As Jornadas de Junho e a luta dos trabalhadores

A relação entre Junho e a luta dos trabalhadores. Uma análise a partir dos dados sobre o número de greves no Brasil e os significados das Jornadas de Junho para a classe trabalhadora.

Bernardo Corrêa 26 jul 2016, 16:16

Instigado pela divulgação do Balanço das Greves em 2013 produzido pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), que registra o maior número de greves em 30 anos da história do Brasil no mesmo ano das manifestações que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho, este artigo tem como objetivo estabelecer uma conexão entre a emergência de novos movimentos sociais “indignadas/os” e o movimento das/os trabalhadoras/es.

Nossa hipótese geral, assenta-se na ideia de que a emergência de novos movimentos como as Jornadas de Junho (marcados por intensa participação das/os jovens, via-de-regra com empregos de caráter precário e pouca representatividade sindical) pode ser fonte de revitalização do movimento sindical e grevista dos trabalhadores. Algo que ainda está por realizar-se.

Neste 3º aniversário das Jornadas de Junho atravessamos uma conjuntura instável, marcada pelo encontro entre as crises econômica e política e caracterizada por manobras da elite buscando arrochar ainda mais os trabalhadores, tendo a frente o governo ilegítimo de Michel Temer. Já é tempo de debruçarmo-nos sobre as debilidades, as fortalezas, as continuidades e descontinuidades do movimento das/os “indignadas/os” brasileiras/os que emergiu em 2013 e, no seio de um balanço honesto, buscar intervir para fortalecer as potências mais progressivas que aquele levante trouxe à tona, com vistas a construir uma alternativa política anticapitalista fiel ao seu espírito em forma e conteúdo.

Antes de Junho

As revoltas populares combinam uma acúmulo quantitativo de contradições que isoladamente não podem explicar seu aspecto qualitativo. Ou seja, mesmo que a luta contra o aumento das tarifas de transporte tenha sido a gota d’água para o copo transbordar, o transborde vai muito além da gota. Se tomamos como ponto de partida a Revolta do Buzu em Salvador no ano de 2004, vemos que mobilizações em torno deste tema desenvolveram-se por dez anos até tornarem-se catalisadoras da indignação popular durante as Jornadas de Junho de 2013. Florianópolis, Pernambuco, Teresina, Natal, Goiânia, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre… enfim, foram inúmeros os protestos contra o aumento das passagens na primeira década dos anos 2000.

A explosão dos protestos da primeira metade do ano de 2013, que ficou conhecida como “Jornadas de Junho”, evidenciou processos subjacentes que vinham incrementando grandes protestos e conflitos. Afora os parâmetros dentro dos quais atuam uma série de choques e lutas de um país integrado ao capitalismo de forma dependente, com a marca da desigualdade social e todas as questões estruturais que decorrem de tal condição, já estavam em curso protestos salariais e uma situação mais conflituosa socialmente no ano de 2012.

Greves nos canteiros das obras do PAC, de grandes hidrelétricas, estádios, paralisações de servidores públicos, entre outras já indicavam um crescimento do movimento paredista envolvendo a precariedade e o desrespeito aos direitos (greves defensivas) e contra a deterioração das condições de vida (com alto índice de greves relacionadas ao aumento do Vale-alimentação) como detonadores de protestos. O levante popular e juvenil do ano seguinte não estancou este processo, pelo contrário, como demonstra o Balanço das greves em 2013, acelerou-o envolvendo mais setores.

Diversos fatores atuaram sobre a revolta. Não à toa, o transporte público tornou-se a reivindicação generalizada dos protestos e motivador de 59% dos que participaram, segundo a pesquisa realizada pelo Ibope1. Ele está diretamente relacionado à vida cotidiana das cidades e da crescente apropriação privada destes espaços. É uma contradição que impulsiona de forma marcante a reprodução capitalista do espaço e gera muitos conflitos em torno do que Harvey (2014) e outros têm chamado de luta pelo direito à cidade.

A política econômica do governo petista de incentivo ao consumo e ao endividamento das famílias, por meio de incentivos fiscais à indústria automobilística e da construção civil, gerou um “crescimento engarrafado” das grandes e médias cidades e tornou a situação ainda mais dramática na mobilidade urbana das principais cidades do país. Nos últimos quinze anos, o número de automóveis quase triplicou, e o de motocicletas cresceu cinco vezes. O sistema viário urbano não acompanhou este crescimento. Ainda assim, 46% dos domicílios brasileiros não possui veículo motorizado próprio, ou seja, são potenciais usuários do transporte coletivo para seus deslocamentos.

Nos anos seguintes a 2010 os efeitos perversos desta política se apresentariam. O incentivo à compra de carros individuais em detrimento do transporte coletivo público, a colaboração com as empreiteiras e sua lógica de gentrificação social e especulação do ponto de vista da moradia, corrupta do ponto de vista da relação com o Estado e, consequentemente caótica e antiecológica do ponto de vista do planejamento das obras, fizeram das cidades um ambiente insuportável. Trânsito cada vez mais estressante e violento para quem tem veículo individual; ônibus, metrôs e trens cada vez mais caros, lotados, em péssima qualidade e demorados e os governos investindo em… Estádios de futebol e hotéis de luxo para Copa! A panela de pressão estava definitivamente prestes a explodir. Mas qual era o pano de fundo?

Do ponto de vista macroeconômico, após registro de taxas negativas de crescimento em 2009, afetado pelos efeitos da crise econômica mundial de 2007-08 (em especial pela diminuição no preço das commodities), o Brasil havia se recuperado e chegado a um pico de crescimento do PIB no ano de 2010 (7,53%) e no intervalo de apenas dois anos a taxa de crescimento do PIB cai para 0,9%.

O início da retração econômica em 2012, favoreceu ao desenvolvimento de uma pressão inflacionária, concentrada em três setores importantes que afetavam especialmente a renda dos trabalhadores que compõem a base da pirâmide social brasileira: os alimentos e bebidas, os transportes e as despesas pessoais com educação.

De acordo com a Nota Técnica nº 122 do DIEESE de abril de 2013, intitulada “inflação e juros” e produzida para subsidiar a reunião do Conselho de Política Monetária (Copom) de 17/04/13:

“Ao observar os dados desagregados da inflação para janeiro, fevereiro e março, é possível notar forte contribuição dos grupos de alimentos e bebidas, transportes e despesas pessoais e educação. No acumulado dos últimos três meses, estes grupos somados respondem por uma taxa de 1,95%, (contribuição em relação ao total, ou variação relativa), ou seja, são responsáveis por uma taxa maior que a inflação desses três meses que, no conjunto, totalizou 1,94%” (DIEESE, 2013, p. 6).

Frente a este cenário, a decisão do Governo Federal juntamente com os Governos de SP e RJ, de adiar o aumento dos transportes nas grandes cidades, acabou por adiar o enfrentamento, favorecendo que os protestos contra os aumentos das passagens contassem com ampla participação dos estudantes trabalhadores, que já não encontravam-se em férias nos períodos de reajuste, como nos anos anteriores.

A ausência de crescimento econômico, combinou-se ao endividamento das famílias. Somente no intervalo entre 2010 a 2012 o endividamento das famílias como proporção da renda anual subiu de 44,4% para 51,3%, registrando-se pela primeira vez na história do país, o comprometimento de mais da metade da renda familiar com dívidas, sendo 32,2% destas com endividamento bancário, segundo dados do Banco Central (BACEN).

A composição do emprego também é significativa para compreender o perfil dos que foram às ruas do país em 2013. Entre 2006 e 2012, a taxa de rotatividade no mercado de trabalho no Brasil cresceu 29,5 e segundo Pochmann (2012):

“A década de 2000 apresentou uma alteração importante no padrão de trabalho da mão de obra brasileira, marcada por forte dinamismo nas ocupações geradas e no perfil remuneratório. Do total líquido de 21 milhões de postos de trabalho criados na primeira década do século XXI, 94,8% foram com rendimento mensal de até 1,5 salário mínimo mensal” (POCHMANN, 2012, p.27).

Agrega-se a este dado o aumento do emprego de até 12 meses (altamente rotativo), taxa que variou positivamente de 2009 a 2012, subindo de 14,7% para 16,7%, assim como a diminuição significativa do emprego com duração de mais de 60 meses variando negativamente de 41,8% a 36,4% no mesmo período.

Brasil: Tempo no trabalho – 2006 a 2012

Esta variação teve incidência direta sobre os trabalhadores mais jovens, majoritários nas Jornadas de Junho. O número de novas vagas de emprego na base da pirâmide social brasileira na primeira década dos anos 2000 concentrou-se na faixa de etária de 25 a 34 anos (mais de 4 milhões de vagas). Se somados aos trabalhadores de 14 a 24 anos, significaram mais de um quarto (25,7%) do total de 21 milhões de vagas criadas.

Também incidiu fortemente na revolta o aspecto político acerca da corrupção. Teve impacto notável o debate em torno do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Penal 470, sobre o episódio do “mensalão” e o desvelar dos esquemas das castas políticas – da velha esquerda e da velha direita – e as grandes empresas, bancos, etc. incrementados recentemente pelas revelações trazidas pela operação Lava Jato.

A promoção da Copa das Confederações e do Mundial no país, com vultosos investimentos públicos, tornou nítido que os recursos que faltavam nas áreas sociais estavam sendo investidos, por decisão política, na promoção de grandes eventos, sem necessariamente isto trazer benefícios duradouros à população, sob a óptica da ampliação de direitos.

Somam-se aos aspectos condicionais, a influência das revoluções ocorridas no Norte da África em 2011, em especial, na Tunísia e no Egito, assim como a irrupção do movimento dos “indignados” na Europa meridional, especialmente Grécia, Portugal e Espanha e o Occupy Wall Street nos EUA. Tais elementos seguem compondo um “mal-estar” coletivo frente à situação de crise pela qual passa a economia mundial e a perda da legitimidade da democracia representativa enquanto modo de regulação da vida política sob a dominação do capital.

Passamos, ainda, por uma revolução tecnológica e comunicacional que permitiu a socialização de discursos e repertórios de ação dos novos movimentos, configurando “redes de indignação e esperança” como sugere Castells (2012). São redes mediadas por ferramentas dinâmicas de comunicação como Facebook, Youtube, WhatsApp, Twitter… Os meios de socialização de informação, desta forma, se tornam menos verticais e passam a ser concentrados em diversos “nós” conectados e produtores de conteúdo e informação, inclusive por fora das corporações midiáticas, ainda que sob seu domínio e espionagem.

Esta circulação de notícias também propiciou uma capacidade convocatória inédita, que se deu por fora das estruturas clássicas de associação como os sindicatos, antigos movimentos sociais e partidos políticos assentados no pacto que garantiu a hegemonia do bloco no poder na primeira década dos anos 2000.

De acordo com Ruy Braga (2015), a hegemonia lulista consolidou-se por meio da combinação entre duas formas de consentimento popular:

“Por um lado, o consentimento ativo das direções dos movimentos sociais, tendo os sindicalistas à frente, que se acomodaram ao aparelho de Estado e aos fundos de pensão das empresas estatais. Por outro, o consentimento passivo das classes subalternas que, seduzidas pelas políticas públicas redistributivistas implementadas pelo governo federal, permaneciam ao lado do Partido dos Trabalhadores” (BRAGA, 2015).

Em um contexto de expansão do comércio internacional, o bloco no poder foi capaz de equilibrar o peso das coalizões, fazendo concessões, sem confrontar interesses essenciais. O esgotamento do ciclo de desenvolvimento econômico, que se transformou em esgotamento do ciclo político e recessão nos anos seguintes, teve seus primeiros indícios nas Jornadas de Junho de 2013.

Se, por sua parte, as direções buscaram manter seu consentimento ativo, a passividade do movimento de massas rompeu-se definitivamente, sem que com isso tenha encontrado um programa e os organismos de massas que pudessem converter a irrupção da indignação em plataforma política para a transformação, o que alastrou e aprofundou a crise, como podemos ver nos dias atuais.

As Jornadas de Junho foram uma revolta de classes médias?

Slavoj Žižek (2013), sinteticamente nos apresenta a conexão entre os distintos protestos das/os indignadas/os em diferentes países e realidades do mundo:

“É o fato de que nenhum deles pode ser reduzido a uma única questão, pois todos lidam com uma combinação específica de (pelo menos) duas questões: uma econômica, de maior ou menor radicalidade, e outra político-ideológica, que inclui demandas pela democracia até exigências para a superação da democracia multipartidária usual” (ŽIŽEK, 2013, p. 104).

Para além das similaridades que podemos encontrar nos movimentos que ocorreram na Europa Meridional, o sociólogo português Elísio Estanque (2014), em seu trabalho comparativo entre as “rebeliões de classe média” em Portugal pós-2011 e no Brasil em 2013, elucida as diferenças:

“Se a estabilidade e a previsibilidade do quotidiano são traços marcantes do habitus de “classe média”, a condição precária é exatamente a negação disso. Pode-se dizer que no caso brasileiro a “classe média” é um constructo (talvez mesmo uma miragem), enquanto no caso português é uma descida ao purgatório de quem julgava estar às portas do paraíso” (ESTANQUE, 2014, p. 76).

Enquanto na Europa meridional a classe média foi levada à revolta pelo esgotamento do Estado Social, no modelo liberal-periférico brasileiro, a classe trabalhadora, em especial seus segmentos jovens e recentemente mais escolarizados são herdeiros de uma condição que na Europa estariam muito próximas da linha da miséria.

De acordo com André Singer (2015), no Brasil:

“(…) as manifestações foram de jovens (até 25 anos) e jovens adultos (até 39 anos), que juntos representavam 80% dos presentes. À primeira vista, pareciam jovens de classe média, pois somando os diplomados aos que estavam cursando universidade, tinha-se um vasto contingente (quase 80%) das manifestações de São Paulo em 17 e 20 de junho, assim como a de Belo Horizonte no dia 22 (quase 70%), de manifestantes com acesso ao ensino superior” (SINGER, 2015, p.10).

Entretanto o trabalho de cruzamento realizado por ele entre as pesquisas do Datafolha em São Paulo, nas manifestações dos dias 17 e 20 de junho; a realizada na manifestação do Rio de Janeiro no dia 20 de junho pela Plus Marketing e a pesquisa nacional realizada pelo Ibope nas manifestações do dia 20 em oito capitais: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Fortaleza, Salvador e Brasília revela um cenário diferente.

Notamos que os que tinham até cinco salários mínimos familiares mensais (baixo rendimento no Brasil) eram a maioria dos manifestantes:

O acesso ao ensino superior no Brasil passou por uma reconfiguração na rede privada de ensino, após a implementação do Programa Universidade para Todos (PROUNI), e das cotas sociais e raciais no caso das Universidades Públicas. Muitas/os estudantes trabalhadoras/es passaram a compor o que antes era um espaço destinado apenas à chamada classe média (um conceito que frequentemente confunde as noções de classe social com categorias de rendimentos). Elas/es vislumbraram sua “emancipação” por meio dos estudos universitários, mas sua inserção educacional foi acompanhada da emergência de novas modalidades de trabalho precário e inseguro. Mesmo mais instruído, este segmento seguiu reproduzindo, também do ponto de vista laboral, as estruturas de desigualdade social que marca nosso país:

“Estas novas camadas sociolaborais, não sendo parte de uma classe média de fato, inserem-se numa trajetória em redefinição sob o efeito de um status “truncado” (dada a flagrante assimetria entre recursos educacionais e condição econômica) e marcados pela insegurança. Trata-se, portanto, de um segmento que se destaca da camada mais acomodada da classe média “tradicional” e é mais propenso à radicalização” (ESTANQUE, 2014, p.76).

É importante esta diferenciação, pois alguns dos que desonestamente se aventuraram a analisar os movimentos de 2013 no Brasil, ancorados nos velhos esquemas e interessados em defender o governo do PT, colocaram o sinal de igual entre a perda de direitos sociais da juventude europeia e brasileira, concluindo tratar-se de privilegiados de classe média que “queriam demais” e estavam sendo úteis a um golpe de Estado da direita e da mídia corporativa. Nem mesmo na Europa esta visão simplista se aplica.

De acordo com “Pesquisa de opinião pública sobre os manifestantes” realizada pelo Ibope, 76% dos manifestantes trabalhavam, mas apenas 14% eram filiados a algum sindicato, entidade de classe ou entidade estudantil e apenas 4% eram filiados a algum partido político. Em torno de 63% dos manifestantes tinham entre 14 a 29 anos e 46% participavam pela primeira vez manifestações públicas o que demonstra uma movimentação social que tem grande porosidade à entrada em cena de novos atores.

Os motivos pelos quais os entrevistados foram levados a participar das manifestações dividem-se entre questões econômicas e políticas: 59% compareceram contra o aumento das tarifas do transporte público, 32% por se posicionarem-se contra a corrupção, 31% por mais investimentos em saúde e educação. Apesar de 94% acreditarem que as manifestações iriam promover as mudanças que reivindicavam, 61% manifestarem muito interesse por política e 28% manifestarem interesse médio, apenas 11% se sentiam representados por algum partido político e 17% por algum político. Indícios de uma crise de representatividade que se aprofundaria.

É um indicador que revela a busca de novas formas de ativismo político e o descrédito nas formas tradicionais. Majoritariamente eram camadas trabalhadoras munidas de reivindicações que se distanciavam do programa privatista e corrupto da direita tradicional. Ao mesmo tempo a esquerda tradicional, após 10 anos de governo petista, já se fazia muito parecida à direita, era difícil distinguir os métodos, o programa e a fisionomia dos que antes eram vistos como esquerda. Uma nova esquerda se fez e se faz cada vez mais necessária.

Cooptados pela lógica da conciliação de classes no interior do Estado, tanto no que se refere às dimensões econômicas quanto às políticas, os sindicatos brasileiros encontravam-se distantes da realidade dos manifestantes de junho de 2013. De conjunto, nossa percepção indica que o movimento sindical de forma organizada não participou decisivamente nas Jornadas de Junho de 2013 e, ainda, sofreu rechaço em algumas das manifestações ao entrar com seu repertório tradicional de ação. A burocratização da ação sindical, a judicialização das demandas dos trabalhadores e o baixo nível de conflitos sociais acumulados desde a década de 1990 até o início dos anos 2000 favoreceram a um acomodamento sindical e sua adequação ao calendário das datas-base das negociações salariais, separando-se de sua dimensão sociopolítica de lutas mais gerais, assim como de suas respectivas bases.

Nos melhores casos, os sindicatos entraram como elementos de socialização dos meios de resistência, disponibilizando parte de sua estrutura ou assessoria jurídica nos casos de repressão policial. A revitalização da ação sindical e do movimento dos trabalhadores provavelmente passe pela reorientação de seu repertório e a busca de elos associativos dentre os setores que compõem a maioria da força de trabalho que opera no país, mas, precarizada, terceirizada e fragmentada não compõe a maioria dos sindicalizados e não se sente representada por eles.

Em uma das manifestações das Jornadas de Junho que participamos em Porto Alegre, encontramos uma dirigente sindical que comentou: “que linda está a manifestação da juventude… mas uma pergunta não quer calar, onde estão os sindicatos?”. Não estavam ali. Logo, este problema se apresentou levando todas as centrais sindicais a convocar uma greve geral no dia 11 de julho, depois do auge das manifestações, mas empurradas por elas. Como veremos a seguir, não somente o número de greves aumentou como também envolveram-se categorias menos frequentes no movimento paredista, ganhando peso a organização por local de trabalho.

As Jornadas de Junho e a explosão das greves em 2013

O ano das Jornadas de Junho também foi o ano que registrou o maior número de greves em 30 anos, superando inclusive os anos do ascenso do sindicalismo brasileiro do final dos anos 1970 e da década de 1980. De acordo com o Balanço das greves em 2013, produzido pelo DIEESE, com base nos dados do Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG), o ano de 2013 registrou 2.050 greves. Um crescimento de 134% em relação a 2012, quando foram registradas 877 greves.

No gráfico, é possível notar a dimensão do crescimento das greves no ano de 2013. Os registros superaram os do ano de 1989, maior da série, e marcado por grandes jornadas de lutas, greves gerais e pela interminável “transição gradual” da ditadura para o atual regime político.

Apesar do estudo do DIEESE estranhamente não atribuir relações causais entre as Jornadas de Junho e o aumento substantivo das greves, pensamos ser inexplicável este salto sem a explosão das manifestações. As greves de 2013 tiveram a participação de cerca de 2 milhões de grevistas, com média de 2.164 trabalhadores por greve e registraram 111.342 horas paradas, um crescimento de 28% em relação a 2012, (86.921 horas paradas). É o maior desde 1990, que registrou 117.027 horas paradas.

Conforme o Balanço das Greves 2013 a composição social, as reivindicações e a tática das greves foram heterogêneos. O funcionalismo público segue sendo o que realiza mais greves por categoria e de mais longa duração. Entretanto, as greves da esfera privada foram 54% do total; as da esfera pública significaram 46%.

De nossa parte, opinamos que a predominância do caráter defensivo das greves é indicativa de uma retomada de iniciativa por parte de um setor que vinha sofrendo com a perda de direitos e não via ambiente para que sua mobilização fosse vitoriosa e seu emprego garantido. Apesar do aumento da formalização do trabalho, as condições salariais e laborais seguiam péssimas. É uma análise da correlação de forças, feita por quem trabalha, que tem como parâmetro o local de trabalho. Ela foi objetiva, pois expressou a resistência à crise econômica que se avizinhava e era mais perceptível no local, com a retração de seus direitos, do que nas análises dos economistas burgueses.

De acordo com o DIEESE (2015):

“Em 2013, a proporção das greves que trouxeram reivindicações propositivas sofreu um recuo de 64% para 57% enquanto a proporção das greves que trouxeram reivindicações defensivas experimentou um incremento de 67% para 75% (…)”.

De um total de 2.050 greves no ano, 818 foram motivadas pelo descumprimento de direitos, 545 delas na esfera privada. Este é o motivador de 46% das greves defensivas na esfera privada. É um dado revelador das condições de luta. Revela também o quanto podem perder os trabalhadores, quando seus sindicatos e partidos são cooptados pelas “razões de Estado”. As seis greves de solidariedade (superando uma de 2012) demonstram a dispersão, mas o peso da organização por local de trabalho propõe o antídoto. Em uma onda de mobilização nacional, tais setores encontraram a correlação de forças necessária para entrar em ação.

O DIEESE (2015) identifica três aspectos essenciais a serem destacados no balanço da atividade grevista de 2013:

  1.  O grande crescimento do número de greves. Uma espécie de “desbordamento” do núcleo central de agitação para a periferia, expandindo-se as greves para categorias diversas daquelas tradicionalmente mobilizadas sem que as categorias já habituadas tenham deixado de paralisar.
  2.  Os itens defensivos passaram a fazer parte da pauta. Deflagração de greves entre categorias profissionais mais frágeis, tanto em salário como em direitos.
  3.  A importância do local de trabalho. O ano de 2013 foi marcado pelo aumento na participação de greves mais curtas e referenciadas nos locais de trabalho.

A relação que buscamos estabelecer aqui, parte do questionamento sobre as causas deste “desbordamento” apontado no ponto A. Em nossa hipótese, o ponto B indica os elementos conjunturais e condicionais analisados na primeira parte deste texto e o ponto C indica algo presente nas manifestações de Junho de 2013: a insuficiência da ação sindical institucionalizada até então e das formas clássicas de associação.

Os elementos mais marcantes de encontro entre as manifestações de rua e as greves de 2013 parecem ser: 1) a luta pela manutenção das condições de vida, e defesa dos direitos adquiridos; 2) a entrada em ação de setores sociais novos por fora, e por vezes contra, as instituições político-sindicais estabelecidas; 3) a organização molecular (cidade, movimento, local de trabalho), fragmentada e espontânea. Este conjunto segue latente e se reforça com o aprofundamento da crise econômica e política.

Entretanto, a simultaneidade das ações, que configuram um acontecimento histórico, não tem necessariamente um caráter de encontro, pensado como uma estratégia consciente. Provavelmente, inúmeros grevistas tenham visto o ambiente das Jornadas como mais favorável às suas reivindicações, especialmente pela fraqueza aparente do regime, mas não planejaram coletivamente esta estratégia. Esta é uma lacuna ainda por preencher-se, é um passo político radical.

A demora na divulgação dos dados sobre as greves não nos permite afirmar que trata-se de uma tendência de crescimento contínuo e nossa observação empírica, inclusive, aponta no sentido contrário para os anos seguintes a 2013. As Jornadas de Junho foram um momento explosivo dos protestos em todos os sentidos no país e influenciaram também o ambiente laboral, algo que não se repetiu nas recentes manifestações pró ou contra o impeachment de Dilma, por exemplo.

O que se pode afirmar com mais segurança é que um ambiente favorável aos protestos por mais direitos destravou a luta econômica de inúmeras categorias que, assim como os jovens que protagonizaram as manifestações de rua, não encontraram representatividade nas formas clássicas de associação, especialmente em seus sindicatos, bastante acomodados ao calendário dos dissídios, à negociação em detrimento do enfrentamento aos patrões, com baixas taxas de sindicalização e pouquíssima participação de suas bases nas decisões. Esta condição dificultou a possibilidade de um elo de continuidade entre o acontecimento de 2013 e as lutas que se impõem no presente contra o ajuste, o desemprego e a carestia. O encontro entre as lutas democráticas e a luta classista não pôde ainda realizar-se por completo, sendo este também uma latência entre as tantas que Junho despertou no país.

O trencadís2 das lutas democráticas e classistas

A ausência do movimento dos trabalhadores enquanto tal, na constituição dos novos protestos que emergiram mundialmente após a Primavera Árabe em 2011 também tem consequências do ponto de vista político e programático. Na Tunísia e no Egito tiveram importância central na primeira vitória das praças.

Os trabalhadores do Nilo, com sua greve geral, cravaram uma estaca no coração de Mubarak. A contrarrevolução poderia ter vencido pela força, não fosse esta greve. A restauração, em grande medida, se explica pela confusão política e a ausência de medidas que respondessem aos problemas de classe por parte da Irmandade Muçulmana no governo. De forma mais contraditória, o movimento sindical na Tunísia, ao mesmo tempo que foi fundamental para manter a vitória da Revolução de Jasmim, teve uma parcela cooptada pela conciliação de classes no interior do Estado.

Ao chegar ao Oriente Próximo, a onda dos Indignados não encontrou dinamismo no movimento sindical, em grande parte por sua cooptação e acomodação aos mecanismos da democracia burguesa, ao corporativismo e burocratismo na ação sindical. Teve com isso um aspecto mais espontâneo e sem representação política especialmente em seu primeiro momento.

Porém, como ensina o marxismo, a questão de classe, ou a luta de classes mais precisamente, define as tarefas às quais os movimentos se alçam e se desenvolvem. Os limites e as potências do espontaneísmo não definem a priori quais são estas tarefas. Pelo contrário, definem “seu caminho ao caminhar”. O movimento então constitui-se essencialmente de uma convergência mobilizada entre inúmeras denúncias e protestos sobre os mais diversos efeitos do capitalismo contemporâneo. Entretanto, como demonstra a experiência histórica, a chave bernsteiniana “o movimento é tudo” quando convertida em lógica política, privilegia sempre os curtos tempos da tática, unidades de medida do movimento, em detrimento da estratégia de longo prazo que é medida por elementos tanto mais abstratos quanto mais concretos, tais como: correlação de forças, crise econômica e social, situação mundial, consciência e organização.

A lógica da acumulação insaciável do capitalismo levou a humanidade a taxas de concentração de riquezas inéditas na história. Um estudo da ONG britânica Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse relativos a outubro de 2015 revela que a riqueza acumulada pelo 1% mais rico da população mundial equivale, pela primeira vez, à riqueza dos 99% restantes. Diz, ainda, que as 62 pessoas mais ricas do mundo têm a mesma riqueza que toda a metade mais pobre da população global. Para modificar isso é preciso enfrentar a lógica de reprodução do próprio sistema.

O combate às causas sistêmicas, quando convertido em programa de luta pelo poder, não tem como passar por fora das questões de classe já que da extração do trabalho de muitos, provém a renda e o lucro de poucos. O risco é que, ao não estabelecer tais conexões entre o particular e o geral, o tático se torne estratégico e o programa, ainda que responda a questões imediatas taticamente bem, seja capturado pela lógica do capital.

Entretanto, seria extremamente equivocado negar ou diluir numa perspectiva estritamente classista o peso das lutas democráticas que se desenvolvem no presente. Tal abordagem seria conservadora e não levaria em conta que o desenvolvimento da luta de classes é desigual e combinado. O déficit da atividade sindical combativa não pode ser uma retomada do passado, mas sim uma síntese de novos agentes e seus novos métodos de luta com antigos combatentes e velhas bandeiras que infelizmente, apesar de desbotadas seguem atuais. Terão de encontrar seus propósitos comuns no calor das lutas do nosso tempo.

A forma como se apresentam as lutas democráticas e classistas pós-neoliberalismo, lembram os cacos de cerâmica disformes e irregulares utilizados na técnica do modernismo catalão de Antoni Gaudí e Josep Maria Jujol, os trencadís (ou trencat, em catalão). Talvez estes belos mosaicos, feitos a partir da unidade do diverso, nos ofereçam uma imagem aproximada do que precisa ser uma estratégia socialista o século XXI, mas como disse certa vez o próprio Gaudí acerca de sua técnica: “A puñados se tienen que poner, si no, no acabaremos nunca”.

Referências Bibliográficas:


1 A pesquisa foi realizada entre 17 e 20 de junho de 2013, momento em que se registraram as maiores manifestações de rua. Foram entrevistadas 2002 pessoas, distribuídas da seguinte forma: SP 483entrevistas, RJ 301 entrevistas, BH, POA, Recife, Salvador e DF 203 entrevistas.

2 O trencadís é um tipo de mosaico cerâmico artístico feito com de azulejos quebrados, ordenados de forma que pareçam um quebra-cabeças. A utilização de superfícies com trencadís teve grande protagonismo durante o modernismo catalão, sobretudo na obra de Antoni Gaudí.


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Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi