O conservadorismo anacrônico de Nos Tempos do Imperador
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O conservadorismo anacrônico de Nos Tempos do Imperador

Narrativa da telenovela das 18h vai na contramão do esforço de movimentos sociais na luta pela visibilidade de brasis preteridos pelo Brasil da “história oficial”.

Isaque Castella 14 set 2021, 23:52

​Com pouco mais de um mês de exibição, a telenovela de época Nos Tempos do Imperador tem recebido críticas pelo modo como aborda uma parte do período conhecido como Segundo Reinado. Trata-se de uma trama que se passa entre 1856 e 1870 e gira em torno da família imperial do Brasil. Assumindo um tom de seriedade, exceto em alguns núcleos paralelos, a produção global se propõe a traçar um retrato, com pitadas de elementos ficcionais, daquele momento histórico. 

​Ocorre que o folhetim traz um olhar ainda filiado a uma perspectiva historiográfica tradicional. O grande problema de uma proposta desse tipo é o apagamento ou a marginalização de personagens negras, indígenas, das classes precarizadas, e de suas lutas, a partir de uma visão paternalista, que as trata como passivas e dependentes de gestos de heroísmo de lideranças políticas de uma elite branca.

​A telenovela representa um desserviço ao colocar, por exemplo, as principais defesas abolicionistas nos dizeres dos protagonistas Dom Pedro II, Imperatriz Teresa Cristina e Condessa de Barral. Chega a ser constrangedor o apelo emocional de longas cenas em que tais personagens discursam com afinco contra o sistema escravocrata, antes de concederem alforrias. É preciso destacar a cena em que Luísa, a condessa, liberta Justina, que, na trama, é sua “criada” e principal confidente. Tudo ali transmite a ideia de que Luísa tem uma generosidade ímpar, mesmo mantendo sua amiga na condição de escravizada até então.

​Enquanto isso, uma revolta de malês contra fazendeiros escravagistas da Bahia não durou para além do primeiro capítulo. Jorge/Samuel, personagem que participa do movimento e acaba fugindo para o Rio de Janeiro, protagonizou a cena mais absurda da telenovela. Em uma conversa com sua namorada Pilar, o rapaz sugeriu a existência de “racismo reverso”. Isso porque a moça teria, na visão dele, sofrido discriminação por ser branca, quando da recusa do pedido de Pilar para morar junto ao amado na Pequena África.

​O casal é atravessado ainda por outra polêmica, envolvendo a personagem Zayla, a filha de Dom Olu, o rei da Pequena África. Mesmo sendo uma criança na primeira fase de Nos Tempos do Imperador, ela se apaixona por Jorge/Samuel, que já é adulto. Não se trata, porém, de um amor platônico, tipicamente juvenil. Zayla se comporta como uma vilã, ao tramar contra Pilar e jurar não permitir o sucesso do casal. A personagem, em última instância, só reforça o estereótipo da mulher negra raivosa e invejosa, o que se repete em várias telenovelas, conforme denunciado pelo movimento negro.

​Se Zayla é construída enquanto uma vilã para ser odiada pelo telespectador, o mesmo não ocorre com o grande vilão da trama, Tonico Rocha. Filho de um coronel do Recôncavo Baiano, assassinado no primeiro capítulo, ele é movido por vingança e pelo desejo de poder. É capaz de quaisquer atrocidades, sendo que suas falas chegam a dar asco. Além de escravagista, e extremamente racista e machista, Tonico, ao ser abandonado no altar por Pilar, combina um casamento com a irmã caçula dela, uma criança. Só que, apesar de asqueroso, ele é retratado, na maior parte do tempo, como uma personagem cômica, sempre metido em situações criadas para arrancar risadas do público. Assim, muita gente se afeiçoou a um vilão que não se cansa de proferir discursos odiosos e representa o que existe de mais reprovável na sociedade.

​O extremo oposto de Tonico na trama é Dom Pedro II. O imperador parece militar em defesa dos oprimidos em todos os capítulos. Questionamentos em torno do que seria uma romantização da figura histórica têm sido levantados. Apesar de progressista em certo sentido, talvez a abordagem de Dom Pedro II na telenovela peque pelo exagero. Não estariam os autores forçando a barra para convertê-lo em uma espécie de herói, bem ao estilo de uma perspectiva histórica laudatória de personalidades controversas?

​Não deixa de causar incômodos também a insistência na busca de personagens já tão exploradas pelos livros didáticos. Por que não apresentar ao grande público da telenovela, o principal produto audiovisual brasileiro, aquelas e aqueles que não estamparam as páginas de tais livros? Por que não apostar em projetos mais ousados, em diálogo com as discussões e demandas sociais do nosso tempo? Por que não se atentar aos movimentos desconstrutores como o do carnavalesco Leandro Vieira, da Mangueira, lançando um olhar alternativo para a história do Brasil? 

​Enfim, são muitos os porquês em se tratando de Nos Tempos do Imperador.


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