Análise dos sambas-enredo do carnaval 2020 do Rio

Escolas do Grupo Especial pisarão na Sapucaí embaladas por caprichada safra de sambas e enredos marcados pela crítica social

Isaque Castella 10 jan 2020, 17:43

A qualidade das obras musicais apresentadas pela maior parte das treze escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro tem sido apontada pela crítica especializada como indicativo de que os desfiles de fevereiro prometem. O tradicional CD com os sambas-enredo das agremiações da elite do carnaval carioca, um dos mais comercializados nos meses que antecedem a festa popular, voltou a contar com gravações exclusivamente em estúdio. Mesmo sem o coro das comunidades, reunidas na Cidade do Samba, o produto é merecedor de muitos aplausos, haja vista seu crescimento técnico. A possibilidade de ouvir perfeitamente as letras é um ponto de destaque. A performance de intérpretes e ritmistas não deixou nada a desejar. Passear pelas faixas do disco é uma experiência que emociona os ouvidos e a alma.

Talvez a crise financeira vivenciada também no mundo do samba, e, em grande medida, diretamente ligada à tensa relação entre o carnaval e o poder político local, assim como o momento político conturbado no Brasil, de polarização e intolerância, tenham deixado uma marca compartilhada por praticamente todos os enredos e sambas: o fortíssimo apelo à crítica social, que adquire, em muitas obras, a forma de oração. Tratam-se de verdadeiras rezas contra diferentes mazelas vivenciadas por nossa gente e, em especial, os mais vulneráveis, que sofrem com o abandono do Estado e o preconceito de parcelas de uma sociedade ainda ultraconservadora e hipócrita.

Campeã do ano passado, a Estação Primeira de Mangueira abre o CD se credenciando para postular novamente entre as favoritas, com um samba que figura no pelotão dos melhores da safra, juntamente com Mocidade Independente, Portela, Beija-Flor de Nilópolis e com a agremiação detentora do grande samba do ano: a Acadêmicos do Grande Rio. Um pouco abaixo se encontram ainda Acadêmicos do Salgueiro, Unidos da Tijuca, Unidos de Vila Isabel, Unidos do Viradouro, Paraíso do Tuiutí e São Clemente. Já União da Ilha do Governador e Estácio de Sá, que retorna ao Especial, estão mais debilitadas no quesito samba-enredo.

A verde-e-rosa aposta mais uma vez em uma temática polêmica e de forte apelo popular como enredo. O carnavalesco Leandro Vieira levará para a avenida o Cristo político, pobre e cercado pelos excluídos. Um Jesus periférico que retorna e é novamente crucificado por uma sociedade adoecida, maculada por antigas formas de opressão, que insistem em persistir. O samba da escola sustenta a potência crítica do enredo e, por ser de fácil assimilação pelo público, deve explodir na avenida, em que pese seja melodicamente inferior à obra de 2019.

Destaque para a letra poética e caprichada e, especialmente, para os emocionantes e criativos versos “Nasci de peito aberto, de punho cerrado / Meu pai carpinteiro desempregado / Minha mãe é Maria das Dores Brasil”, para o forte e corajoso refrão “Mangueira / Samba, teu samba é uma reza / Pela força que ele tem / Mangueira /Vão te inventar mil pecados / Mas eu estou do seu lado / E do lado do Samba também” e para a passagem de crítica mais explícita com “Favela, pega a visão / Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão”, um ponto alto de interessante transição melódica. Nota: 10.

Por sua vez, a vice-campeã de 2019, Unidos do Viradouro, decidiu levar para a Sapucaí uma das maiores referências culturais de Salvador da Bahia: as Ganhadeiras de Itapuã, grupo musical baiano preocupado com a preservação da memória cultural do seu povo, e que lembra o ofício das mulheres negras ganhadeiras e à política de compra de alforrias. Trata-se de uma exaltação das mulheres de ontem, na beira da Lagoa do Abaeté, e de hoje.

O ponto alto do samba da agremiação de Niterói fica por conta do refrão principal e do trecho que o antecede, o qual, apesar de aprioristicamente apelativo, funciona muito bem e deve colocar a escola e o público para cantar: “Ó, mãe! Ensaboa, mãe! /Ensaboa pra depois quarar / Ora yê yê ô, Oxum! Seu dourado tem axé / Faz o seu quilombo no Abaeté / Quem lava a alma dessa gente veste ouro / É Viradouro! É Viradouro!”. A entrada da Viradouro na avenida promete ser quente se o refrão estourar. A excelente interpretação de Zé Paulo Sierra contribui para a elevação da qualidade musical da obra, que, contudo, deixa a desejar na riqueza da letra e da melodia em outros momentos, em que o samba cai em lugares comuns, como após o refrão do meio. Nota: 9,9.

A Unidos de Vila Isabel traz um enredo complicado do ponto de vista do apelo popular. Falar sobre a capital federal, Brasília, em um desfile de escola de samba não parece ser tão empolgante, mesmo com uma abordagem mais trabalhada, pré-Brasília. Com relação ao samba, é preciso destacar uma letra bonita, com versos como “Brasília, joia rara prometida / Que Nossa Senhora de Aparecida / Estenda o seu manto / Pro povo seguir”, e o melodioso refrão do meio “Ô, viola! / A sina de preto velho / É luta de quilombola, é pranto, é caridade / Ô, fandango! / Candango não perde a fé / Carrega filho e mulher / Pra erguer nova cidade”. Todavia, tirando o referido refrão e o começo do samba, com “Sou eu! / Índio filho da mata / Dono do ouro e da prata / Que a terra-mãe produziu”, a obra não empolga e inclusive dificulta o canto do componente em passagens como “Assim nasceu a Flor do Cerrado / Quando um cacique inspirado / Olhou pro futuro / E mandou construir”. O refrão principal não apresenta muita força e pouco parece se referir ao enredo da escola. Nota: 9,8.

Já a Portela trará para a Marquês de Sapucaí o Rio dos indígenas que ali habitavam antes da chegada dos colonizadores portugueses. A crítica social também se faz presente no samba da azul-e-branco, sobretudo em versos como “Nossa aldeia é sem partido ou facção / Não tem “bispo”, nem se curva a “capitão””. A obra portelense apresenta refrães fortíssimos melodicamente: “Auê, auê, a voz da mata, okê, okê arô / Se Guanabara é resistência / O índio é arco, é flecha, é essência” e “Índio é tupinambá / Índio tem alma guerreira / Hoje meu Guajupiá é Madureira / Voa Águia na floresta / Salve o Samba, salve ela / Índio é dono desse chão / Índio é filho da Portela”. A letra, em geral, trabalha bem com os elementos da cultura indígena, sem excessos que complicariam o canto. O único ponto negativo é a repetição desnecessária de “a ira de Monã”, que aparece em dois momentos distintos, o que não compromete, todavia, a qualidade do samba. Nota: 10.

O Salgueiro tem Benjamin de Oliveira, o primeiro palhaço negro do Brasil, como enredo. Mas, diferentemente de outras obras apoteóticas da agremiação, o samba-enredo de 2020 não condiz com a tradição da escola em torno da produção de grandes sambas com refrães principais marcantes. O ponto alto fica por conta de dois versos do refrão do meio, “Quando cair, no talento, saber levantar / Fazer sorrir quando a tinta insiste em manchar”, e pela passagem “Salta, menino! / A luta me fez majestade / Na pele, o tom da coragem / Pro que está por vir… / Sorrir é resistir!”. As rimas pobres, contudo, estão espalhadas pelo samba. São várias como liberdade e felicidade, novo e povo. As apostas melódicas lembram várias obras musicais que já passaram, em anos anteriores, pela Sapucaí. Nota: 9,8.

Com o enredo “Elza Deusa Soares”, a Mocidade Independente de Padre Miguel promete ferver a passarela do samba, tal como diz o próprio nome de sua bateria “Não existe mais quente”, que, cabe registrar, teve mais um desempenho fabuloso na gravação da faixa do CD. A interpretação de Wander Pires é outro show. O samba de 2020 traz dois refrães contagiantes e que certamente estarão na boca do povo e do componente da escola: “Laroyê ê Mojubá… liberdade / Abre os caminhos pra Elza passar… / Salve a Mocidade! / Essa nega tem poder, é luz que clareia / É samba que corre na veia” e “É hora de acender no peito a inspiração / Sei que é preciso lutar / Com as armas de uma canção / A gente tem que acordar / Da “lama” nasce o amor / Quebrar as “agulhas” que vestem a dor”. A subida que antecede o refrão principal é de incendiar a escola na avenida: ““Se acaso você chegar” com a mensagem do bem / O mundo vai despertar, deusa da Vila Vintém / Eis a estrela… / Meu povo esperou tanto pra revê-la”. Nota: 10.

A Unidos da Tijuca tem o retorno do vitorioso carnavalesco Paulo Barros e levará para a Sapucaí um enredo sobre as maravilhas naturais e arquitetônicas do Rio de Janeiro, eleito a capital mundial da arquitetura. A pegada crítica aparece com a denúncia ao desrespeito ao meio ambiente e um grito de socorro. O problema habitacional no Brasil também é tematizado pela agremiação. O samba da Tijuca é melodioso e possui uma letra bem construída, com passagens bastante ricas. Destaque para o trecho “Lágrima desce o morro / Serra que corta a mata / Mata, a pureza no olhar / O rio pede socorro / É terra que o homem maltrata / E meu clamor abraça o Redentor” e o verso do refrão principal “Dignidade não é luxo, nem favor”. Como pontos frágeis do samba, é possível apontar uma dificuldade inicial para a percepção de que o enredo trata de arquitetura e algumas rimas como saudade e cidade, construção e inspiração. Nota: 9,9.

A tradicionalmente crítica Paraíso do Tuiutí não deixa de lado sua vocação no enredo que homenageia São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. Destaque para o samba em forma de prece, na qual “a cidade das mazelas / Pede ao Santo proteção / Grito o teu nome no cruzeiro / Oh, Padroeiro! Toda a minha devoção!”. A força da obra da agremiação se encontra em dois dos três refrães: “Poeira, ê! Poeira! / Pedra Bonita pôs o santo no altar / Sangrou a terra, onde a paz chorou a guerra / Mas ele vai voltar!” e “No Morro do Tuiuti / No alto do Terreirão / O cortejo vai subir / Pra saudar Sebastião!”. Contudo, o samba fica aquém do enredo da escola, na medida em que não aborda de forma compreensível a relação estabelecida entre os dois “Sebastiões”, o rei de Portugal e o santo. Ademais, a obra musical não empolga para além dos refrães, sendo acometido pelo contraste entre momentos de alta e outros de ríspida queda. Nota: 9,9.

“Tatalondirá. O Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias” é o enredo da inspirada Grande Rio para o carnaval de 2020. A escola conta a história de Joãozinho da Gomeia, pai de santo baiano, negro e homossexual. Depois de apresentar sambas de medianos para fracos por anos consecutivos, a agremiação da baixada fluminense acertou em cheio dessa vez e chega com uma obra densa e convincente, assim como o enredo. A letra é pura poesia e as soluções melódicas de criatividade singular. O samba da safra. Destaque para a crítica social contra a intolerância religiosa no espetacular refrão principal: “Salve o candomblé, Eparrei Oyá / Grande Rio é Tatalondirá / Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé / Eu respeito seu amém/ Você respeita o meu axé / (respeita o meu axé)”, para o melodioso refrão do meio “Okê! Okê! Oxóssi é caçador / Okê! Arô! Odé! / Na paz de Zambi, ele é Mutalambô! / O Alaketo, guardião do Agueré” e para o efeito sensacional gerado pela repetição de “Pedra Preta”. Nota: 10.

A aposta na crítica social parece ser, ao mesmo tempo, o mérito e a fraqueza da União da Ilha do Governador. Confesso que não entendi muito bem a proposta da escola com o enredo abstrato “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: Salve-se quem puder!”. Mesmo assim, o samba-enredo escolhido ainda consegue ser interessante na medida em que toca em terríveis feridas da sociedade. Destaque para a crítica presente na segunda parte da obra, em que pese alguns versos não terem muita conexão: “Eu sei o seu discurso oportunista / É a ganância, hipocrisia / O seu abraço é minha dor, seu doutor / Eu sei que todo mal que vem do homem / Traz a miséria e causa fome / Será justiça de quem esperou / O morro vem pro asfalto e dessa vez / Esquece a tristeza agora… / É hoje, o dia da comunidade / Um novo amanhã, num canto de liberdade”. A boa interpretação de Ito Melodia fez a diferença mais uma vez, valorizando um samba mediano. A melodia não extrapola uma sonoridade já batida, inclusive relembrando outros sambas da própria Ilha. Nota: 9,5.

“Se essa rua fosse minha” é o enredo que a Beija-Flor de Nilópolis apresenta para 2020. A “Deusa da Passarela”, depois de um carnaval abaixo do esperado no ano passado, tenta se reerguer e voltar a ocupar as primeiras posições. Para tanto, a escola abordará as ruas, as estradas, os caminhos. A aposta parece ser em uma narrativa histórica, assumindo uma linearidade cronológica, tematizando lendárias ruas ao redor do mundo, até chegar à Marquês de Sapucaí, cuja história se confunde com a história da própria Beija-Flor, a maior campeã no Sambódromo. O samba-enredo tem a cara da agremiação nilopolitana com aquela melodia mais arrastada. Apesar de não ser tão empolgante, a obra deve funcionar na avenida, uma vez trabalhar com a emoção da comunidade, a partir da exaltação, até em exagero, da escola. Tudo compatível com o jeito Beija-Flor de desfilar. Destaque para o melodioso refrão “Nilopolitano em romaria / A fé me guia! A fé me guia!”. Nota: 10.

Considerada a escola mais injustiçada da última década, a São Clemente apresenta o enredo “O Conto do Vigário”. A proposta da agremiação da zona sul, irreverente como sempre, é abordar, com muita ironia, o trambique enquanto “patrimônio nacional”. O comediante Marcelo Adnet é um dos autores do samba-enredo clementiano, brilhantemente interpretado pelo trio Leozinho, Bruno Ribas e Grazzi Brasil. Destaque para a crítica atualíssima trazida no empolgante trecho que antecede o refrão principal: “Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu! / E o País inteiro assim sambou / “Caiu na fake news!””. Outro ponto alto é o refrão do meio: “Tem laranja! / “Na minha mão, uma é três e três é dez!” / É o bilhete premiado vendido na rua / Malandro passando terreno na lua!”. Trata-se de um samba leve e divertido e que, ao mesmo tempo, é potente na crítica social. O único porém é em relação à extrema simplicidade de algumas passagens, bem como do refrão principal, que não vai além do “clichê”. Apesar disso, é funcional e deve render um desfile animado, com a cara da escola de Botafogo. Nota: 9,9.

Coube à Estácio de Sá, como escola que chega ao Especial, abrir a primeira noite de desfiles da elite do carnaval carioca. Uma missão que parece complicada em demasia para o enredo pouco carnavalesco escolhido pela tradicional agremiação, a saber, “Pedra”. O samba padece do mesmo mal, não é dos mais inspirados, apresentando uma letra pobre, que não desenvolve bem um enredo confuso, vez que tenta abordar diversas dimensões sem uma conexão clara entre elas. A crítica à destruição gerada pela exploração mineral desenfreada aparece no trecho “Devastando a natureza no Pará dos carajás / Da lua, de Jorge, eu vejo o Planeta Azul chorar”. O ponto alto está no refrão principal, que empolga melodicamente: “O poder que emana do alto da pedreira / Tem alma justiceira tem garra de leão / Senhor não deixa um filho seu sozinho / Tirando pedras do meu caminho”. As repetições do falso refrão “peneirar, peneirar” e do refrão do meio “Ê, roda pra lá; ê, roda pra cá” não vão muito além do “clichê”. Nota: 9,6.


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