Interregno como chave para compreender a crise

Desde os levantes de 2011-2013 o mundo vive um momento de intensa aceleração do tempo/espaço da política.

Frederico Henriques 16 fev 2020, 21:17

Desde os levantes de 2011-2013 o mundo vive um momento de intensa aceleração do tempo/espaço da política. A marca disso é a crise nos regimes políticos antes existentes nos mais diversos países, assim como uma reorganização da geopolítica. A ascensão da China e o declínio dos Estados Unidos são outras marcas importantes deste novo tempo. Este período de grandes mudanças e a aceleração da história fazem com que muitas vezes nos preocupemos apenas com os fatos, com a tática do momento e percamos de vista os marcos gerais e a tentativa de distanciamento para a análise da situação concreta. Grandes textos analíticos e descritivos muitas vezes se preocupam mais em descrever em detalhes os diversos fatos do dia a dia do que apontar dinâmicas e tendências a longo prazo.

Neste contexto, alguns setores, ao observar tendências gerais recorrem, a conceitos estáticos que acabam por engessar a caracterização e entregar receitas prontas de políticas sem mediar com a realidade. É o caso de demarcar períodos simplesmente como defensivo ou contrarrevolucionário – e por consequência ter que fazer frente única com setores antes adversários – ou ofensivo – e ter de construir uma política de denúncia e exigência a uma direção dos trabalhadores traidora. Muitas vezes esse tipo de caracterização longe de armar uma boa política para o período nos engessa e nos deixa alheios a realidade dada.

Conceitos e categorias são fundamentais na política, em especial para os marxistas, como instrumentos para observar contradições e dinâmicas históricas para nos armar para intervir na realidade e transformá-la. Um ativismo sem reflexão nos leva a sermos reativos, assim como conceitos e categorias muito fechadas nos engessam e nos jogam para fora da realidade. Com o objetivo de compreender o atual momento e traçar dinâmicas dentro da nossa conjuntura, é interessante trabalhar com o conceito de interregno elaborado por Gramsci.

A forma como ocorre o debate político e as disputas de posições fazem com que muitos setores vejam o conceito de forma literal, longe da conotação marxista. Neste sentido interregno seria: “Intervalo ou interrupção passageira; interlúdio” ou “Interrupção momentânea entre dois reinados, durante a qual o trono permanece vago”. Trabalhar desta forma o conceito pode indicar que correlação de forças entre as classes está pareada, ou que se trata de um período restrito no tempo. Logo, muitos setores¨, tomando esta ideia, dizem que aqueles que usam esse conceito subestimam a extrema direita e a ofensiva da burguesia e o imperialismo no nosso tempo. A forma equivocada como se trabalha essa ideia gramsciana faz com que muitos debates se tornem estéreis e dificulte a compreensão dos diferentes. Neste sentido o texto buscará, de forma sintética, debater o interregno em Gramsci com o objetivo de nos armar para uma boa leitura e caracterização de nosso tempo.

O artigo buscará apresentar os conceitos de forma sucinta com o objetivo de fomentar o debate sobre o nosso tempo de forma mais rica, logo não se debruçará de forma acadêmica ou longa sobre os conceitos. Gramsci busca analisar as disputas políticas e a luta de classes a partir de chaves como força e consentimento, sociedade civil e Estado ou ocidente e oriente. Longe de ser uma separação real, estas formas analíticas que ele desenvolve são meramente metodológicas para o marxista italiano, pois de maneira concreta elas aparecem de forma “orgânica”, segundo suas próprias palavras. Ou seja, não existe uma contraposição de um ao outro, mas uma forma sistemática e única em que estes conceitos se expressam na realidade. Tendo isso em perspectiva a ideia-chave para compreender a crise e o interregno é hegemonia, como forma de exercício do poder nas sociedades ocidentais, ou democracias modernas.

Hegemonia é um conceito que perpassa toda a obra de Gramsci, mas, no que diz respeito aos Cadernos do Cárcere, existem dois significados mais presentes e utilizados de forma ampla no seu trabalho. Um primeiro mais restrito, que deriva do conceito de ideologia em Marx, está ligado à capacidade de direção de uma classe sobre outras, ou seja, a sua legitimidade e autoridade para impor consentimento e seus interesses sobre aliados, adversários e subalternos. No sentido mais amplo, ela combina essa ideia de dirigente, como no sentido anterior, com a ideia de dominação, no caso quando se fala de classe dominante é aquela que detém a força, poder de repressão, normalmente controla o governo. Conforme bem destaca no trecho abaixo:

O critério metodológico sobre o qual se deve basear o próprio exame é este: A supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como domínio e como direção intelectual e moral. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a liquidar ou a submeter inclusive com força armada, e dirige os grupos afins e aliados. um grupo social pode ir, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (está é uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante mas deve continuar a ser também dirigente.[1]

A conquista da hegemonia dos grupos dominantes surge quando eles alcançam a consciência de que seus interesses restritos, no atual desenvolvimento e futuro, superam o entorno corporativo, muitas vezes ligados meramente à conveniência econômica e passa a conquistar o espírito das classes subordinadas. Note a transição da fase econômica imediata para a fase política na qual um bloco de forças sociais faz prevalecer suas ideias sobre grupos contrapostos, criando assim uma hegemonia desta classe dominante e dirigente sobre as demais. Assim como para exercer o domínio de um grupo sobre os demais é necessário chegar ao poder, a capacidade de exercer a direção está ligada aos intelectuais orgânicos e seus aparelhos.

Existe um longo estudo do papel dos intelectuais e da política cultural para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político. Porém gostaria de destacar que esta autoridade construída pela classe dirigente só é possível por uma série de intelectuais orgânicos que junto aos sistemas e aparelhos hegemônicos, como educação, judiciário e mídia, cumpre uma relação pedagógica, a partir de uma função organizativa e de conexão da sociedade.

Em Gramsci, o debate sobre  hegemonia também translada para a força com que um Estado pode exercer sobre o outro, ou seja, para além de extensão territorial, força econômica e poderio militar a potência de um determinado Estado também está dada pela capacidade de impor uma direção autônoma que repercuta sobre outros. Logo, ele, a partir dos seus conceitos, faz uma releitura sobre o imperialismo adendando novos aspectos para além daqueles trabalhados por Marx e Lenin. Neste sentido, para Gramsci, a história do mundo e entender o nosso tempo só pode ser vista a partir do elemento internacional, mas que personifica de maneiras diferentes em cada país.

Realmente, a relação “nacional” é resultado de uma combinação “original” única (em certo sentido), que deve ser compreendida e concebida nesta originalidade e unicidade se quer dominá-la e dirigi-la. […] Mas a perspectiva é Internacional e não pode deixar de ser. É preciso, portanto, estudar exatamente a combinação de forças nacionais que a classe Internacional deverá dirigir e desenvolver segundo a perspectiva e as diretrizes internacionais.[2]

Logo, a crise de hegemonia, autoridade ou interregno inicialmente também se expressa no campo internacional. Primeiramente, na crise econômica de 2007-2008, mas, a partir de 2011, passa para o âmbito político. Crises dos regimes, como a decadência dos Estados Unidos como potência hegemônica, fortalecimento da China e diversos atores regionais, apontam para aqueles elementos que Gramsci destacava na década de 20. O conflito entre um crescente “cosmopolitismo da vida econômica” e o “nacionalismo da vida estatal”. Guerras regionais, crise em blocos comerciais, Brexit, Trump e governos de extrema direita expressam muitos destes movimentos. Claro que se apresentam de formas e essências diferentes por causa do tempo e espaço, mas apontam uma tendência mais geral da crise que vivemos em nosso tempo. O conflito assimétrico entre diferentes interesses entre Estados e setores econômicos vai repercutir de forma diferente em cada país apontando diferentes tendências, entre elas a crise de hegemonia na qual se expressa de forma diferente em cada país.

A crise apontada anteriormente no cenário internacional impacta diretamente todos os países, mas de formas distintas. No Brasil não foi diferente, diversas mudanças vêm ocorrendo desde 2013 que definimos como crise da Nova República ou o regime de 1988. Porém, para chegar à ideia de interregno e entender melhor o que está acontecendo neste país, vamos avançar no debate sobre crises, de autoridade e orgânica, algo que Gramsci se debruçou durante boa parte dos seus anos de cárcere na Itália.

O marxista italiano vai tentar buscar entender como que no pós-Primeira Guerra Mundial os grupos políticos romperam com os partidos tradicionais e com a estrutura do Estado liberal constituído no período anterior da guerra, passando a questioná-las. Então, as massas saíram de uma posição de passividade, com que lhe davam com a democracia, e partiram para uma certa atividade política mesmo que de forma desorganizada. Para o intelectual sardo, é o fracasso de algum empreendimento político de uma classe dominante e dirigente que faz com que as massas saiam da posição passiva e passassem a questionar o consenso anteriormente exposto. No caso do Gramsci, foi a guerra, no caso do nosso tempo foi a incapacidade de incorporar de forma plena as massas e amplos setores no mercado de consumo e entregar melhor qualidade de vida. O modelo de conciliação de classes encontrou o seu limite a partir da crise econômica mundial junto com o estancamento de processo de redistribuição de renda tímido, que em 2013 acelerou o decurso de rupturas entre grupos dominantes e subalternos. À combinação entre a crise econômica e de representatividade é dado o nome de crise orgânica. O segundo aspecto desta crise é nomeada pelo autor como de autoridade ou de hegemonia.

O aspecto da crise moderna que se lamenta como onda de materialismo está ligado ao que se chama de crise de autoridade. Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais dirigente, mas unicamente dominante, detentora da pura força coercitiva, isso significa exatamente que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais, não acredito mais no que antes acreditavam etc. A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verifica-se os fenômenos patológicos mais variados.[3]

Estes processos de ruptura fazem com que o processo de crise de representatividade que inicia com uma crise no sistema político, como destacado anteriormente, se alastre por diversas instituições do regime. Num artigo anterior, na Revista Socialismo e Liberdade 19, eu busquei trabalhar o impacto dessa desorganização no funcionamento do sistema de justiça que busca modificar seus entendimentos constantemente, logo processos de jurisprudência são difíceis de serem garantidos sem constantes revisões, ou diferentes esferas e comarcas têm percepções distintas dos mesmos processos. Como pode se notar, os elementos triviais da crise de autoridade estão no sistema político, mas este é apenas um reflexo de uma profunda ruptura entre a estrutura e a superestrutura que aparece na incapacidade de direção do grupo dominante, que tem de buscar na repressão, fraude e corrupção manter seus interesses.

Logo, para Gramsci, o período do interregno é exatamente o momento em que existe uma ruptura entre a ideologia dos grupos dominantes com o conjunto das massas populares, fazendo com que elas passem a se movimentar. Neste período as classes dominantes tentam recompor o antigo regime ou estabelecer um novo inicialmente a partir da força, porém o resultado desta imposição é procrastinar o surgimento do novo. Neste caso, existe um “equilíbrio estático” e  “nenhum grupo, nem o conservador nem o progressivo, tem a força necessária para a vitória e mesmo o grupo conservador também precisa de um mestre”[4], sendo necessário um líder carismático para impor a vontade de um dos lados que avance com o seu projeto[5]. No Brasil esta movimentação pode ser observada através imposição do ultraliberalismo de Bolsonaro/Guedes, desejado pelas elites dominantes, que só conseguem ser implementadas, a partir de um aumento paulatino da repressão e ataque a setores subalternos. O trecho a baixo destaca bem isto:

No entanto, a depressão física levará no longo prazo um ceticismo difuso e nascerá uma nova “combinação”, na qual, por exemplo, o catolicismo se tornará mais ainda um jesuitismo mesquinho etc. Também daí se pode concluir que estão se formando as condições mais favoráveis para uma expansão inédita do materialismo histórico. A própria pobreza inicial que o materialismo histórico não pode deixar de ter como difusa teoria das massas o tornará mais expansivo. A morte das velhas ideologias se verifica como ceticismo diante todas as teorias e as formulas gerais e como limitação ao puro fato econômico (ganho etc.) e à política não só realista de fato (como sempre é), mas clínica em sua manifestação imediata. […] Mas esta redução à economia e à política significa justamente a redução das superestruturas mais elevadas às mais aderentes à estrutura, isto é, a possibilidade e necessidade de formação de uma nova cultura.[6]

Gramsci, neste trecho, demonstra como as antigas ideologias dominantes passam a ter um caráter parcial e incapaz de recompor a hegemonia. É neste momento que saídas autoritárias surgem e tentam se legitimar por outros meios – xenofobia, ceticismo nos poderes constituídos, chauvinismo, mas também é na descrença geral que surge a oportunidade para que teorias marxistas se massifiquem. Neste cenário, observamos o ideário da extrema direita se impor de forma massiva a partir do sistema político, além da expansão de setores religiosos conservadores. É também nesse momento que existe um recorde de vendas de Marx nos EUA, ou que Angela Davis leva milhares ao Ibirapuera em São Paulo. A contradição se coloca exatamente no enfraquecimento das antigas superestruturas, abrindo caminho para a disputa do que será o novo e criando este momento em que o “velho está moribundo”, mas o novo não nasceu, o interregno.

O estabelecimento de uma nova hegemonia não é dado por um prazo, ou vitórias pontuais, mas é construído ao longo do tempo a partir de uma nova política cultural e uma participação ativa de intelectuais orgânicos e conquista de novas posições. Neste sentido, a direita, a partir de grupos conservadores e religiosos, tentam ganhar terreno, enquanto os socialistas ainda têm dificuldades de apresentar um projeto distinto. Apesar do enfrentamento aos curdos e diferentes construções históricas, o exemplo da Turquia é emblemático: o AKP, de Recep Tayyip Erdoğan, durante 17 anos no poder vem reorganizando o regime a partir do islamismo.

A derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, criando uma crise sem precedente em todo o seu território, abriu espaço para o aparecimento do marechal turco e pai da República da Turquia Mustafa Kemal Atatürk. O primeiro presidente da Turquia promoveu reformas políticas e econômicas, além de culturais, que vão desde liberação do álcool, promoção das vestimentas ocidentais e participação da mulher na vida pública, até mudanças na língua com a mudança do alfabeto árabe para o latino, até a extinção de muitas palavras do árabe e do persa. Porém, com a chegada de Erdoğan ao poder, há uma mudança paulatina do eixo de poder, afastamento da União Europeia e intervenção na política regional, ascensão de islamistas não laicos a ministérios e combate aos moderados, como o caso Fethullah Gülen, implementação de ensino religioso e exaltação dos califados e do Império Otomano (muito similar à política do czarismo e à Igreja Ortodoxa na Rússia). Ou seja, busca construir um novo regime a partir de novas bases de legitimidade arraigado num forte liberalismo econômico e uma legitimidade na religiosidade islâmica.

É emblemático que em momentos chaves do Brasil a questão da cultura e da educação voltem a tona: podem-se mencionar a construção e a reinvenção da questão nacional durante o Estado Novo e do regime militar, a riqueza da construção de uma arte “subversiva”, a música, a literatura e as artes plásticas nos anos 1920/1930 e 1960. Nos momentos em que as massas questionam as classes dirigente e partem para uma ação ativa na política, é o tempo de disputar o futuro. Neste sentido, é sintomático que entre os principais alvos de Bolsonaro estejam a educação e a cultura com a construção do fantasma do marxismo cultural. Ao mesmo tempo em que financiam os grupos religiosos, entregando as políticas públicas de saúde mental e assistência social, vivemos momentos de interregno e o que está em disputa é a nova hegemonia.

Hoje é um momento em que estamos debatendo como fechará o amanhã: teologia da prosperidade, funk ostentação, diversos documentários debatendo narrativas discutindo o passado e o futuro, como “Democracia em Vertigem” e “Não vai ter golpe”. Ao trabalhar estes conceitos busco apontar que a esquerda socialista não deve agir de forma apática, ou querendo restabelecer o regime moribundo, pois é no momento do interregno que se encontra a disputa do que serão o novo e a futura hegemonia a ser estabelecida. Junto à contenção dos ataques, devemos também construir um novo projeto, com uma política cultural ativa com e para os subalternos, pois é tempo de desorganização e ceticismo generalizado. Uma postura passiva e de apenas reivindicação do velho, como observa Gramsci, apenas farão com que a extrema direita e os setores burgueses tenham protagonismo na construção deste novo que está por vir.


[1] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 5, edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001: 62-63.

[2] GRAMSCI, Antonio.Cadernos do cárcere, vol. 3, edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001: 314.

[3] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 3, edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001: 184.

[4] Ibidem, p. 61

[5] BIANCHI, Álvaro. Classe política e crise de democracia na crítica de Antonio Gramsci. Tempo soc. São Paulo, v. 31, n. 2, p. 7-29, maio de 2019.

[6] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 3, edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001: 184-185.


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