Agradecimento a quem fala com voz grossa em Angola

Isabel dos Santos é hoje investigada em Angola a propósito da cruel realidade de “uma acumulação primitiva de capital” por uma oligarquia.

Francisco Louçã 14 fev 2020, 11:34

Ao longo dos anos, depois da consolidação do poder de José Eduardo dos Santos com o fim da trágica guerra civil e após a morte de Savimbi, por diversas vezes, os governantes, ou o seu jornal oficioso, denunciaram as tomadas de posição de quem notou a captura dos recursos nacionais pela oligarquia constituída em torno da família do Presidente. Só lhes posso agradecer a voz grossa e essa vontade de enaltecerem os críticos.

Todo o cão e gato

A 13 de setembro de 2009, o controleiro do jornal, José Ribeiro, condenou-me por ter dito, em debate na TV com o então primeiro-ministro português, que a venda da Galp servia para enriquecer Américo Amorim e José Eduardo dos Santos. “Há neste comportamento uma tendência para quem está desprovido de qualquer ética querer dar lições a Angola”, escreveu. Foi a sua fase moderada, andava ainda pela província da ética. Um tempo mais tarde, em 18 de novembro de 2014, o editorialista já soltou a sua raiva: os críticos, como este vosso cronista, “chegam ao cúmulo de levantar suspeitas sobre a origem do dinheiro dos angolanos”. “É uma pura e seletiva perseguição aos interesses angolanos”, acrescentou. “Mas é inadmissível que todo o cão e gato em Portugal ponham em causa a origem do dinheiro dos empresários angolanos que investem naquele país” e, por isso, “os portugueses têm de decidir de uma vez por todas se querem ou não os angolanos como parceiros” (nesse momento, Isabel dos Santos procurava comprar parte da PT). “Atirar com nomes de angolanos para as páginas dos jornais ou dos meios audiovisuais como estando envolvidos em atos ilícitos é uma deslealdade que começa a cansar”, ameaçava o diretor.

Pouco depois, a 25 de outubro de 2015, novo editorial, desta vez contra “Luís Fazenda, Francisco Louçã e alguns iniciados da política contra Angola, Daniel Oliveira, Catarina Martins, Mariana Mortágua, que hoje aparecem ao lado de gente que foi aliada de Jonas Savimbi, como Agualusa e Rafael Marques”. Acrescentava, com um requinte de malícia, que “Francisco Louçã, autor da maior falta de respeito que se pode fazer a um chefe de Estado (…), vem hoje ganhar dinheiro em Angola” (referia-se ao facto de a Universidade Católica de Angola me ter convidado para dar aulas num mestrado, ao que acedi, tendo posto como condição não receber qualquer pagamento).

Corsários, como Francis Drake

A leitura deste jornal oficioso da presidência (a direção foi substituída quando João Lourenço chegou ao poder) esclarece ainda a explicação para a estratégia de saque de recursos por parte dos governantes. Como sublinhou um ministro angolano a um jornal português, este é o processo que repete o que Francis Drake, vice-almirante e corsário da Rainha Isabel I, fez ao longo de uma carreira de sucesso no século XVI, e é assim que se consegue “a acumulação primitiva de capital em Angola” (entrevista de Aguinaldo Jaime ao “Diário Económico”, 8 de maio de 2008). Na solenidade do Parlamento angolano, o então Presidente Dos Santos elevou esta teoria a uma regra: “A acumulação primitiva do capital nos países ocidentais ocorreu há centenas de anos e nessa altura as suas regras de jogo eram outras. A acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África deve ser adequada à nossa realidade” (discurso a 16 de outubro de 2013). Assim é, se bem que da “adequação à nossa realidade” tenhamos começado a ter alguns números concretos na semana que passou.

É curioso, para um partido que se chegou a dizer marxista (bem sei que depois ocupou a vice-presidência da Internacional Socialista e hoje está mais próximo da direita neoliberal), que esta evocação da autoridade histórica do processo de formação do capitalismo moderno através da pirataria, e até poderia lembrar outros meios então utilizados, como a escravatura, prove alguma leitura dos clássicos, mas sobretudo muita capacidade de reversão de posições. Em todo o caso, imagino que os governantes que exibem a imagem de Drake a roubar navios no alto mar se tenham sentido mais confortáveis.

A princesa Isabel

Um pouco antes do discurso presidencial sobre a “acumulação primitiva”, o “Jornal de Angola”, mais uma vez em editorial (25 de janeiro de 2013), entusiasmava-se com uma notícia que demonstrava o respeito do mundo: “A empresária angolana Isabel dos Santos foi considerada como a mulher mais rica de África pela revista dos EUA ‘Forbes’, que anualmente publica a lista das personalidades mais ricas do mundo.” O diretor não conseguiu esconder a sua emoção: “Enquanto damos o nosso melhor por uma Angola sem pobreza, exultamos com o facto de a empresária angolana Isabel dos Santos ser uma referência no mundo financeiro. Isso é bom para Angola e enche de orgulho os angolanos. Afinal o nosso sonho dourado é que todos os seres humanos sejam ricos e não haja carenciados, seja em que região for do planeta.” O editorial “exultava” triunfantemente: “Angola está sempre a subir, mas ninguém nos empurra para cima. É à nossa custa, com o nosso esforço, com os nossos recursos e com o talento, o querer e a inteligência de todos os angolanos.”

Isabel dos Santos, “uma referência no mundo financeiro”, é hoje investigada em Angola num processo sobre apropriação de fundos públicos, que terão imposto ao “sonho dourado” a cruel realidade da acumulação primitiva. A história repete-se mesmo, primeiro como tragédia, depois como farsa.

Artigo originalmente publicado no jornal “Expresso”. Reprodução da versão disponibilizada pelo Esquerda.net.

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