Monumentos entre a força e a poesia

Erguer monumentos públicos é um ato que pode tocar em feridas abertas da sociedade. Quando um marco da cidade fere toda uma classe, a sua retomada
pelo povo é um processo legítimo, não importando se a sua natureza é a poética que ressignifica ou a força que derruba e queima.

Gustavo Paris 3 mar 2022, 17:28

Não são raros os eventos em que levantes populares culminam em ações contra estátuas públicas. Casos recentes, como a derrubada da estátua do escravagista Edward Colston, em Bristol, na Inglaterra em 2020 ou a ação sobre a estátua do bandeirante Borba Gato, no Brasil em 2021, são exemplos de que a cidade do capital é erigida a partir de conflitos históricos que emergem das lutas entre as classes sociais. Para superar certa visão moralista sobre o tema, é necessário interpretar tais ações sem perder de vista as contradições inerentes ao capitalismo, as quais se manifestam em todas as relações sociais, incluindo-se a construção das cidades e a conformação de seus elementos constituintes, como os monumentos.


Palco e objeto das disputas entre as classes, o espaço urbano se configura também pela lógica do conflito, marcando na geografia lugares onde alguns poucos detém e exercem o poder sobre outros tantos. Constrói-se, assim, uma história hegemônica, contada inclusive através da construção das cidades e que se caracteriza pela glorificação de certas figuras e a consequente omissão de outras memórias existentes, presas em suas estruturas.

Importante elemento dessa construção de memórias, o monumento público figura como ferramenta no processo de dominação, uma vez que é erguido no espaço público como símbolo de uma narrativa histórica oficial em detrimento de outras. Por este motivo, tensionam em seu entorno algumas atitudes possíveis, das quais destacam-se aqui duas: a primeira, afeita aos grupos dominantes, encontra na institucionalidade a possibilidade de se desenvolver e se manifesta através da imposição da memória; a segunda, relacionada com a parcela explorada dentro do tecido social, se caracteriza pela resistência e opera diferentes formas de ressignificação dos territórios em disputa. Este breve texto não pretende fazer uma leitura mais aprofundada sobre a postura impositiva, embora não ignore a sua importância para a discussão. A ideia é lançar o olhar sobre a postura de resistência e seu potencial de ressignificação dos monumentos públicos a partir de uma forma de operação específica: a artística, representada aqui pela intervenção urbana Ensacamento, de autoria do grupo 3nós3 no ano de 1979.

O cenário é o Brasil dos fins da década de 1970, que passava por um momento peculiar de sua história. Desgastado, o regime militar encontrava-se no que a cientista social Maria D’Alva Kinzo (2001, p. 4) chama de primeira fase do processo de democratização do país, marcado sobretudo pela revogação do Ato Institucional n° 5, o mais violento dos decretos de toda a ditadura. Em paralelo, a sociedade civil passava a reocupar as ruas para reivindicar seus direitos, representada, no campo da militância política, pelos movimentos sociais e operários, os quais representavam grande potência crítica no que tange o autoritarismo implantado a partir do golpe de 1964. Na esfera das artes, segundo afirma o pesquisador Paulo Reis, o movimento não foi diferente. O autor aponta ser sintomático desse momento de transição para uma democracia ainda incerta o surgimento de propostas artísticas que utilizavam a cidade como principal suporte (REIS, 2009, p. 5). Tratava-se da retomada do espaço público pela sociedade civil inclusive pelo viés da arte.

Surgido neste contexto – e em paralelo a outros grupos de arte urbana –, o coletivo 3nós3 atuava de forma a se afastar do circuito oficial das artes que, representado pelas instituições e seus agentes, se configura historicamente pela institucionalidade e a lógica de mercado, mostrando-se excludente a boa parte da classe artística. O trio era formado pelos artistas visuais Mario Ramiro (1957), Hudinilson Urbano Jr. (1957 – 2013) e Rafael França (1957 – 1991) e foi responsável por um total de dezoito intervenções urbanas, operadas sobretudo na cidade de São Paulo entre os anos de 1979 e 1982.

Ensacamento, realizada no dia 27 de abril de 1979, foi a ação inaugural do 3nós3, uma operação que agregava três atos distintos. O primeiro, realizado entre meia noite e cinco da manhã daquele dia, consistiu em cobrir com sacos de lixo preto a cabeça de diversas estátuas públicas na cidade de São Paulo. Pela manhã, o segundo momento da ação se deu como ato performático: cada um dos integrantes telefonou para três jornais simulando serem vizinhos indignados com o suposto ato de vandalismo. A parte três da ação aconteceu em “parceria” com a mídia, uma vez que a veiculação espontânea das notícias, tomada como parte da obra, também assumiu um duplo papel para os ensacamentos, quais sejam, o de registro e também de multiplicação da circulação e recepção do trabalho.
Em seus três atos, Ensacamento incorpora um repertório híbrido, que vai da inserção de objetos sobre o espaço urbano à utilização da mídia, ambas articuladas pelo ato teatral dos telefonemas. Este conjunto de operações que estrutura a ação possibilita uma gama de reflexões de onde podem emergir outras perspectivas sobre o espaço do cotidiano. Desse modo, os ensacamentos induzem à ressignificação do elemento no qual se presta a intervir – o monumento público – ao tensionar o lugar não só em suas dimensões físicas, mas também (e principalmente), discursivas. Tal processo se faz presente em vários aspectos da ação, dos quais destacam-se aqui três.

O primeiro reside na relação entre o repertório de ação utilizado no primeiro ato e o contexto em que se inseriu: ensacar uma estátua pública poderia significar um gesto de alusão a práticas de tortura perpetradas pelo regime militar, o qual seguia em vigor e ainda se manifestava pela imposição através da força. O segundo aspecto interessante surge da forma perspicaz como o trio utilizou a mídia, o que não teve a finalidade de registro apenas, mas, como parte indissociável da ação, também assumiu como possibilidade a criação de novas narrativas sobre o trabalho, produzidas em conjunto com o próprio público. Sobre este fator, as notícias que surgiram como produto permitiram um efeito multiplicador de circulação e recepção do trabalho, extrapolando o espaço e o tempo nos quais fora realizado. O terceiro, com um caráter direto no processo de construção de memórias, chama a atenção pelos moldes como as matérias foram escritas: em linhas gerais, levantavam a bandeira do patrimonialismo e demonizavam a suposta prática de vandalismo, excluindo a discussão acerca da violência praticada pelo estado autoritário, se configurando como documento histórico que revela, inclusive, parte de um papel desempenhado pela mídia no Brasil durante o regime militar.


Retornando à atualidade, observar os ensacamentos do 3nós3 faz emergir uma série de elementos para reflexão tanto acerca dos marcos que compõem a cidade capitalista quanto das formas de resistência que podem ser operadas sobre eles. Longe de opor a poética existente na ação artística da força nas operações como nos casos das estátuas do Edward Colston e Borba Gato, faz-se aqui um exercício de compreensão de que a ideia da neutralidade em torno do monumento, como uma jóia na cidade, é na realidade uma construção social repleta de parcialidades e contradições, pois sua existência também representa imposições violentas de um poder hegemônico sobre as massas dominadas. Para que uma outra forma de realidade seja possível, cabe àqueles que compõem a oposição revelar as lacunas da história, ocupar os espaços da cidade e ressignificar os lugares que lhes são de direito. Seja pela força, seja pela poesia.


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Camila Souza