8 de março, revolução russa e o protagonismo das mulheres

As origens do 8 de março e das relações entre o movimento de mulheres e a luta socialista na história.

Giovanna Marcelino 26 mar 2017, 14:03

Em 2017, estamos comemorando exatamente cem anos da história de dois eventos que foram fundamentais para o movimento de trabalhadores no mundo: a criação do Dia Internacional de Luta das Mulheres e a Revolução Russa.

Celebrar, no mesmo ano, o centenário das duas datas não é mera coincidência. O presente texto visa apresentar justamente o nexo que elas guardam e por que é tão importante relembrá-lo na atual conjuntura econômica e política em que vivemos.

8 de março de 1917: um prenúncio da revolução

Uma das versões mais difundidas sobre a história do 8 de março relata que a data surgiu quando cerca de 130 trabalhadoras morreram carbonizadas, após um trágico incêndio em uma fábrica de camisas em Nova York, em 1911. Tal incêndio teria sido causado intencionalmente pelo proprietário da fábrica como forma de retaliação à greve organizada pelas mulheres naquele dia, que protestavam contra à exploração e às condições insalubres de trabalho.

Embora esse episódio ter de fato acontecido, tornando-se um marco para as lutas operárias e femininas da época, a escolha de uma data específica para a comemoração da luta das mulheres internacionalmente na verdade está fortemente relacionada a outro processo, fomentado pela organização das mulheres trabalhadoras na Rússia.

Como mostram diversos registros, o 8 de março foi concebido pela primeira vez em 1910, durante o II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, que reuniu mulheres de mais de 17 países com o objetivo de canalizar internacionalmente os esforços da luta pela obtenção do direito feminino ao voto. Nesse momento, o “Dia da Mulher” foi idealizado nos seguintes termos:

(…) De acordo com as organizações políticas e sindicais com consciência de classe do proletariado de seus respectivos países, as mulheres socialistas de todas as nacionalidades têm de organizar um Dia da Mulher (Frauentag) especial, no qual, antes de tudo, há de se promover a propaganda do sufrágio feminino. Essa reivindicação deve ser discutida em relação com toda a questão da mulher, segundo a concepção socialista. O Dia da Mulher deve ter um caráter internacional, e ser cuidadosamente preparado.

Mas a data consagrou-se definitivamente a partir de uma grande mobilização ocorrida na Rússia no dia 23 de fevereiro de 1917 (no calendário juliano, 8 de março no calendário gregoriano), momento em que o país passava por um período econômico e político crítico, derivado da miséria, da falta de abastecimento e do sentimento de revolta com as mortes geradas pela guerra iniciada em 1914.

O grau de insatisfação da massa camponesa e operária russa com essa situação era latente, o que logo culminou num processo explosivo de revolta popular. O resultado foi uma mobilização geral – que resultou na chamada Revolução de Fevereiro – cujas reivindicações iniciais eram a saída da guerra, por mais terras aos camponeses e o fim da fome.

E o fato é que tal processo foi desencadeado por uma greve geral de mulheres. Ela foi iniciada por uma manifestação espontânea, em que mulheres operárias do setor têxtil abandonaram seus postos de trabalho nas fábricas e tomaram às ruas de Petrogrado. Aproximadamente 90 mil trabalhadoras manifestaram-se contra o czarismo e a participação russa na 1ª Guerra Mundial, com cartazes que pediam “igualdade, pão, paz e terra”. Tal manifestação foi logo apoiada pelos operários, que se somaram em solidariedade, culminando no dia seguinte em outra grande mobilização geral na capital da Rússia, com as palavras de ordem “Chega de autocracia!”, “Chega de guerra!”. Ali, nascia uma revolução.

Em História da Revolução Russa, Trotsky relata como as mulheres foram vanguarda dessa revolução:

(…) O 23 de fevereiro era o Dia Internacional da Mulher. Os elementos social-democratas se propunham a festeja-lo na forma tradicional: com assembleias, discursos, manifestos, etc. Não passou pela cabeça de ninguém que o Dia da Mulher pudesse se converter no primeiro dia da revolução. Nenhuma organização fez um chamamento à greve para esse dia. A mais combativa organização bolchevique, o Comitê do setor operário de Víborg, aconselhou que não se fosse à greve. (…) Tal era a posição do Comitê, ao que parece unanimente aceita, às vésperas do 23 de fevereiro. No dia seguinte, omitindo suas instruções, declararam-se em greve as operárias de algumas fábricas têxtis e enviaram delegadas aos metalúrgicos, pedindo-lhes que acompanhassem o movimento. (…) É evidente, portanto, que a Revolução de Fevereiro começou de baixo, vencendo a resistência das próprias organizações revolucionárias; com a particularidade de que essa iniciativa espontânea seguiu a cargo da parte mais oprimida e coibida do proletariado: as operárias do ramo têxtil, entre as quais há de se supor que houvesse não poucas mulheres casadas com soldados.

O resultado imediato da iniciativa política das operárias russas em Petrogrado foi a queda da autocracia czarista e a derrubada da dinastia dos Romanov, que governava a Rússia desde 1613. E isso foi só o começo. Tal mobilização espontânea e explosiva das massas foi aos poucos se referenciando nos ideais bolcheviques. As palavras de ordem contra a fome e a guerra se transformaram no desejo de auto-organização do povo, que culminou no ressurgimento dos soviets, criados na experiência política de 1905. Assim, novas aspirações populares surgiram – aumentos salariais, melhores condições de trabalho, controle operário da produção, eleições constituintes, etc. – convergindo-se com a radicalização das lutas – greves operárias, boicotes patronais, ocupações de terra, etc. –, que levaram à tomada de poder em outubro do mesmo ano.

De subalternas a revolucionárias

O protagonismo das operárias na Revolução de Fevereiro na Rússia, além de decisivo para os rumos da história naquele país, transformou o sentido do papel político e social das mulheres no mundo todo.

Isso se explica pelo próprio contexto de profundas mudanças sociais e econômicas pelas quais passavam as sociedades modernas naquele momento com a industrialização. Assim, um dos fatores determinantes para a revolta e organização das mulheres em movimentos políticos, que culminou inclusive no surgimento de um período intenso de atividades feministas em todo mundo 1, tem origem na própria incorporação das mulheres no mundo do trabalho como mão-de-obra barata.

Na Rússia, entre 1914 e 1917, milhares de mulheres se tornaram trabalhadoras da indústria. A esmagadora maioria vivia uma vida miserável, enfrentando péssimas condições de trabalho nas fábricas, a fome, o analfabetismo, uma situação que se agravava pelo fato de não possuírem praticamente nenhum direito civil e político garantido pelo Estado. Concentradas nos setores têxtil e de alimentos, em ofícios menos valorizados e qualificados, constituíam um dos setores mais explorados da classe trabalhadora, com jornadas de trabalho exaustivas, dentro e fora da fábrica, já que a entrada no mundo do trabalho não as eximiu das responsabilidades domésticas e da maternidade no âmbito privado da família.

Assim, a pressão sofrida dentro do ambiente de trabalho e do lar, combinada à exclusão da vida política, foi um fator decisivo para a organização do movimento de mulheres. Mas isso em si não era algo fácil, devido ao alto nível de vulnerabilidade, bem como de estigmatização produzido pela sociedade. Por isso, não se pode deixar de destacar a contribuição do feminismo socialista para o encorajamento da militância de mulheres.

No bojo desse período efervescente das lutas operárias, a estratégia de organizar mulheres trabalhadoras foi logo compreendida pelas socialistas como algo essencial. “Apenas junto com as mulheres proletárias o socialismo será vitorioso”, propagava Clara Zetkin. Assim, a necessidade de promover uma agitação e propaganda direcionada para as especificidades das mulheres russas foi umas das primeiras conclusões tiradas na época. Desse processo, nasceram a revista das operárias alemãs Die Gleichheit (A igualdade), editada por Zetkin, que atingiu uma tiragem de 124 mil exemplares em 1914, e a revista russa Rabôtnitsa (Trabalhadora), cujo primeiro volume foi publicado no Dia Internacional da Mulher de 1914, e que abarcava em seu conselho editorial Inês Armand, Alexandra Kolontai e Nadêjda Krupskaya (companheira de Lenin). Ambas as revistas tinham o intuito de avançar na conscientização das mulheres trabalhadoras desprovidas de educação formal e foram fundamentais para dar voz e fortalecer as demandas feministas no interior do movimento operário.

Assim, a formação de dirigentes mulheres – em que podemos destacar importantes nomes, às vezes pouco citados na história da Revolução Russa, como Kolontai, Krupskaya, Armand, Yelena Stassova, Klavdia Nikolayeva, Konkordia Samoilov, Varvara Yakovleva, Vera Slutskaya, Yevgenia Bosh, Anna Yelizarova, Maria Ulyanova, Maria Bochkareva – tornou-se uma realidade e foi imprescindível para o desenvolvimento do processo revolucionário. Além disso, as mulheres socialistas contribuíram fortemente para o desenvolvimento, atualização e ampliação do marxismo, travando debates que culminaram na conquista de uma série de direitos fundamentais, que países capitalistas avançados demoraram décadas para conquistar. Entre eles, podemos destacar: a igualdade de direitos civis e políticos, a substituição do casamento religioso pelo casamento civil, o direito ao divórcio, o direito ao voto e o direito ao aborto, alcançado em novembro de 1920 – e que fez da Rússia o primeiro Estado do mundo a permitir a interrupção da gravidez como uma questão de saúde pública. Todos esses direitos foram forjados através de uma legislação de transição, outorgado às mulheres após a Revolução de Outubro. Além disso, as socialistas protagonizaram debates bastante avançados sobre libertação sexual e relacionamentos livres, que guiam debates sobre o tema até hoje.

Ainda assim, seguindo os estudos de Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1844) 2, as mulheres russas sabiam que seus direitos somente seriam plenamente conquistados quando o trabalho doméstico realizado pela mulher também fosse socializado. Tal compreensão gerou formulações políticas sobre meios de acabar com a opressão à mulher pela raiz – entre eles, garantir a igualdade de gênero socializando o trabalho de alimentação, limpeza, criação e educação dos filhos, etc., por meio de serviços públicos garantidos pelo Estado (escolas, refeitórios, lavanderias, creches públicas, etc.). Isso fez com que a experiência soviética servisse de base para importantes avanços e acúmulos políticos, reivindicados até hoje.

Nessa lógica, a conquista de direitos políticos e civis era visto como um primeiro passo importante para se revolucionar o papel da mulher, sendo a emancipação da mulher, por sua vez, fundamental para a construção efetiva de uma sociedade justa e igualitária. Entretanto, o processo de burocratização do Estado soviético durante o período do stalinismo infelizmente impediu que as mulheres avançassem nesse sentido. O governo de Stalin imprimiu retrocessos profundos às conquistas alcançadas no período anterior. Em 1936, anunciou um novo Código da Família, que previa a proibição do aborto, bem como o desencorajamento ao divórcio.

Isso fez com que se revelasse com mais força o que Kollontai definiu como a “tarefa infinda” de libertação das mulheres. O que ficou de fato comprovado é que a criação de uma “mulher nova” só é forjada por meio de sua libertação plena, que se dá junto com a da classe trabalhadora como um todo. Essa tarefa infinda, que se tornou inacabada após o período stalinista, está posta ainda hoje. Por isso, continuamos a levantar nossas bandeiras, junto a luta de transformação radical da sociedade capitalista.

Em 2017, as mulheres estão na vanguarda

Como assistimos nas últimas décadas, o sistema capitalista tentou sistematicamente, por meio da mídia e seus aparelhos ideológicos, subverter o significado do 8 de março, tornando essa data em mais um dia de compras e entrega de flores e presentes. Mas essa situação tem mudado nos últimos anos. Após a eclosão da “Primavera Feminista” em diversos países, as mulheres têm se demonstrado cada vez mais dispostas a resgatar o real significado desse dia histórico. E o 8 de março desse ano revela isso à tona.

Após o grande levante de luta contra a violência à mulher que tomou a América Latina sob a consigna do “Nem Uma a Menos”, e dando sequência à vitoriosa Marcha de Mulheres à Washington nos Estados Unidos contra Donald Trump, o Dia Internacional de Luta das Mulheres de 2017 novamente reunirá centenas de milhares de mulheres no mundo inteiro, configurando uma verdadeira mobilização internacional de luta por mais direitos. E o sentido universal que tem unificado as marchas e greves que acontecerão em todo o mundo é a luta contra os governos neoliberais, machistas, racistas e xenófobos que retiram os direitos do povo – de Trump a Temer no Brasil.

Assim, além de colocar em outro patamar a luta feminista após décadas – reconectando a luta histórica contra o machismo com a perspectiva antissistêmica –, tudo indica que o 8 de março desse ano também será fundamental do ponto de vista do fortalecimento de alternativas políticas de esquerda frente à complexa situação mundial em que vivemos, tomada por uma profunda crise econômica, social e política.

Em 2017, as mulheres serão um dos primeiros setores sociais organizados a resistir contra os planos de corte e ajuste aplicados pelos governos. O êxito desse processo pode contagiar e servir de exemplo para a luta anticapitalista e anti-imperialista em escala internacional. Há cem anos atrás, o 8 de março de 1917 inaugurou um novo momento histórico no mundo. Hoje, vale nos questionarmos sobre as semelhanças entre a explosão da revolta das operárias russas na Revolução de Fevereiro e as características do movimento de mulheres atual – do grau de espontaneidade aos nexos que guardam com uma situação econômica e política insustentável para a população. Um século depois, seriam as mulheres novamente o estopim para uma nova virada histórica?


1 Período que foi denominado posteriormente como a “Primeira Onda do Feminismo”, iniciada no final do século XIX, marcada por um conjunto de lutas que reivindicavam direitos iguais de cidadania (direito à educação, propriedades e posses de bens, divórcio), e cujo ápice foi a luta sufragista pelo direito ao voto feminino.
2 A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1844) de Engels é considerado um livro que exerceu influência no embasamento teórico do feminismo marxista, sobretudo na tentativa de compreender as origens da opressão da mulher sob a ótica do desenvolvimento dos modos de produção. Segundo ele, a organização familiar capitalista colocou a mulher em situação de subordinação em relação ao homem por meio do trabalho doméstico. Por isso, somente o socialismo poderia criar as condições plenas para tal libertação, ao apostar numa organização familiar que correspondesse ao papel das mulheres, tornando o cuidado da casa, o cuidado e a educação das crianças em assuntos de ordem pública.


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Pedro Micussi