A militância antiproibicionista no Brasil

Um relato um tanto autobiográfico sobre o crescimento do ativismo antiproibicionista e canábico ou maconheiro, em particular, e a conquista de legitimidade para o uso dessa planta.

Henrique Carneiro 26 abr 2016, 20:58

Vou fazer neste texto um relato um tanto autobiográfico, pois assim posso me referir a um processo objetivo ocorrido no Brasil e no mundo nas últimas décadas, que foi o crescimento do ativismo antiproibicionista e canábico ou maconheiro, em particular, e a conquista de legitimidade para o uso dessa planta. Trazendo minhas recordações posso também me situar nesse processo e tentar aquilatar as suas características a partir da minha experiência vivida.

No final dos anos de 1970, a decadência da ditadura foi precipitada pela emergência de movimentos sociais, que começaram com os estudantes, em 1977, e se estenderam para os operários com as greves no ABC a partir de 1978.

A agenda de lutas daquela época era democrática, no sentido de exigir o fim da ditadura e liberdades de organização, manifestação e expressão.

Ao mesmo tempo em que ocorria um renascer da luta operária grevista de massas, o Brasil também vivenciava formas de rebeldias que haviam se iniciado antes em outros países, como o despertar feminista, dos direitos dos homossexuais e o movimento negro nascente e que a ditadura por um longo tempo abafara.

Quando adolescente, participei da efervescência em torno destes temas que ocorria em torno do jornal Versus, em São Paulo, descobrindo com euforia o desafio de fazer de novo passeatas estudantis.

Uma questão que ainda faltava, entretanto, era a expressão da luta antiproibicionista e pela legalização da maconha. O Brasil, de antiga herança escravista e racista, em que maconha havia sido identificada como hábito de negros, de nordestinos, de favelados, se constituindo numa conduta qualificada com doentia ou criminosa, havia desenvolvido uma nova cultura maconheira urbana transgressiva no período da ditadura, em que os traços hippies e contraculturais se associavam a uma atmosfera orientalista com inclinações budistas e hinduístas, em que os estados de meditação, transe e êxtase eram valorizados como novas dimensões espirituais indispensáveis de serem conhecidas.

No seio da esquerda, os setores stalinistas e maoistas identificavam esse uso de drogas a formas de alienação, escapismo, desbunde e comportamento tipicamente não operário. Os trotskistas se dividiam: a corrente lambertista, profundamente puritana e burocrática proibia terminantemente1. Os mandelistas eram mais tolerantes e os morenistas tiveram um debate no período em que participei da corrente secundarista Alicerce da Juventude Socialista em que tentei incluir essa questão no programa de reivindicações.

No movimento secundarista, onde ajudei a reorganizar as uniões secundaristas e presidi a UMES e UPES, entre 1980 e 1982, começamos a debater a política de drogas e a defender a legalização da maconha.

Assim como participava dos atos e debates do movimento negro, feminista e gay, identifiquei na perseguição e criminalização da maconha um denominador comum às demais opressões e uma espécie de modo de vida para uma enorme simbiose entre o tráfico clandestino e os aparelhos repressivos.

Era, assim, uma chave central do dispositivo de controle da juventude, dos pobres, dos negros, das mulheres, não só como estigma conservador que apontava como único usuário possível de maconha o indolente, o fracassado, o viciado, o doente e o criminoso, mas como atividade corriqueira de repressão e extorsão em cada quebrada.

Essa situação cotidiana de extrema vigilância, intimidação e coerção da juventude sob o pretexto das drogas, se converteu no motivo número um para suspeição e abordagem de jovens, constituindo uma zona de ilegalidade no âmbito da vida privada, que tornou permissível e sistemática a violação dessa esfera privada e íntima pelos aparelhos jurídicos e policiais.

A primeira campanha política num âmbito eleitoral a ser realizada com um eixo na legalização da maconha foi a da Caterina Koltay, para a Câmara de Vereadores de São Paulo, em 1982, pelo PT.

Inspirado nela, resolvi, em 1986, na campanha pela Constituinte, levantar essa proposta como candidato a deputado federal constituinte. Fizemos um abaixo-assinado com algumas dezenas de personalidades e pretendíamos apresentá-lo num ato público no Teatro Municipal de São Paulo, mas fomos todos presos por uma numerosa equipe do Deic, que levou cerca de 60 pessoas detidas.

No interior do PT, recebi inúmeras admoestações por levantar o tema. O programa de TV que gravei defendendo a legalização da maconha e o fim do governo Sarney, sob a direção do Gabriel Priolli, não tenho certeza de que tenha ido ao ar. Houve reuniões oficias da direção para tentar me demover de levantar a bandeira da legalização da maconha.

Na mesma época, Fernando Gabeira polarizava as eleições no Rio de Janeiro exatamente por causa da imagem a ele associada de defensor da legalização e dos direitos homossexuais.

Em vários estados, houve algumas outras iniciativas eleitorais, mas nenhuma redundou na criação de um movimento social naquela época.

Ao longo dos anos de 1990, o tema da maconha se manteve como uma das grandes irresoluções da sociedade brasileira e, enquanto a Europa assistia a adoção de políticas de redução de danos em relação a drogas injetáveis e uma legalização e descriminalização cada vez maior da maconha, no Brasil o encarceramento cresceu na mesma medida em que cresceram os lucros do negócio clandestino.

Zonas produtoras no Nordeste e no Paraguai empregam camponeses pobres e superexplorados que plantam um produto de má qualidade para prensagem em massa, que é distribuído para o consumo de alguns milhões de usuários diários pelo país.

O início da celebração das marchas da maconha como grande momento de saída do armário, de expressão pública de orgulho identitário se deu numa onda mundial que no Brasil se manifestou nas areias das praias do Rio de Janeiro e no Masp, na Avenida Paulista, onde ocorreram algumas “passeatas verdes” no início da primeira década de 2000.

Em São Paulo, as marchas foram depois confinadas no Ibirapuera, proibidas até de mencionar a palavra maconha, o que levou uma das marchas a gritar pela “pamonha”, cercada de fileiras hostis de PMs.

Em 2011, entretanto, ocorreu a epifania política maconheira. O Stonewall2 do movimento maconheiro brasileiro!

Decidiu-se desafiar as intimidações e realizar a marcha no vão do Masp e sair em passeata. A polícia tentou proibir com enorme aparato de tropas de choque a realização da passeata, mas esta saiu correndo e foi perseguida ao longo de toda a extensão das avenidas Paulista e Consolação, com uso de bombas e tiros de borracha, eu mesmo tendo sido atingido por uma bomba na cabeça fiquei com meu boné ensanguentado.

A solidariedade com a manifestação reprimida levou a que o tema da maconha se tornasse uma questão política nacional. Em dezenas de cidades ocorreram “marchas da liberdade” para repudiar a violência da polícia e o STF foi obrigado a debater a questão e votar favoravelmente ao direito de manifestação pela mudança da legislação.

Finalmente, o movimento antiproibicionista e canábico conquistou um espaço, até mesmo institucional, de legitimidade, e isso de forma extremamente atrasada no país, diante de um panorama internacional de mudança do paradigma proibicionista e de advento de um florescente mercado multibilionário de maconha legalizada.

A questão que se mantém é a explicação da natureza tão estigmatizada das drogas ilícitas, especialmente da maconha no Brasil.

Os movimentos sociais que há cerca de dois séculos vem conquistando direitos para os trabalhadores como classe, para as mulheres como gênero oprimido, para os negros como grupo étnico que sofreu a escravidão e continua vítima do racismo e da desigualdade, para os homossexuais como orientações sexuais que enfrentam o preconceito, a intolerância e a discriminação, demoraram para incorporar os direitos dos usuários de drogas proibidas.

O âmbito das ingestões é um domínio de disputas entre as autonomias e as heteronomias. Estas últimas são dispositivos proscritivos, de coerção e de repressão proibicionista, mas também são dispositivos prescritivos e incitadores por meio de mecanismos publicitários ou de uma indústria psicofarmacêutica ciosa de ampliar a venda de seus produtos por meio de uma medicalização crescente da vida cotidiana com efeitos iatrogênicos. Essa indústria é dedicada ao disciplinamento farmacológico de condutas, inclusive infantis e gerou enormes modas de anti-depressivos, benzodiazepínicos ou moduladores de atenção.

A gestão livre dos recursos psicofarmacológicos é uma dimensão de autonomia na experiência humana em relação a como se conduzir diante da dor e do prazer da mesma natureza que o consumo de alimentos.

Necessidade de sobrevivência, esfera hedônica passível de compulsão, modelador de subjetividades, elemento central nas simbologias culturais, o uso de alimentos ou de remédios, alguns dos quais são sobrepostos, pois nutrem e embriagam, é uma das práticas humanas mais importantes. E, portanto, uma das economias mais indispensáveis e crescentes.

Uma militância que combata o complexo cultural proibicionista reafirma princípios iluministas de liberdade de si, situa-se num dos campos de atrito mais estritos com a intolerância fundamentalista religiosa, pois é só no repertório totalitário religioso que se pode encontrar uma teoria consistente de oposição ao direito de autonomia sobre si mesmo.

O princípio liberal afirma a autonomia sobre o próprio corpo, conforme Stuart Mill formulou claramente. O marxismo, reconhecendo as necessidades do espírito e do corpo, com Engels e Kautski se opôs aos puritanos que surgiram no interior do movimento operário defendendo a proibição do álcool, pois o consumo do álcool, especialmente a cerveja e o vinho, fez parte da formação da esfera pública operária ao longo da industrialização e da história do sindicalismo.

Da mesma maneira, a maconha foi um marco constitutivo em esferas públicas da resistência oprimida no Brasil, desde a diamba das senzalas, chegando ao pito de pango, proibido no Rio de Janeiro imperial.

Nos anos da ditadura, a cultura juvenil reconheceu nessa substância uma droga da paz, alternativa ao militarismo reinante, e fez da cultura hippie, com seu orientalismo vulgarizado, um veículo de contestação.

A esquerda de formação stalinista, além de elementos homofóbicos também foi “careta” em identificar o uso dessa planta a uma via escapista individual de “alienação”.

Atualmente, o maconheiro não só não é alienado politicamente como se tornou um sujeito ativo no protagonismo pela sua própria causa.

O movimento antiproibicionista também é parte de um debate mais amplo sobre a questão da “interseccionalidade” entre os movimentos sociais e as diversas formas de opressão.

O proibicionismo é, assim, fortemente racista, punindo a cultura de origem africana da maconha nos seus descendentes, encarcerados e mortos num viés não apenas social, mas de corte racista.

O antiproibicionismo também se articula com uma atitude feminista de emancipação cultural em esferas em que predominam homens, enquanto são vitimadas majoritariamente no encarceramento, pois já é de 60% das mulheres presas, as que são punidas por drogas.

O debate sobre as alternativas econômicas numa legalização internacional da maconha e demais drogas ilícitas traz à tona as alternativas gerais de modelos econômicos, privatistas ou de controle estatal. Mesmo o cigarro e o álcool já foram, em muitos países, monopólios estatais. A enorme economia da cannabis e o seu desenvolvimento em países centrais coloca a questão da dependência semi-colonial que pode nos obrigar, no futuro, a depender de sementes, insumos e técnicas com predomínio tecnológico de fora do país.

O tipo de regime de propriedade e a discussão da sua função social, das formas de auto-cultivo e de distribuição em mercados de massa, é uma das questões mais candentes e prementes, pois, infelizmente, ainda há pouco debate sobre isso no país.

Uma das tarefas de uma militância canábica é também formular projetos de produção e distribuição cujas rendas sejam direcionadas para pequenos produtores e para o interesse social, por meio da destinação tributária e de outros mecanismos.

Os que não vêm numa “mão invisível” do mercado a varinha mágica que irá equilibrar demandas e ofertas, custos e lucros, mas, ao contrário, sabem que o mercado é um domínio oligopolizado, conforme já acontece com o álcool (a maior empresa do Brasil) e com o tabaco, precisam formular propostas socialistas de gestão do mercado de maconha legalizado.


1 Julio Delmanto defendeu um mestrado em História Social na USP sobre esse tema: Camaradas Caretas, SP, Alameda, 2015.

2 Stonewall foi o conflito em Nova York, em 1969, em que homossexuais reagiram a uma repressão policial criando o movimento gay estadunidense.


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