Entre algoritmos e tutores: quem rouba o futuro da educação?
Em meio às lutas da educação em São Paulo, é hora de romper o silêncio, defender a escola pública e derrotar o projeto neoliberal dos governos
Foto: Mobilização de educadores municipais de São Paulo. (Redes Sociais/Reprodução)
Vivemos, hoje, um momento crítico na história da educação brasileira. Trata-se de um ataque sem precedentes, não apenas em sua intensidade, mas na forma como tem se articulado com diferentes esferas da vida social. O que está em curso não é apenas uma disputa sobre métodos pedagógicos ou organização institucional, mas sim a tentativa sistemática de desmonte da escola pública como espaço democrático, autônomo e formador de sujeitos críticos. Os sinais desse processo são visíveis e inquietantes, tanto nas políticas educacionais quanto na cultura e nas representações sociais sobre a juventude e o aprender.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, a prefeitura promove um processo acelerado de privatização de unidades escolares, ao mesmo tempo em que apresenta reajustes salariais irrisórios, que desvalorizam ainda mais os profissionais da educação. Essa política de esvaziamento da escola pública se dá por dentro, com parcerias público-privadas, ONGs e empresas de tecnologia assumindo a gestão de territórios educativos que, até então, eram espaços de construção coletiva e popular. No âmbito estadual, o cenário não é diferente: a militarização das escolas avança como estratégia de controle e disciplinamento dos corpos juvenis, substituindo o diálogo e a pedagogia pela vigilância e pela coerção.
Além da militarização e da privatização, assistimos a uma crescente digitalização do ensino, não como ferramenta de apoio pedagógico, mas como instrumento de padronização e monitoramento. Plataformas tecnológicas são utilizadas para aplicar avaliações em larga escala e gerar dados que reforçam a lógica da meritocracia escolar, desconsiderando as condições concretas dos estudantes. Ao mesmo tempo, os professores veem sua autonomia pedagógica sendo corroída por um sistema que os transforma em tutores de videoaulas, operadores de sistemas, e executores de metas burocráticas. O que se promove, nesse modelo, é a substituição do vínculo humano e do conhecimento vivo por pacotes prontos, avaliações automatizadas e um ensino cada vez mais desumanizado.
Esse esvaziamento da escola pública não se manifesta apenas nas políticas, mas também nos discursos e imaginários sociais. A crise da educação é representada, inclusive, no campo da arte e da cultura, como evidencia a série Adolescência. Mais do que uma crítica às redes sociais ou ao comportamento juvenil, a série expõe o colapso das instituições educativas — seja na família, seja na escola. Ao retratar jovens abandonados à própria sorte, tutelados por plataformas digitais e privados de vínculos afetivos e de acompanhamento qualificado, a narrativa denuncia o fracasso de um modelo de educação que prioriza a performance individual e o controle moral em detrimento da formação crítica e do cuidado coletivo.
O que está em jogo, portanto, não é apenas a organização da escola, mas o próprio projeto de sociedade que desejamos construir. A ofensiva contra a educação pública revela um modelo de país baseado na exclusão, no autoritarismo e na mercantilização dos direitos sociais. Neste texto, proponho retomar as lutas travadas nos últimos trinta anos em defesa da escola pública, evidenciando os ataques e resistências que marcaram esse período. Em seguida, analiso como, no contexto pós-pandemia, esses processos se intensificaram e assumiram novas formas, aprofundando o desmonte da educação como direito e transformando radicalmente o papel da escola, dos professores e dos estudantes.
Do desmonte à captura: como o neoliberalismo reprograma a escola
A educação pública, gratuita, de qualidade e com um projeto formativo integral do ser humano, é uma das conquistas mais importantes da classe trabalhadora ao longo do século XX. Fruto de intensas mobilizações sociais e de um acúmulo histórico de lutas, a consolidação da escola pública crítica e inclusiva, ainda que desigual e incompleta, representou um avanço civilizatório em muitos países. Esse projeto ganhou força, especialmente no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, quando, diante das ameaças do fascismo e da disputa ideológica da Guerra Fria, os países ocidentais — sob o marco da social-democracia — passaram a incorporar políticas públicas voltadas à ampliação dos direitos sociais, entre eles, o direito à educação.
No entanto, o que se observou nas décadas seguintes foi um processo de transformação profunda desses compromissos. Com o avanço do neoliberalismo, a partir dos anos 1970 e, sobretudo, nos anos 1980 e 1990, as políticas educacionais passaram a ser moldadas por uma lógica de mercado. A educação deixou de ser entendida como direito social e passou a ser tratada como mercadoria, serviço ou “investimento em capital humano”. Esse deslocamento foi operado por duas frentes principais: de um lado, a reorganização da gestão dos fundos públicos da educação, priorizando modelos gerenciais e metas de desempenho; de outro, a substituição progressiva da oferta estatal direta de educação por mecanismos de terceirização e privatização, como é o caso da expansão do ensino superior privado e da presença crescente de organizações empresariais na formulação e execução de políticas educacionais.
Mesmo nos momentos em que a educação pública se expandiu, ela sempre esteve inserida nas contradições próprias do sistema capitalista. Desde suas origens, a escola foi utilizada como instrumento de formação de força de trabalho e de legitimação das desigualdades. A própria ideia de “igualdade de oportunidades” — tão exaltada nos discursos oficiais — servia, muitas vezes, para naturalizar a divisão entre trabalhadores qualificados e não qualificados, justificando diferenças salariais, acesso desigual a bens e serviços, e a concentração do conhecimento. Em sociedades marcadas por desigualdades históricas e estruturais — como o Brasil — a educação, mesmo como conquista, também operava como mecanismo de reprodução da hierarquia social, racial e de classe. A promessa de ascensão social por meio do mérito escolar, sem que as condições objetivas de vida fossem igualadas, reforçava uma falsa noção de democracia.
Com o avanço das políticas neoliberais, a educação continuou exercendo papel central, mas de maneira ainda mais subordinada à lógica do capital. A ampliação do acesso ao ensino básico se deu muitas vezes acompanhada da precarização das condições de ensino. A massificação da escola pública veio sem o correspondente investimento em infraestrutura, valorização docente ou diversidade curricular. O ensino médio e, sobretudo, o ensino superior, passaram a operar como novos marcadores sociais de distinção. A universidade, antes reservada às elites, foi progressivamente acessada por setores populares — o que foi importante —, mas ao mesmo tempo se converteu, em grande medida, em espaço de reprodução de novas desigualdades, com a explosão do setor privado, frequentemente de baixa qualidade, que servia como válvula de escape ao sistema sem exigir contrapartida do Estado.
Durante os anos 1990 e 2000, esse modelo se consolidou com força. Governos de diferentes matizes políticos, sob o pretexto de promover a inclusão, incentivaram a expansão do ensino superior privado e promoveram parcerias público-privadas na educação básica. A ideia de que a escola poderia ser o caminho para o sucesso individual — uma promessa meritocrática — passou a orientar muitas das políticas públicas e também o imaginário social. A educação se tornava cada vez mais um investimento individual, uma via para “vencer na vida”, desvinculada de um projeto coletivo de emancipação. Apesar disso, o Brasil manteve certa proteção aos fundos públicos da educação, com garantias constitucionais mínimas de investimento. Isso foi possível, em grande parte, pela atuação vigorosa dos movimentos sociais de educação, dos sindicatos de professores e da juventude organizada, que lutaram para evitar que a educação fosse desmontada da mesma forma como ocorreu em outras áreas, como a saúde e a assistência social, onde as organizações sociais (OSs) se tornaram gestoras hegemônicas.
Contudo, nos últimos anos, observamos o avanço de novas estratégias de privatização da escola pública. Esses processos ocorrem tanto de forma direta quanto indireta. A forma direta envolve a entrega da gestão escolar para organizações sociais ou para fundações empresariais, como já acontece em diversas redes estaduais e municipais. Nesse modelo, empresas privadas passam a operar a escola pública como se fosse uma prestadora de serviços, adotando práticas de avaliação, monitoramento e controle que esvaziam o trabalho pedagógico e a autonomia docente. A forma indireta é ainda mais perigosa: parte do orçamento da educação passa a ser capturada por setores que não têm compromisso com o direito à educação, como forças de segurança pública e grupos conservadores que operam sob uma lógica de militarização e vigilância.
Esse novo ciclo é marcado por uma ofensiva ideológica reacionária que busca moldar a escola como espaço de disciplina, obediência e neutralização do pensamento crítico. A militarização do ensino, promovida por governos estaduais e incentivada por discursos autoritários, representa um dos principais riscos à liberdade de ensinar e ao pluralismo pedagógico. Ela vem acompanhada da imposição de plataformas digitais padronizadas, da desvalorização do magistério, da substituição de professores por tutores precarizados e da promoção de uma pedagogia de resultados que elimina os vínculos afetivos e o espaço do diálogo.
Esse modelo, aprofundado no contexto pós-pandemia, se fortaleceu com o uso emergencial das tecnologias de ensino remoto. Se, por um lado, as tecnologias permitiram alguma continuidade no processo educativo durante o isolamento, por outro, abriram brechas para a consolidação de um novo regime de ensino tutelado, controlado por algoritmos e mediado por grandes corporações. A figura do professor foi gradualmente substituída por sistemas de videoaulas, tutores de baixa remuneração e plataformas de coleta de dados. Essa digitalização da educação pública não veio acompanhada de investimento em infraestrutura ou formação docente, mas sim de contratos lucrativos com empresas de tecnologia — muitas delas sem qualquer histórico de compromisso com a educação pública.
Assim, o que se observa não é apenas a precarização do ensino, mas uma tentativa deliberada de reformular o próprio papel da escola na sociedade. A educação pública, que deveria ser um espaço de encontro, reflexão, diversidade e construção coletiva, é gradualmente convertida em um ambiente de conformismo, controle e preparação para as exigências do mercado. Nesse contexto, o ensino superior, o pensamento crítico e a valorização do tempo longo de escolarização passam a ser sistematicamente questionados, enfraquecendo a ideia da educação como instrumento de emancipação e nos conduzindo a um novo patamar de regressão educacional e social.
É comum ouvirmos que a atual desvalorização da educação seria resultado de ações pontuais — seja por influência de jovens “influencers” nas redes sociais, seja por líderes autoritários e anticientíficos, como Donald Trump, que promoveu sucessivos ataques às universidades e ao pensamento crítico nos Estados Unidos. Embora tais figuras e fenômenos contribuam para o esvaziamento simbólico da educação, essa explicação limitada nos impede de enxergar um processo mais profundo e estrutural: uma transformação orgânica, enraizada no próprio tecido da sociedade contemporânea, que vem redefinindo o sentido da educação a partir de parâmetros essencialmente utilitaristas, mercadológicos e individualistas.
Essa mudança de perspectiva não se dá apenas por imposição política, mas responde a uma nova forma de imaginar o papel da escola e da universidade. A educação, antes concebida como prática formativa integral do ser humano e ferramenta de construção crítica da realidade, passa a ser tratada como um simples instrumento para identificar oportunidades de mercado e maximizar ganhos individuais. Em outras palavras, vivemos hoje a hegemonia de uma racionalidade onde a educação perde seu valor intrínseco e passa a ser valorizada apenas enquanto recurso técnico: um meio para empreender, calcular riscos ou explorar nichos de mercado emergentes.
Nesse modelo, o conhecimento deixa de ser um bem coletivo ou um instrumento de emancipação para se converter em capital individual. A lógica da inovação e da disrupção — associada ao universo das startups, do empreendedorismo e das apostas digitais (as bets) — impõe à educação uma nova finalidade: não formar sujeitos reflexivos e críticos, mas indivíduos aptos a se adaptarem rapidamente às tendências do mercado, a operarem dados, a lidarem com algoritmos e a se tornarem “empreendedores de si mesmos”.
Nesse contexto, a valorização de carreiras de longo prazo, como uma graduação de quatro anos ou uma pós-graduação acadêmica, entra em colapso. Cursos superiores tornam-se, para muitos, sinônimo de tempo perdido. O que ganha força são as formações “expressas”: cursos online de curta duração, tutoriais gravados por influenciadores, diplomas da educação fast food ou plataformas tecnológicas que prometem rápida inserção no mercado. Trata-se de uma reconfiguração da ideia de aprendizado: o que importa não é mais o processo formativo, mas sim a obtenção imediata de resultados funcionais.
Essa lógica atinge diretamente o ensino superior, que tem passado por uma reestruturação agressiva. A ampliação do ensino a distância, com plataformas que prometem diplomas a baixo custo, opera como uma solução pragmática para indivíduos que não têm tempo ou recursos para frequentar instituições presenciais. Contudo, o que se vende como flexibilidade e modernidade, muitas vezes se revela como precarização do ensino, abandono da convivência universitária e dissolução do trabalho docente. A mediação tecnológica, longe de democratizar o saber, reconfigura o espaço educativo como uma esteira de certificações e tutoriais, distantes da complexidade que o pensamento acadêmico exige.
Mais recentemente, essa tendência tem se aprofundado no ensino médio, especialmente nas redes públicas. Modelos como o “ensino médio mediado por tecnologia” ganham espaço com a justificativa de “modernizar” a escola e “falar a linguagem dos jovens”. A promessa de inovação, porém, encobre uma reestruturação silenciosa que substitui professores por tutores, prioriza videoaulas gravadas em detrimento da presença e da escuta em sala de aula, e transforma o estudante em mero consumidor de conteúdos digitais.
Essa transição é acompanhada de um discurso perigoso: o de que a tecnologia seria neutra, “não ideológica”, e por isso mais eficiente. No entanto, a tecnologia nunca é neutra — ela carrega interesses, filtros, estruturas de poder e critérios de exclusão. A suposta objetividade dos algoritmos que selecionam conteúdos e “orientam” o aprendizado mascara o fato de que o que está sendo oferecido é um currículo mínimo, instrumental, voltado à adaptação às demandas do mercado e não à formação crítica do cidadão. Essa crítica encontra eco em produções culturais contemporâneas, como a série Adolescência, que dramatiza o colapso afetivo, institucional e pedagógico vivido por jovens em um contexto de esvaziamento da escola como espaço de vínculo e pertencimento. Na série, os personagens estão imersos em uma rotina de ensino mediado por tutores e plataformas digitais, onde a aprendizagem é mecanizada e desprovida de qualquer relação humana significativa. Os conflitos emocionais, as tensões familiares e a ausência de projetos coletivos evidenciam como a redução da escola a um espaço técnico e funcional mina o desenvolvimento subjetivo e social da juventude. A obra não se limita a criticar as redes sociais ou a apatia adolescente, mas aponta diretamente para a falência de um modelo educacional que abdica do contato, da escuta e da construção compartilhada do saber — justamente os elementos que deveriam estar no centro de qualquer proposta formativa.
Esse modelo empobrece radicalmente o sentido da escola. Ao contrário do que afirma o discurso tecnocrático, a educação mediada por plataformas e tutores precarizados não fala a linguagem da juventude — ela suprime o diálogo. Ela fragmenta a experiência, desvaloriza a escuta, substitui o professor pelo roteiro de aula e reduz o saber à informação processável. A juventude não precisa de pacotes prontos e acelerados: precisa de tempo, de mediação humana, de espaços de experimentação e conflito, de vínculos afetivos e coletivos — tudo aquilo que uma tela e um formulário não podem oferecer.
Essa reconfiguração do campo educacional também se vincula a um novo modo de conceber o próprio trabalho e o futuro do emprego. O que está em disputa não é apenas a forma como se ensina, mas qual mundo se deseja construir por meio da educação. A formação voltada à empregabilidade imediata, à adaptação acrítica e ao empreendedorismo de sobrevivência substitui a ideia de educação como construção coletiva de um projeto de país, como possibilidade de romper com estruturas de opressão e desigualdade.
Entre a precarização e padronização faremos um Levante da Educação
É nesse horizonte que devemos compreender as greves e mobilizações das professoras e professores nas redes públicas de ensino. Quando paramos, ocupamos praças, escrevemos cartas abertas e enfrentamos o desgaste cotidiano de explicar nossas pautas à sociedade, não estamos lutando apenas por salário — embora a valorização salarial seja fundamental diante da corrosão do poder de compra e do desrespeito institucional. Estamos, sobretudo, em luta contra um modelo de destruição sistemática da escola pública e por uma outra concepção de educação.
Na cidade de São Paulo, nossa greve é também uma forma de dizer que não aceitaremos calados a transformação da escola em plataforma de controle, a substituição de professores por tutores, a privatização disfarçada via organizações sociais ou a militarização do cotidiano escolar. Estamos denunciando o esvaziamento de sentido da educação, que vem sendo tratada apenas como meio de produzir resultados para o mercado e não como um direito humano e coletivo. Queremos pautar a sociedade, chamar os pais, mães, estudantes e trabalhadores para o centro desse debate e construir, juntos, um projeto de escola viva, democrática e enraizada nas realidades e potências de cada território.
Por isso, a luta por reajuste salarial caminha junto com a defesa da escola como espaço de produção de conhecimento, de vínculo humano, de autonomia intelectual e de esperança. Cada ato, cada assembleia e cada texto é também um chamado à sociedade para que não naturalize o colapso da educação pública nem aceite como inevitável o retrocesso. Estamos pensando e propondo uma nova educação — e, portanto, uma nova sociedade.
Diante desse cenário, torna-se urgente recuperar o sentido da educação como prática de liberdade e construção de cidadania. A escola não pode ser reduzida a algoritmos e tutoriais, pois é, acima de tudo, um espaço de encontro, escuta, criação e sonho. Defender uma educação pública, crítica e inclusiva é parte fundamental da luta contra os autoritarismos e a lógica da mercantilização da vida.
Como lembrava Paulo Freire, educar é um ato político. Por isso, nossa greve expressa mais do que uma reivindicação por direitos: ela é um compromisso com a democracia, com a justiça social e com o direito das juventudes ao pensamento crítico e à pluralidade de ideias. Lutar por educação é disputar o rumo do país — porque não se trata apenas de uma pauta da categoria, mas de toda a sociedade, entre a precarização e a esperança, entre o conformismo e a construção de outro futuro possível.