O capitalismo frente ao planeta: rumo a um apocalipse de água, fogo e lucros históricos
Chegará a morte do planeta antes que a desaparição do capitalismo?
Este outono de 2019 será recordado como o momento na qual a catástrofe “à câmera lenta” da mudança climática veio a ser percebida como uma emergência real.
Nestes meses, os Estados Unidos formalizaram sua renúncia aos acordos de Paris sobre o clima, essa parte insuficiente porém essencial de uma tentativa de resposta global à crise ambiental.
Foi a estação na qual uma adolescente se dirigiu às Nações Unidas, expressando toda a indignação e raiva de uma geração que, tal como parece, terá que lidar com todos os lamentáveis fracassos de quem veio antes e com um futuro que parece cada vez mais funesto. Ao dramático discurso de Greta Thunberg lhe seguiu uma gira pela América do Norte na qual a jovem ativista sueca tratou de colocar o foco de atenção na questão da mudança climática e suas repercussões nas diversas comunidades do planeta.
Em novembro, Greta navegou de volta à Europa em direção à COP 25, a Cúpula Global do Clima em Madri (8-12 de dezembro) e ao mesmo tempo inundações as quais ocorrem uma vez a cada quinhentos anos arrasaram Veneza. Seus angustiados habitantes tuitavam imagens de água engolindo a cidade num fenômeno, a acqua alta, com poucos precedentes. O nível da maré que submergiu ruas medievais e monumentos de valor incalculável igualou uma marca anterior estabelecida em 1966. A Basílica de São Marcos foi inundada por água salgada pela sexta vez somente em seus mil anos de história. Nos últimos vinte anos, foram registrados dois destes acontecimentos.
A grande inundação de Veneza chegou depois de avisos cada vez mais urgentes da comunidade científica sobre a aceleração do ritmo ao qual se derrete o gelo antártico e seus previsíveis efeitos sobre os níveis globais do mar.
Toque de recolher
Em meados de outubro, justo quando a estação de furacões do Caribe estava dando lugar à estação de incêndios ao oeste dos Estados Unidos, um opulento enclave ao norte do condado de San Diego provocou uma controvérsia ao negar sua conformidade aos requerimentos da Comissão Costeira da Califórnia.
A agência, que tem jurisdição sobre a costa do estado, pediu a todas as comunidades com linha de costa sobre o Pacífico que preparassem planos de contingência que levassem em conta os prognósticos de erosão costeira e de inundação do litoral em virtude do aumento do nível do mar. As administrações locais têm que mostrar estarem preparadas para enfrentar as inundações que vêm com o planejamento de barreiras e muralhas contra o mar, projetos de escoramento e outras medidas. Entre estas, a Comissão Costeira está exigindo assim mesmo “retiradas planejadas” nas quais as cidades precisam mostrar planos para abandonar a primeira linha de costa e zonas de baixo nível mais propensas a sofrer inundações e com mais probabilidades de risco.
À luz de fenômenos climáticos ainda mais severos, e enquanto o establishment político se mantém ainda na negação científica, a “retirada das costas” converteu-se em realidade no plano das administrações locais. As cidades foram, de fato, elaborando o abandono das zonas de risco em seu planejamento urbano. De Nova Orleans a Miami (para não mencionar Fidji e Bangladesh), teve início a retirada planejada das costas, assim como, evidentemente, o êxodo muito mais caótico de refugiados climáticos.
O que se converteu em notícia em Del Mar foi a negativa de seus opulentos habitantes a contemplar sequer o abandono de suas residências de luxo frente às águas que avançam. De fato, é possível que eles – e muitos outros residentes na costa – em breve careçam do luxo dessa opção.
A costa da Califórnia está na realidade classificada como uma das melhor preparadas. Em outros lugares, muitas batalhas estão sendo perdidas. Depois da catastrófica chegada do furacão Katrina, por exemplo, já há terras renunciadas por Luisiana por “indefensáveis”. Um caso pertinente, a pequena ilha de Jean Charles, lar ancestral dos nativos chitimacha, biloxi e choctaw, perdeu 98% de sua massa terrestres, e seus últimos habitantes estão sendo massivamente remanejados.
Na Flórida, cujas 1 350 milhas de costa estão estatisticamente entre as que correm maior risco, a retirada das costas também já é uma realidade. Um estudo da Universidade da Flórida estimava que 80% dos Cayos de Flórida pode acabar debaixo d’água antes que termine o século. No Estado do Sol, seis milhões de habitantes podem acabar tendo que deslocar-se no interior, três milhões somente no condado de Miami-Dade. Cada uma das sucessivas estações de furações determina o avanço da água e a retirada dos proprietários de residências que decidem não reconstruir ou ficam sem cobertura por parte de bancos hipotecários e seguradoras, não tendo outra opção a não ser marchar.
Em outros lugares, como New Jersey, o estado comprou de seus proprietários 3000 residências que ficaram destruídas ou danificadas pela supertormenta Sandy em 2012, e foi decidido que seus terrenos ficarão desabitados de modo permanente enquanto se constrói uma barreira de oito quilômetros e meio em sua costa sul destinada a manter afastada a água… por enquanto.
A alarmante verdade que desponta de um crescente número de estudos e projeções científicas é que possivelmente até treze milhões de norte-americanos tenham que abandonar as costas à altura do ano 2100. A Grande Inundação de Veneza pode não ser mais que uma antecipação do que está por vir. E a mesma sorte podem correr logo os cidadãos de Dakha, Cidade Ho Chi Minh, Xangai, Mumbai e Calcutá. A crise de refugiados resultante poderia deixar pequeno o atual êxodo, assim como conduzir supostamente a reações xenófobas de mesma envergadura, que alguns chamam já de “fascismo climático”.
Antes da inundação
O aumento do nível do mar voltou de novo a produzir manchetes. Um novo estudo sobre o clima publicado pela revista Nature no começo de novembro apresentava um modelo de elevações telegráficas medido com uma série de métodos de laser (LiDAR) e satélite, e cruzava os dados com o prognóstico mais recente do aumento do nível do mar a fim de criar um mapa interativo para consultar ao que poderiam se assemelhar as costas do mundo em 2050.
Os resultados são dramáticos, por assim dizer. Até 190 milhões de pessoas vivem atualmente abaixo do nível, ao que, segundo as projeções, chegarão as marés altas para 2100. Porém, essas projeções se referem a hipótese em melhor dos casos, no qual se tomam medidas agressivas para conter e reduzir as emissões de carbono. No pior (e mais provável) dos casos, no qual as emissões seguem crescendo no ritmo atual, os refugiados climáticos se veem obrigados a abandonar terras que se converterão em inabitáveis podem chegar a totalizar 630 milhões, e 150 milhões somente 2050.
Miami, Xangai, Mumbai, Cidade Ho Chi Minh, Veneza e Nova Orleans estão entre as cidades que perderiam terra por causas de inundações ou ficariam em boa medida submersas. Os grandes deltas de todo o mundo, tradicionais ímans de centros populacionais, correm o risco de inundação. Na boca do Nilo, Alexandria pode acabar desaparecendo por completo. No Mississipi poderia perder-se boa parte do Bayou de Luisiana. Um destino semelhante pode acontecer com o delta de Mekong, o que ameaça vinte milhões de pessoas, um quarto da população do Vietnã.
Califórnia em alerta vermelho
Antes de deixar a América do Norte, Greta Thunberg passou vários dias na Califórnia. Falando desde Los Angeles, fez referência aos incêndios que devastavam o sul da Califórnia nesse momento. As dezenas de milhares de pessoas evacuadas nesses dias deveriam ser contadas, propõe ela, como refugiados do clima, vítimas das chamas avivadas pela seca anual e os ventos cuja intensidade progressiva ocasionou temporadas de incêndios cada vez mais ferozes e diretamente ligadas a um clima cada vez mais manifestamente fora de controle.
Tudo isso faz ganhar relevância a ausência patente de uma resposta política. Pelo contrário, Donald Trump, cuja administração considera a mudança climática uma “trapaça”, culpa as vítimas. Ameaça retirar a ajudar federal porque as autoridades locais não “limparam os bosques” como ele lhes havia indicado (não importando que os incêndios deste ano tenham feito arder quase exclusivamente mato nem que a maioria dos bosques da Califórnia encontrem-se em realidade em terreno federal). Trata-se dessa “depravada indiferença” denunciada por Robert Redford num cáustico artigo que comentava a saída dos Estados Unidos do Tratado de Paris em 4 de novembro.
O episódio resulta tragicômico, mas o choque cada vez maior entre Califórnia e o governo federal representa bem a ausência de uma resposta política capaz de enfrenta estar à altura de tão imperiosa ocasião.
A batalha faz parte de uma luta ambiental de maior âmbito que enfrenta Sacramento, a capital da Califórnia, contra a Casa Branca de Trump, que nega a mudança climática. Desde que acedeu ao cargo, Trump recomendou reverter a regulação da época de Obama – e nada mais veementemente que as estritas regras promulgadas sobre emissões de carbono – como parte de seu desmantelamento da EPA (Environmental Protection Agency) e do conjunto da estrutura de meio ambiente em nome do setor que emite carbono.
Isso por sua vez entrou em choque diretamente contra a Califórnia, a qual se outorgou nos anos 70 uma dispensa especial para estabelecer estritas normas próprias de eficiência de combustíveis às quais se insurgiram tradicionalmente os fabricantes automotivos. Trump ameaça agora revogar a isenção e obrigar o estado a se moldar a normas de eficiência mais frouxas.
A disputa deu lugar a um caos regulatório: Ford, Honda, Volkswagen e BMW, que representam aproximadamente 30% do mercado norte-americano, adotaram publicamente as regras da Califórnia. Toyota, General Motors e Fiat Chrysler subscreveram o plano de Trump. Dezenas de avanços na qualidade do ar e no maior mercado de veículos elétricos do país pendem por um fio.
Fazer soar o alarme
O enfrentamento da Califónia resulta emblemático do dano causado seguindo os passos da regressão liberal-populista que tem lugar precisamente no momento equivocado: justo quando a mudança climática requeriria uma política criativa e responsável e quando está se acabando o tempo. O fato se fez mais inequívoco com a publicação na BioScience de outro estudo mais em 5 de novembro.
Assim estabelece o documento em uma de suas partes: “os cientistas têm a obrigação moral de avisar claramente à humanidade de qualquer ameaça catastrófica… Sobre a base dessa obrigação e os indicadores gráficos apresentados mais abaixo, declaramos, com mais de 11 000 cientistas signatários de todo o mundo, que o planeta Terra enfrenta clara e inequivocamente uma emegência climática”.
Os firmantes continuam detalhando as ameaças e delineiam a resposta necessária em seis pontos. Resulta notável o sexto.
- Reduzir as emissões de carbono, metano e hidrofluorcarbonetos
- Substituir os combustíveis fósseis por fontes de energia renovável mais limpas
- Proteger e restaurar os ecossistemas ameaçados da Terra
- Reduzir o consumo de carne e reformar a produção industrial de alimentos
- Controlar a população
- Deslocar os objetivos econômicos do crescimento do PIB à sustentabilidade e dar prioridade à redução da desigualdade
Esta declaração de verdades fáticas por parte da comunidade científica calca a natureza política da crise, assim como uma condição prévia necessária para sua solução. Se queremos escapar desta viciosa espiral de consumo e crescimento à força que nos trouxe até este ponto, temos que repensar radicalmente o sistema que o produz. Os mercados não podem proporcionar a solução posto que em boa medida criaram o problema.
Tal como detalha Naomi Klein em seu último, On Fire, a alteração neoliberal do sistema está condenada a ficar curta, agora que se ignorou o problema durante tanto tempo. O capitalismo é incompatível com a sobrevivência do planeta, como ficou sobradamente claro em Veneza, onde nunca se protegeu o frágil sistema da laguna e se converteu num estanque de atracamento para mastodônticos cruzeiros, que danificaram ainda mais o leito marinho e quebraram a capacidade do ecossistema para se autorregular.
A dinâmica se realçou na Califórnia neste outono. Enquanto as chamas dos incêndios iluminavam de vermelho os céus, e os ventos de Diablo e Santa Ana quebravam-se nos cânions e arbustos, tinham também que lutar contra os apagões elétricos. Durante dias e dias, a inquietude pelo perigo que se aproximava se viu agravada pela falta de eletricidade em amplas franjas do estado, poupando milhões de cidadãos da exaltada utopia tecnológica, da quinta economia mundial, a uma incerteza pré-industrial.
Os cortes eram medidas de precaução intencionadas por parte das companhias elétricas do estado, a cujas linhas de alta tensão se culpou por um número crescente de incêndios. Os ventos semeiam o caos sobre os cabos elétricos a descoberto, provocando curto-circuitos e faíscas que resultaram em incêndios, entre eles o que destruiu 1200 moradias em Santa Rosa e o mortífero fogo que no ano passado matou 89 pessoas na cidade de Paradise, no norte da Califórnia.
A singularidade da Califórnia estriba no fato de que se privatizaram dois terços de suas empresas de serviços públicos. Empresas como PG&E e Southern California Edison tiveram poucos incentivos para manter uma infraestrutura envelhecida, concentrando-se, em contrapartida, no negócio de grandes empresas privadas: maximizar lucros, distribuir dividendos e generosas bonificações aos executivos. Ao mesmo tempo, conforme aumentam os danos dos incêndios e a destruição ambiental, as empresas de serviços públicos acabaram em bancarrota por causa das demandas e da responsabilidade civil, deixando para a população a fatura do resgate segundo o modelo familiar de lucros privados e perdas socializadas popularizado por Wall Street. Último exemplo das forças do mercado em sua depredação do planeta, que nos deixam para recolher os pedaços… e a fatura.
Não poderia haver, em resumo, pior regime para enfrentar a crescente emergência que o status quo neoliberal que surgiu com reaganismo para fagocitar o planeta com oligopólios financeiros que culminam na desbragada desigualdade de hoje e a ascensão de instáveis regimes extremistas, autoritários. Uma regressão global que, emparelhada com o desequilíbrio ambiental, supõe literalmente uma dupla ameaça mortal.
Assim se apresenta o cenário do qual se pode sustentar que supõe o maior desafio da civilização, o que terá que responder a questão colocada pelo teórico britânico Mark Fisher: Chegará a morte do planeta antes que a desaparição do capitalismo? Ou seremos capazes de imaginar uma alternativa?
Fonte: “Il Manifesto” global, 24 de novembro de 2019