podemos dilapidar este patrimônio ou podemos aproveitá-lo para construir uma alternativa à esquerda, anticapitalista e anti-imperialista. Esta alternativa depende do sucesso desta atual ruptura. 

6) Resumindo, três questões interligadas se destacam, não necessariamente nesta ordem, para marcar a importância da ruptura em curso:

a) O peso próprio dos parlamentares (Luciana Genro, Babá e João Fontes, são expressões de massas em seus estados, conhecidos e respeitados em todo o país, enquanto a senadora Heloísa, além do peso de massas qualitativo em seu estado – que lhe colocava como favorita na disputa pela prefeitura de Maceió – tem uma representatividade que dialoga com parcelas de massas em todo o país;

b) Foram acompanhados por representativos intelectuais da tradição de esquerda – que antecipam, tal como as folhas das árvores – a direção dos ventos das lutas sociais e da organização da esquerda socialista;

c) O ano que termina forneceu um lastro social fundamental aos movimentos dos chamados radicais não apenas porque ocorreu um descontentamento genérico com o governo por parte dos servidores públicos, mas porque os servidores realizaram uma poderosa greve nacional. Então, esta ruptura tem um lastro social organizado na base do funcionalismo público. Inúmeros sindicalistas, dirigentes da greve nacional da previdência – a mais forte da história do movimento – assumiram a ruptura com o PT e articulam uma alternativa política. Assim se abre uma nova situação no país, ou pelo menos na esquerda brasileira.

7) Para enfrentar este momento e discutirmos os próximos desafios, vale começar por definições gerais. A mais importante é que o governo do PT não é uma representação dos trabalhadores e do povo pobre. Seu governo é de alianças com partidos burgueses tradicionais, como PL, PTB, PMDB, incluindo em sua base de sustentação o PP e as oligarquias regionais de vários estados do Nordeste. O sociólogo Chico de Oliveira já fez uma definição social nova do próprio PT bastante ilustrativa. Em suas próprias palavras, “as transformações estruturais na posição de classe de um vasto setor que domina o PT, que indicam uma real mudança do caráter do partido”. Seguindo em sua linha, a cúpula petista se transformou em uma casta privilegiada com interesses comuns com a burguesia, uma irmã do PSDB, interessada em manter a dominação capitalista, seu domínio privilegiado dos fundos públicos e da maquina estatal.

Este significado do governo foi anunciado na carta ao povo brasileiro, de antes das eleições, no acordo com o PL e na aceitação do acordo do FMI feito por FHC, em setembro de 2002. Logo depois foi confirmado cabalmente na definição do ministério. Por isso mesmo nossa corrente, o MES, havia decidido sequer fazer parte do governo e se preparou para um enfrentamento estratégico, cujos desdobramentos resultaram numa ruptura com o partido, cuja direção majoritariamente havia decidido atacar os interesses dos trabalhadores. A reforma da previdência foi o símbolo maior deste ataque. As expulsões o confirmam uma vez mais.

8) Tal definição da natureza reacionária do governo petista, de suas reformas constitucionais e de sua política econômica é fundamental para orientar os desafios do próximo período. A validade de tal definição foi confirmada muito antes das expulsões, tal como assinalamos acima. Trocando em miúdos, o PT mudou completamente desde o momento em que deixou de ser obstáculo mais ou menos coerente para a aplicação do ajuste capitalista para ser, no governo nacional, seu fiel aplicador, administrador principal do Estado burguês a serviço da burguesia. Aí fez a travessia do Rubicão, deixando em definitivo para trás o velho PT.

Por isso mesmo as expulsões, efetuadas quase um ano depois de assumir o governo, mais do que a morte do PT do ponto de vista da defesa dos interesses dos trabalhadores, representaram a abertura de um novo ciclo na vida política da esquerda brasileira. Um ciclo longo, de reagrupamento e reorganização da esquerda socialista e do movimento dos trabalhadores, cujo desafio estratégico é a construção de um bloco social e politico anticapitalista e anti-imperialista e de um novo partido capaz de traduzir a experiência das classes trabalhadoras em suas lutas, apoiá-las, incentivá-las, sempre tratando de desenhar um programa de emergência capaz de enfrentar a terrível crise social, a terrível situação do povo pobre.

9) A construção de uma nova alternativa partidária é um processo. Um novo partido não se decreta nem se constrói de um dia para a noite. Seria um erro pré-determinar datas e prazos de sua fundação. Ao mesmo tempo é preciso evitar um erro tão ou mais grave: diluir a necessidade da construção de uma alternativa política, um novo partido dos trabalhadores que seja uma superação do PT. É preciso, portanto, uma ampla discussão entre os que romperam com o PT agora e os que já haviam rompido antes para por de pé uma nova ferramenta. Uma discussão paciente, que respeite as diversidades de consciências e experiências e que busque os pontos comuns para alavancar um movimento por uma nova alternativa. Em nossa opinião esta nova alternativa precisa ser um partido porque este é o instrumento daqueles que lutam pelo poder politico. E uma nova alternativa tem que ter como horizonte a luta pelo poder dos de baixo, contra a dominação dos capitalistas.

10) Somos conscientes de que não é um desafio fácil. Mais adiante abordamos algumas de nossas maiores dificuldades. E o apoio dado a Lula e ao governo por amplas parcelas do povo num certo sentido não é a mais complicada. O governo segue apoiado, como muitos governos burgueses o foram, mas mesmo seus discursos populistas, mesmo a habilidade e o carisma pessoal de Lula não conseguem deter a erosão de uma parte da histórica base social do PT. Os funcionários públicos foram os mais significativos, mas o distanciamento atinge mais setores, como refletem os ecologistas descontentes com a liberação dos transgênicos (o desligamento de Gabeira foi parte disso) ou os familiares dos desaparecidos políticos quando veem a capitulação do governo diante dos crimes dos governos do regime militar ou ainda como expressa a recente crise com Luis Eduardo Soares, ex-secretário de segurança, cuja demissão, motivada pelas pressões no ministério da justiça pela continuidade da política de segurança do governo anterior, levou a seu desligamento do partido.

Mais importante ainda é o descontentamento geral que a continuidade do arrocho salarial, do desemprego, da vida cada vez difícil vai provocando em milhões de trabalhadores. Num país em que em um ano de governo mais de 500 mil trabalhadores perderam o emprego e onde a participação dos salários no PIB nacional caiu 16%. Assim, a experiência com o governo é um processo já em curso. O apoio dado ao governo pela maioria do povo, portanto, não impede a existência de um espaço social à esquerda. Este espaço já existe hoje e pode se ampliar. O PT é um partido de costas para o futuro. As bandeiras históricas do PT, patrimônio da esquerda em geral, como a luta contra o FMI contra a ALCA, por melhores salários e condições de trabalho, contra os bancos, em defesa da reforma agrária, entre tantas outras, foram abandonadas pelo PT. Os trabalhadores mais conscientes da necessidade destas bandeiras para garantirem uma melhoria de suas vidas são a base social deste novo projeto. E eles são muitos. No momento em que o PT assumiu o social-liberalismo, a construção de uma esquerda socialista ganhou peso. As necessidades concretas empurram neste sentido, assim como as forças sociais que de uma forma ou outra tratam de encontrar sua representação politica própria. Um novo partido, portanto, responde a uma necessidade social, não às elaborações deste ou daquele intelectual, grupo político ou reformador social.

11) Ademais, para visualizar as perspectivas de um novo partido com maior amplitude não podemos deixar de olhar o pais como parte do continente latino-americano. De modo muito esquemático podemos dizer que o Brasil esta inserido num continente marcado por importantes lutas sociais. A crise econômica e social tem sido generalizada na América Latina. Os planos de ajuste dos capitalistas têm provocado inúmeras mobilizações de massas, derrotas de golpes reacionários, levantes populares, greves gerais, quedas de governos e até insurreições. Venezuela, Colômbia, Argentina, Peru, Equador, em todo o continente as mobilizações parecem se alastrar. A mais recente foi a insurreição da Bolívia com a queda revolucionária do governo. Tivemos ainda nas últimas semanas as greves do Panamá e da República Dominicana, a vitória do referendo contra as privatizações no Uruguai e a manifestação na cidade do México de mais de 200 mil pessoas contra o governo. É visível, portanto, que a ofensiva do neoliberalismo no continente nos anos 90 não logrou estabilizar politicamente a região. Ao contrário, a atual crise do neoliberalismo e dos planos de ajuste capitalistas em geral está desencadeando, com seus lógicos altos e baixos, um ascenso de massas cada vez mais decidido e generalizado.

12) O governo do presidente Lula trata de atuar como bombeiro regional, como fez na recente crise boliviana ao apoiar a posse de Carlos Mesa, não sem antes ver as possibilidades da simples manutenção do assassino Sánchez de Lozada na presidência. O governo brasileiro parece consciente de que está cercado por situações convulsionadas; Este não é o cenário político brasileiro, até porque, no Brasil, o descontentamento contra o neoliberalismo foi canalizado de modo considerável para a disputa eleitoral e o apoio à candidatura de Lula. Houve uma válvula de escape das tensões sociais. Sua eficácia, entretanto, é relativa. As contradições objetivas, a situação social, as condições de vida do povo, porém, se mantêm inalteradas e até piores. São as mais evidentes bases comuns com a situação latino-americana: desemprego, arrocho salarial, vida cara, falta de serviços básicos, tudo se agravando para o povo.

Assim, embora num ritmo mais atrasado do que em alguns dos seus vizinhos, a luta de classes no Brasil está muito distante do marasmo. Vimos este ano, apesar do neopeleguismo da direção majoritária da CUT, a forte greve nacional dos servidores públicos, a greve dos correios, dos bancários, as lutas e mobilizações de diversas categorias, como os metalúrgicos da GM, da Volks, da Ford, os metroviários de Porto Alegre, os professores estaduais de várias unidades do país, além das ocupações e explosões populares localizadas como os camelôs do RJ, os perueiros de Recife e Goiânia. Tivemos a rebelião estudantil de agosto em Salvador, na Bahia, Enfim, foram inúmeras mobilizações urbanas. No campo, embora a direção do MST, pelo menos sua maioria, tenha apoiado abertamente o governo, as ocupações não cessaram. Em síntese, estamos vendo e veremos ainda mais importantes lutas sociais, num caso clássico de desenvolvimento desigual e combinado com a situação latino-americana.

As prisõe de José Rainha, Mineirinho e Diolinda também movimentaram politicamente o país. Neste caso, aliás, a campanha pela liberdade dos presos encabeçada pelos parlamentares radicais contribuiu para pautar este debate, além de nos ter proporcionado laços maiores com estas lideranças dos pobres do campo, razão de orgulho para todos os militantes por um novo partido.

13) Assinalar este contexto e olhar a construção do novo partido nesta perspectiva geral não é sinônimo de diluição das dificuldades que temos pela frente. Elas são muitas e de vários tipos. No momento, basicamente duas nos parecem as maiores: primeiro, o ceticismo geral de parcelas do povo que, ao perderem a confiança no PT, perdem a confiança na politica e na esquerda em geral. No povo em geral, porém, não nos parece ser o mais importante. Embora sejamos também atingidos pelo descrédito de parcelas do povo, há no Brasil uma razoável força da consciência associativa e uma importante movimentação das classes subjugadas pelo capitalismo para que possamos forjar nossas forças na construção e no interior deste processo. Mais grave é o ceticismo daquelas parcelas da superestrutura politica de esquerda que ajudaram a construir o PT ou acompanharam sua experiência.

Então, os reflexos da experiência com o PT deslegitimando as ideias socialistas na consciência de uma parcela do povo atingem também a superestrutura. Um fenômeno que, guardadas as devidas proporções e diferenças, lembra o desânimo representado em parcelas da esquerda quando caiu o muro de Berlim, quando desmoronou o chamado socialismo real, ou o socialismo realmente inexistente. Os sucessos ou insucessos de partidos e agrupamentos que atuaram por fora do PT ao longo destes anos também trabalham no mesmo sentido. Para todos acaba pesando então o desânimo com o PT somado aos dez anos de ofensiva do neoliberalismo.

14) Um segundo problema é nossa capacidade de organização, a debilidade das correntes envolvidas na ruptura/reorganização. Nenhuma das correntes organizadas que decidiram romper ou que estão trabalhando por um novo projeto tem uma sólida estrutura nacional de quadros. A ausência destas estruturas logicamente não pode ser suprida por parlamentares – por mais populares, talentosos e esforçados que sejam, nem por intelectuais, por mais importantes que sejam suas contribuições. Assim, a debilidade das forcas em questão impede a ocupação plena do espaço existente, em nossa opinião considerável, o que às vezes induz a conclusões equivocadas de que o espaço é pequeno, completando o ciclo vicioso, realimentando o ceticismo, a sensação de que não se pode fazer nada ou de que temos que partir do zero, de que praticamente não há acumulação teórica, política ou organizativa que se possa aproveitar. O crescimento de cada uma das correntes consideradas isoladamente tem sido também um fato evidente, mas nenhum crescimento deste tipo é capaz de resolver esta lacuna, esta ausência de uma força organizada nacional sem um trabalho unificado, num espírito de partido, onde as tendências, subtendências, grupos, etc., etc., encontrem um marco comum de atuação. Onde os militantes sem tendência tenham espaço e capacidade real de intervenção. Este é o desafio. Única forma de ir resolvendo a contradição entre o espago existente e nossas forcas para organizar a influência do movimento por uma alternativa. Único caminho para evitar a dispersão.

15) Tal desafio de trabalho unificado é uma necessidade não apenas para ocupar os espaços que se abrem para um projeto a esquerda do PT. Trata-se de uma resposta correta ao processo de reagrupamento em curso na esquerda brasileira. Um processo que tem dois trilhos, dois pontos nos quais se estrutura a possibilidade de convergência: o primeiro, a rejeição ao social-liberalismo do governo petista; o segundo, a compreensão da natureza democrática, aberta, ampla, do movimento por um novo partido, o que se materializa no direito de existência de tendências, entre outras medidas. O PSTU, por exemplo, faz parte do acordo em relação ao primeiro ponto. Recusou-se, porém, em relação ao segundo, optando por seguir seu caminho em faixa própria, centrado na autoconstrução. Pelo menos por enquanto.

De nossa parte, estamos convencidos de que o trabalho necessário é de confluência de forças. O esforço atual deve reunir os parlamentares radicais, suas correntes por inteiro ou setores de suas correntes, os dirigentes dos servidores públicos, os militantes e dirigentes socialistas independentes, os intelectuais socialistas, as correntes que se construíram em faixa própria até então, como o Movimento Terra e Liberdade (MTL) e os setores que romperam com PSTU recentemente e fizeram a opção pelo reagrupamento, como o Socialismo e Liberdade e o agrupamento de Pernambuco, o Polo de Resistencia Socialista (PRS). E incorporar os setores que com certeza vão aderir à necessidade de uma nova alternativa, mantendo- se o convite para o PSTU enquanto um todo.

16) Assim, sem desconhecer as dificuldades, reafirmamos a existência de um importante espaço à esquerda. Basta ver a popularidade de Luciana Genro, Babá, João Fontes e com mais destaque de Heloísa Helena. A senadora de Alagoas é hoje possivelmente a política mais popular no país depois de Lula. Pelo menos nas parcelas da classe trabalhadora mais identificadas historicamente com o PT.

Joga a favor da construção de uma alternativa, sobretudo, as perspectivas de mobilização social, mesmo que isso não seja necessariamente sinônimo de ofensiva dos trabalhadores. Não temos hoje uma ofensiva de lutas saciais e é provável que no próximo ano tampouco tenhamos, ainda mais com o mecanismo eleitoral tratando de desviar as atenções do país. Isso é um fato. A ausência de ofensiva não quer dizer, porém, necessariamente, passividade. Teremos, com certeza, diversos conflitos sociais, lutas, greves, marchas, ocupações urbanas e de terras, campo privilegiado da construção de um projeto de esquerda.

As primeiras mobilizações do próximo ano podem novamente ficar por conta dos servidores públicos federais em luta por melhores salários. O moral elevado com o qual saíram da greve, apesar do revés do ponto de vista das reivindicações, estimula novas lutas. Podemos também ver os estudantes em cena, em oposição à reforma universitária promovida pelo governo e formulada pelo Banco Mundial.

Este será o primeiro e maior esforço que devemos garantir: ser presença constante em cada luta, incentivá-las, tratando de apoiá-las para que triunfem. É com esta orientação que podemos ir armando campanhas políticas estruturadoras do perfil nacional do movimento por um novo partido, campanhas contra a ALCA, por melhores salários, contra o desemprego, etc.

17) Para a construção de um movimento por um novo partido é preciso ir definindo quais são as tarefas concretas, imediatas, postas pelo momento político. O primeiro sem dúvida é reunir todos os que querem construir uma alternativa. Com uma reunião nacional de todos certamente surgirão muitas propostas com condições de responder aos nossos novos desafios. O ex-deputado Milton Temer tem animado propostas fundamentais para ir vertebrando este movimento nacional. Já apontou com clareza a necessidade de dialogar com setores petistas ao mesmo tempo em que afirma a necessidade de avançarmos na construção de uma alternativa partidária. Sugeriu a realização de um fórum nacional. Somos a favor desta proposta. As articulações unificadas ganham substância no início da discussão programática, dos debates sobre concepção de partido e funcionamento, as definições de políticas de intervenção unitárias, etc., assim como nas medidas práticas relativas à necessária legalização deste projeto. Teremos que entre todos discutir cada um destes passos.

18) Concretizar sedes em varias capitais, garantir o funcionamento de uma coordenação nacional unificada bem como de coordenações nos estados, com plenárias, reuniões de cidades e categorias, até finalmente documentos de acordo, manifestos e um jornal nacional unificado são passos concretos de que necessitamos e que estão sendo apontados por distintos agrupamentos e militantes envolvidos nesta construção. Assim como de uma página comum na internet. Na sistematização e na hierarquização destas tarefas, o tema da legalidade terá sua importância. Inclusive os tempos políticos não são os mesmos que os tempos legais. Isso se quisermos constituir um partido que possa participar das eleições de 2006 (na de 2004 já é impossível). De nossa parte, estamos totalmente contra construir um movimento eleitoralista, estruturado ao redor apenas de parlamentares, com estratégia alicerçada em disputa eleitoral, seja nas proporcionais seja para presidente da República. Queremos organismos coletivos de decisão, um novo partido cuja mobilização seja a prioridade, etc. Enfim, somos contra o cretinismo parlamentar que marcou o PT e que resultou no mito de Lula, um mito oposto a sua realidade como político. Porém, sempre há um porém, o desvio oposto e também muito grave, pelo menos tão grave quanto o anterior: o cretinismo antiparlamentar.

Para construir uma referência, um polo com influência em setores de massas, é muito importante termos figuras públicas, particularmente parlamentares e lideranças de lutas. É decisivo encontrar as condições de disputar processos eleitorais com nomes capazes de empolgar setores de massas. Temos nomes com peso de massas em alguns estados e, além disso, um nome com importante peso nacional. É dispensável anunciá-lo, todos sabem qual, e a melhor forma de construir sua força, a força novamente do nordeste, não é centrar a agitação do movimento ao redor deste tema, mais estruturar um movimento democrático e socialista por um novo partido que se construa tendo como estratégia a mobilização direta da classe trabalhadora. Tal estratégia não anula a hábil utilização das eleições. Para tanto é preciso garantir as condições legais que exigem quase meio milhão de firmas de apoio até meados de 2005, o que pressupõe que nos primeiros meses de 2004 somemos esforços para garanti-las.

Logo, os tempos da discussão política e da construção coletiva serão mais esticados do que os tempos exigidos pela legalidade. A equação desta questão não é complexa. Basta tomar a resolução do tema da legalidade com variáveis de caráter mais formal, que não estejam em contradição com o conteúdo do movimento real, mas que se baseiem em acordos mais simples, que possibilitem a apresentação de uma proposta formal de programa e de estatuto. Tais exigências legais, talvez esse seja o maior inconveniente, exigirão a definição de um nome do partido e os seus 101 fundadores.

Entre todos teríamos que debater o mecanismo mais democrático de escolha, que nos tempos da internet poderia envolver uma consulta ampla, uma forma de plebiscito, como nos sugeriram companheiros de SP de uma corrente aliada, ou seja, um mecanismo que pudesse envolver algumas dezenas de milhares de pessoas.

19) Para concluir estas notas não podemos deixar de apelar para a internacionalismo militante. É dispensável dizer que a construção de uma alternativa anticapitalista e anti-imperialista no Brasil não será – e já não tem sido – uma tarefa fácil. Sabemos também que nossos esforços serão acompanhados por milhares de militantes de outros países, por lutadores sociais, pelos marxistas revolucionários, pelos ativistas da alterglobalização. Queremos que nos acompanhem e que nos apoiem. Nossa vinculação com a vanguarda latino-americana é fundamental neste sentido, bem como com os partidos anticapitalistas da Europa.

Experiências como a construção de um novo partido anticapitalista na França, tal como proposto pela LCR (Liga Comunista Revolucionária) certamente nos estimulam e ensinam. Da mesma forma como as experiências dos ingleses do SWP (Socialist Workers Party), da coalizão de movimentos e partidos anticapitalistas europeus e do movimento antiguerra, parte indissociável do movimento antiglobalização capitalista.

Relações com estes processos nos permitirão extrair lições, adquirir uma visão global, evitar erros, visualizar os progressos, apontar caminhos. Assim também ensinaremos enquanto aprendemos na medida em que, com certeza, nossa rica experiência nacional, tanto da falência do PT quanto da nova alternativa em construção, ao ser socializada, também será útil para que os socialistas de outros países desenvolvam suas ações com alicerces cada vez mais sólidos.


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Pedro Micussi