“No centenário da Revolução Russa, ainda podemos aprender muito com ela”

A crise que agora é mais grave e profunda não só reafirma a importância da revolução socialista, mas também a atualiza em todo o sentido que este termo possui.

Charles Rosa, Pedro Fuentes e Thiago Aguiar 26 mar 2017, 22:15

Iniciando os debates e celebrações do centenário da Revolução Russa em 2017, a revista Movimento entrevista Pedro Fuentes. Militante internacionalista há mais de 50 anos, Pedro passou por diversos países do mundo para construir partidos revolucionários nacionais e organizações socialistas internacionais, sempre reivindicando o legado de Outubro. Enquanto responde às perguntas, Pedro folheia seus livros para ilustrar suas afirmações com o que diziam os revolucionários russos cheio de seu otimismo característico e entusiasmo com a juventude.

Na conversa apresentada a seguir, Pedro retoma alguns dos temas fundamentais da Revolução e do papel dos bolcheviques, interessado em chamar as novas gerações militantes a aprender com aquela experiência. Para ele, “não existe tarefa mais apaixonante para as novas gerações que se aproximam da luta anticapitalista, impulsionadas pela brutal crise do capitalismo, do que ler e estudar sobre a Revolução Russa. Não existe melhor fonte de conhecimento do que a luta pelo socialismo e suas dificuldades: e esse conhecimento não é só para saber sua história (e é necessário sabê-la), mas aprofundar a compreensão sobre as condições que a tornaram possível, as forças motrizes da mesma, seus problemas posteriores, e sua atualidade que vive neste século XXI”.

Movimento – Em 2017 comemora-se o centenário da Revolução Russa. Muitos debates, artigos e reflexões têm sido realizados a respeito, não apenas pelos círculos de esquerda e socialistas, mas pela academia e pela imprensa burguesa, mostrando a transcendência deste evento. Mas, afinal, por que após tanto tempo ainda se fala da Revolução Russa? Como se pode definir uma revolução?

Bem, eles também falam da Revolução, mas a tomam como um evento importante que ocorreu e passou. Fazem isso (consciente ou inconscientemente) para negar o processo histórico e com isso sua atualidade. Explico: a Revolução Russa é consequência da crise do capitalismo – crise estrutural, podemos dizer assim – iniciada no século XX, crise que agora é mais grave e profunda, que não só reafirma a importância da revolução socialista, mas que também a atualiza em todo o sentido que este termo possui. Atrevo-me a dizer que para as novas camadas de jovens anticapitalistas que surgem no mundo, ao lado do Manifesto Comunista, ela é a fonte de aprendizagem mais importante para a compreensão da história do Século XX e a atualidade da luta pelo socialismo.

Essa é a razão pela qual é tão importante conhecer como aconteceu a Revolução. Porque embora a história não se repita, sustenta-se nela e aprende-se dela para encarar o presente e o futuro. Vivemos nos últimos tempos revoluções na Primavera Árabe, mas elas foram democráticas ou, melhor dizendo, foram democráticas incompletas (não liquidaram todo o regime, em especial as Forças Armadas) e, por isso, retrocederam. No entanto, a ideia de revolução foi colocada, no sentido de mostrar o que as massas podem fazer quando passam para a ação direta, sobretudo no caso da Tunísia, onde o povo destruiu as sedes do partido do regime e assaltou as delegacias. Como dizia Trotsky fazendo referência à Revolução Russa, “a história não registra outra mudança de cunho tão radical”. E, sendo taxativo, afirmo que esta mudança radical de 1917 tem repercussões até nossos dias. Não seria possível entender nada do que passou no século XX e nestas duas décadas do XXI sem ela. Se me perguntar concretamente “o que é uma revolução?”, respondo com aquilo que Trotsky escreveu em sua “História da Revolução Russa”:

“O traço mais incontestável da Revolução é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. Habitualmente, o Estado, monárquico ou democrático, domina a nação; a história é feita pelos especialistas do ofício: monarcas, ministros, burocratas, deputados, jornalistas. Mas, nos momentos decisivos, quando um velho regime se torna intolerável para as massas, estas quebram as muralhas que os separam da arena política, derrubam os seus representantes tradicionais, e, intervindo assim, criam o ponto de partida para um novo regime. (…) A história da Revolução é para nós, antes de mais nada, a narração de uma irrupção violenta das massas no domínio onde se regulam os seus próprios destinos.”

M – No fim do século XIX e no princípio do século XX, a maioria dos marxistas esperava que as revoluções socialistas seriam iniciadas nos então países capitalistas avançados, como Inglaterra, França e Alemanha. No entanto, a primeira revolução socialista vitoriosa ocorreu na Rússia. Por que neste país?

É verdade que essa era o prognóstico de Marx e era correto para o período em que foi escrito. Nos países europeus onde o capitalismo havia desenvolvido a mais potente classe operária, era onde estavam as melhores condições para uma revolução operária. Era o lugar privilegiado para o desenvolvimento da consciência socialista e a revolução. O primeiro de fato ocorreu: grande desenvolvimento da consciência socialista e, graças a isto, os partidos socialistas de massas, cujo maior expoente era a social-democracia alemã, desenvolveram-se. No entanto, a parte mais importante do prognóstico, a revolução operária não se deu dessa maneira graças ao fato de que o capitalismo conseguiu um desenvolvimento maior das forças produtivas, que lhe permitiu fazer concessões para a classe operária, sobretudo na etapa imperialista.

De todas as maneiras, temos de recordar que Marx estava longe de ser um determinista, era um dialético e, não por acaso, num prólogo do Manifesto Comunista de 1872 e outros escritos, deu atenção à propriedade camponesa da terra na Rússia. Inclusive numa carta a Vera Zasulich levantou a hipótese de que a “revolução russa poderia se converter num sinal para uma revolução proletária no ocidente e a propriedade comunal da terra como um ponto de partida da propriedade comunista”.

M – Quais foram os elementos que se reuniram na Rússia para que a primeira revolução operária ocorresse nesse país?

Yendo al grano [“indo ao grão”], como dizem os argentinos, na Rússia conjugou-se uma série de elementos ou características, aspectos, objetivos e subjetivos (alguns explicam os outros e vice-versa) que, na minha opinião, explicam que nesse país tenha se adiantado a primeira revolução socialista (que não é o mesmo que dizer que o socialismo foi alcançado). Para mim, é necessário destacar quatro aspectos que se combinam:

O primeiro é o desenvolvimento desigual e combinado da Rússia. Isso quer dizer que o desenvolvimento capitalista não é linear em todo o mundo. Alcançado o mesmo em países-chave, os outros dão saltos e combinam formações econômico-sociais. Esta é a base da lei do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky. Assim, na Rússia, coexistiam de um lado a autocracia, a nobreza, os latifundiários e uma frágil burguesia com suas contradições entre elas. E, do outro lado, a nova classe operária concentrada em grandes fábricas, vinda do campo, sem ter passado por nenhum período reformista, ávida por aprender, não assimilada à ordem instituída da autocracia. Se bem me lembro, há uma estatística que mostra que nos EUA as fábricas com mais de mil operários eram 17% do total. Na Rússia, onde os operários eram muito mais minoritários, eram apenas 4% da população e 48% deles estava em fábricas com mais de 1000 trabalhadores. Somente Putilov, em São Petersburgo, tinha 20000! Soma-se a isso um campesinato pobre que não podia levar adiante a questão agrária, a propriedade da terra, se não fosse por meio de uma revolução. E, por último, as nacionalidades oprimidas pelo imperialismo pan-russo que também necessitavam uma revolução para se liberar. Esta situação explica o “adiantamento russo” à revolução europeia com a revolução de 1905, uma revolução contra a autocracia czarista encabeçada pelos trabalhadores que logrou ser controlada por um velho regime através de concessões. Foi como disse Lenin, “o ensaio geral” do que seria 1917.

O segundo elemento é a situação revolucionária europeia aberta na primeira guerra mundial. Desde 1905, a Rússia começou a ser “o elo mais frágil da cadeia imperialista”, como afirmou Lênin. E este elo rompeu-se quando, dez anos mais tarde, a primeira guerra mundial abriu uma situação revolucionária na Europa. Em 1915, Lênin definiu esta situação para a Europa que detonou a Rússia, o elo mais frágil. E logo se estendeu para a Alemanha, Polônia, Hungria, Itália, Áustria… Esta, na minha compreensão, é a diferença mais importante entre 1905 e 1917, a situação revolucionária no continente.

A terceira característica foram os sovietes, que surgiram em 1905 e se repetiram multiplicados em 1917. O que foram os sovietes? Organismos com delegados eleitos pela base em assembleias e com mandato destas. Imagine uma assembleia e um conselho de delegados de Putilov, que tinha 20000 operários, maior que as assembleias de professores de São Paulo que nós conhecemos e são manobradas de cima do caminhão de som! Os sovietes foram os organismos que permitiram auto-organizar e unir os protagonistas da revolução: os sovietes de operários com os sovietes de camponeses pobres e os sovietes de soldados. Os sovietes criaram um duplo poder. Por exemplo, o governo municipal de Moscou dizia que era preciso recolher o lixo nas altas horas da madrugada e os sovietes diziam que tinha de ser às 21 horas. Quem mandava? Eu fazia essa comparação quando os secundaristas ocuparam as escolas no Brasil. Quem mandava? Porém, uma coisa é uma escola e outra uma cidade, uma região em meio a uma situação revolucionária. E os sovietes que surgiram na revolução de fevereiro não eram dominados pelos bolcheviques, mas pelos mencheviques e os populistas.

O quarto elemento é o partido bolchevique e Lênin, que foi seu mais importante dirigente. Trotsky disse que as “lições da história nos permitem dizer com certeza de que se não houvesse o Partido Bolchevique, a colossal energia revolucionária das massas teria se desperdiçado em explosões esporádicas e que o desfecho das grandes comoções teria sido a mais severa ditadura contrarrevolucionária”. A luta de classes é o grande motor da história. Necessita um programa justo, um partido firme, uma direção valente e digna de confiança, não de heróis de salão e do conciliábulo parlamentar, mas revolucionários dispostos a chegar até o fim. Essa é a grande lição da Revolução de Outubro.

O Partido Bolchevique construiu-se em longos anos e diferentes etapas da luta de classes desde a fundação do POSDR em 1898. À diferença dos outros partidos social-democratas europeus, formou-se sob uma duríssima ditadura, viveu a revolução de 1905. Forjou-se em numerosas experiências e polêmicas, com seus dirigentes formados sob a ditadura, passando pelos cárceres vivendo experiências internacionais graças ao exílio. Vinte anos de experiências que não viveu nenhum outro partido socialista revolucionário até nossos dias. Partido que utilizou numerosas táticas, diferentes métodos de luta e formas de organização em todos esses anos.

M – Os críticos da Revolução de Outubro afirmam que, na Rússia, em vez de um governo democrático dos sovietes, criou-se uma ditadura sobre o proletariado conduzida pelo Partido Bolchevique e que os acontecimentos posteriores, em particular a ditadura de Stálin, seriam uma consequência do tipo de regime instaurado pela Revolução. Você concorda?

Não, e a realidade desses oito meses entre fevereiro e outubro, bem como nos anos posteriores, não deixa nenhuma sombra de dúvida de que o regime dos sovietes foi o mais democrático de toda a história. A verdade é que em fevereiro os bolcheviques eram uma minoria que não chegava aos 4% nos sovietes e os mencheviques e socialistas revolucionários eram 96% restante ou talvez em proporção ainda maior. Estes dois partidos sustentaram o governo provisório formado com os representantes da burguesia que, em meio à crise total da Rússia, continuou a política da guerra, enquanto o povo havia se levantado pela paz, pelo pão e pela terra. Os bolcheviques foram crescendo durante esses oito meses nos sovietes, apesar da intensa calúnia e da perseguição que em muitos momentos sofreram, levantando essas bandeiras e o poder aos sovietes.

Nesse processo, foram decisivos os soldados. Inclusive Lênin propôs o compromisso com os socialistas-revolucionários e os mencheviques de um caminho pacífico que consistia em respeitar as decisões dos sovietes, apostando em ganhar a maioria. Evidentemente, não foi aceito e, pelo contrário, Kerensky começou uma forte ofensiva de repressão contra os bolcheviques em julho, da qual estes se defenderam politicamente. Depois, colocou Kornilov como ministro da Defesa, que, em setembro, leva adiante o levante militar contrarrevolucionário que é derrotado pelos sovietes de soldados e dos bolcheviques que dominam a maioria dos quartéis, enquanto o governo de Alexander Kerensky fica imobilizado. Isso pavimentou o caminho para que os bolcheviques conquistassem a maioria dos sovietes e tomassem o poder.

Nahuel Moreno dizia que foi a insurreição com menos derramamento de sangue que teve de fazer o movimento de massas em toda a história. E que foi possível graças à organização poderosa, majoritária e granítica que foram os sovietes e a direção acertada de Lênin acompanhado por Trotsky (que dirigia o Comitê Militar dos sovietes) no Partido Bolchevique. Assim surgiu o novo Estado dos sovietes num regime baseado na democracia dos sovietes dos trabalhadores, dos camponeses, dos soldados que deram a liberdade de autodeterminação às nacionalidades oprimidas. Foi a maior democracia conquistada alguma vez no mundo, junto à Comuna de Paris em 1871.

Ditadura contra a democracia? Essa é a que vivemos sob os regimes burgueses no capitalismo e, ainda mais agora, a ditadura dos bancos e das grandes corporações: o 1% contra os 99%. Era sim, o governo de uma maioria contra a minoria da autocracia, a burguesia, o imperialismo, o que é muito distinto.

M – Você talvez tenha respondido parcialmente. Uma vez no poder, os bolcheviques tiveram que tomar medidas autoritárias ou antipopulares, especialmente por conta da guerra civil. Como você as avalia?

Nos primeiros anos na Rússia houve muita democracia. O governo não era exclusivamente dos bolcheviques, mas também faziam parte os socialistas revolucionários de esquerda. Os mencheviques que perseguiram os bolcheviques tinham liberdade de reunião e de imprensa. As mulheres conquistaram direitos como nunca antes havia sucedido. Agora bem, o novo estado operário e camponês tem que enfrentar o grande inimigo da guerra civil contrarrevolucionária e os países imperialistas que a apoiam.

Como ocorre quando há uma revolução, a burguesia não utiliza nenhuma democracia para enfrentá-la e sim a contrarrevolução. 21 exércitos estrangeiros atacaram as amplas fronteiras da Rússia e se organizou o exército branco de Kolchak, que ataca a partir do interior da Rússia apoiado por essas potências imperialistas. Aí começa uma duríssima guerra da qual termina saindo vitorioso o Exército Vermelho. Mas esta dura vários anos e faz sangrar muito o novo país e sua força principal que era os trabalhadores. Dezenas de milhares passam a combater no exército conduzido por Trotsky e uma grande parte morre na guerra.

O governo dos sovietes encabeçado por Lênin, prevendo esta ofensiva, tentou desde o primeiro momento assinar a paz com a Alemanha. Para se ter uma ideia, Lênin assume a defesa do acordo de Brest-Litovsk, que entrega a Polônia para a Alemanha. Por sua vez, estas e outras medidas necessárias para sustentar a guerra, provocam o descontentamento dos esquerdistas aos quais se somam de maneira oportunista os mencheviques.

Então, abrem-se dois flancos para os bolcheviques. De um lado, a guerra contrarrevolucionária e de outro as posições maximalistas, que fazem o jogo da contrarrevolução, ainda que não sejam a mesma coisa – e sempre entenderam assim os bolcheviques. Em meio a esta situação de guerra e sabotagem da burguesia, mais crise é provocada numa economia que já vinha se esfacelando desde antes da guerra. Logo, os bolcheviques veem-se obrigados a tomar medidas de comunismo de guerra, confiscos aos camponeses, restrições das liberdades dos partidos que sabotavam o poder soviético. Não nos esqueçamos de que os socialistas revolucionários tentaram matar Lênin com um atentado terrorista. Uma anedota conta que a situação era tão complicada para os bolcheviques que estes não tinham sequer um hospital seguro para levar Lênin, dado o temor que os próprios médicos o matassem. Tiveram que segurar Lênin por várias horas, agravando seu estado.

Finalmente, os brancos são derrotados depois de duros três anos de guerra e o imperialismo é obrigado a negociar. A Polônia acaba se recuperando graças ao levante do povo polaco. Mas o custo foi muito alto. Para retomar a produção, vota-se a Nova Política Econômica (NEP) para incentivar a propriedade e a produção dos camponeses no campo e na indústria com incentivos para os camponeses e setores burgueses.

M – Mas, por que, então, a burocracia triunfou ao final?

Foi um processo de vários anos que começou em 1923 com a enfermidade de Lênin e durou quase uma década, na qual se consolidou o poder de Stálin. Stálin é a antítese de Lênin, se parece muito mais com Hitler. É o Hitler da Rússia, que transformou o Estado dos sovietes num aparato estatal policialesco totalitário. Para isso, teve que exterminar todo o bolchevismo. Toda a velha guarda foi assassinada e dezenas de milhares de militantes, operários e camponeses terminaram na Sibéria ou mortos. O testamento de Lênin advertiu o comitê executivo do partido sobre o perigo que significava Stálin, mas não saiu da gaveta do Secretário de Organização que era o próprio Stálin.

Creio que os mesmos elementos que explicam o triunfo dos bolcheviques postos de forma inversa explicam as causas objetivas e subjetivas que incubaram e levaram ao processo de burocratização:

Em primeiro lugar, o desenvolvimento atrasado russo, que, como já vimos, teve suas vantagens para que a Rússia tivesse a primeira revolução, também explica em parte o surgimento da burocracia. Um país atrasado pode-se chegar antes à revolução, mas não ao socialismo. O socialismo é possível com um grande desenvolvimento das forças produtivas: é preciso repartir a riqueza e não a pobreza. Trotsky dizia que onde há escassez surgem filas. É preciso administrá-las e onde há que administrá-las se necessita pessoas que o façam, ou seja, o aparato. E o aparato é uma base para a burocratização e não necessariamente a burocratização em si.

Em segundo lugar, as derrotas da revolução europeia. Lênin, Trotsky e a velha guarda bolchevique sabiam que a Rússia era a porta para a revolução no velho continente e apostavam nisso que se revelou verdadeiro. Houve levantes revolucionários em vários países. A primeira onda revolucionária durou até 1923 e fracassou principalmente pela imaturidade dos partidos comunistas e sua direção. A maior tragédia foi na Alemanha, onde, apesar dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, o Partido Comunista teve um grande desenvolvimento. Os sovietes de operários e soldados haviam se expandido muito mais do que na Rússia. A Baviera, uma região importantíssima, chegou a ser governada pelo soviete. Houve três ondas revolucionárias, a última em 1923, que foram perdidas pela direção do Partido Comunista e pela incapacidade de Zinoviev, então secretário-geral da III Internacional, para orientá-los. Conta Isaac Deutscher que Trotsky pediu para ir à Alemanha a fim de ajudar a revolução, mas os ciúmes do triunvirato – Kamenev, Zinoviev e Stálin – o impediram.

A Oposição de Esquerda de Trotsky apostava na revolução na Europa para frear o curso burocrático na Rússia, mas sua aposta tornou-se mais difícil para a compreensão do Partido nesta situação.

Em terceiro lugar, o cansaço e o debilitamento da classe operária e sua vanguarda como consequência do desgaste provocado pela guerra e pela crise econômica que esvaziava as fábricas. Morreram muitos militantes que estavam nas primeiras fileiras do exército vermelho, ao que é preciso somar o cansaço dos anos de luta e as derrotas da revolução na Alemanha.

Por último, em quarto lugar, como consequência do anterior, o debilitamento dos melhores militantes e da coluna de quadros do Partido. Na medida em que o tempo passava, chegavam ao partido setores novos, sem experiência e também os recém-ingressantes. Mas talvez o debilitamento maior tenha sido a morte de Lênin, o dirigente indiscutível do Partido. Ele deixou um testamento claríssimo contra Stálin e a favor de Trotsky, mas este não era um dirigente de primeira hora do partido. Havia ingressado em abril e se havia convertido “no melhor bolchevique”, segundo Lênin. Stálin e seus colaboradores fizeram uma hábil campanha para mostrar suas diferenças anteriores com o Partido e com Lênin para começar a estabelecer sua barreira sanitária. Quando Trotsky começou a dar a batalha, este cordão já estava em funcionamento.

Os processos de Moscou nos anos 30 e a quarta tragédia na Alemanha, onde é desperdiçada uma nova situação revolucionária – que culmina com o triunfo de Hitler nas eleições pela negativa do Partido Comunista Alemão a fazer a frente única com a social-democracia, consequência da política burocrática e ultraesquerdista do “terceiro período” de Stálin – terminam de consolidar a contrarrevolução stalinista.

M – Bom, mas, ao final, resta algo da revolução de Outubro? Alguma conquista da Revolução ou só suas lições?

Não, de maneira alguma restaram só lições. O trotskismo – que é a continuação do leninismo – sofreu diferentes pressões em relação à contrarrevolução na Rússia. Na vida de Trotsky, surgiram antidefensistas nos EUA que negavam que a Rússia fosse um Estado Operário quando já se aproximava a guerra mundial e a necessidade de defendê-la. Depois da Segunda Guerra Mundial, houve setores que capitularam ao stalinismo sob o falso argumento de que a Rússia e os PCs se veriam obrigados a enfrentar o imperialismo.

Nós, morenistas, desde que entramos para a IV Internacional em 1948, estivemos contra a ideia de qualquer perspectiva revolucionária do stalinismo, mas creio que fomos mais ousados e os que mais acertamos na leitura do pós-guerra e da própria guerra. Concretamente, para Moreno, a derrota do nazismo, que teve como seu ponto de inflexão a batalha de Stalingrado e a quebra do sítio do exército alemão a Moscou, é um triunfo democrático revolucionário e, junto a Outubro, outro grande fato decisivo do século XX, que repercute até hoje na situação mundial. Não se poderia explicar a crise atual do capitalismo sem levar em consideração esse evento histórico. Seria um erro obscurecê-lo pelo fortalecimento que teve nesse momento o imperialismo norte-americano. É mais recomendável observar também a atual decadência desse imperialismo.

O nazismo foi e é a forma mais deformada e desapiedada que o capitalismo pôde alcançar. Foi o novo escravismo, a produção com base nos campos de concentração, para os quais iam os judeus e o conjunto da classe trabalhadora. Ali se realizava a produção armamentista. O nazismo se constrói entre os grandes industriais e as milícias de Hitler se apoiam na classe média desesperada. O nazismo deve ser o mais sinistro regime que a humanidade já conheceu, com os trabalhadores produzindo para as grandes corporações em campos de concentração, exterminados e mortos quando sua mão-de-obra já não lhes era útil.

A derrota dessa brutal maquinaria não pode ser explicada, como fazem os historiadores burgueses, pelo triunfo dos exércitos aliados, nem mesmo por Stálin. Na Rússia, colocou-se em movimento o heroísmo do povo herdado da Revolução. Sabe-se que a cúpula do exército demorou muito tempo para reagir, já que Stalin não acreditava na ruptura do pacto assinado com Hitler. O povo e os soldados foram um contrapeso ao aparato burocrático com grande heroísmo: fizeram grandes iniciativas para romper o cerco a Moscou e dessa maneira expulsar as tropas alemãs. O mesmo ocorreu na Europa com os maquis da França, a resistência da Itália e da Grécia, que triunfam por seus próprios meios, como também sucedeu na Iugoslávia com as milícias de Tito.

É verdade que a derrota do nazismo e do fascismo fortaleceu o imperialismo americano e a burocracia russa, mas terminou com o plano mais sinistro que tinha um setor da burguesia imperialista, com a qual haviam dialogado todos os regimes burgueses – no caso da França, o regime se somou ao nazismo. Sem a Revolução Russa, não se pode explicar por que o povo e os trabalhadores derrotaram o nazismo. Haviam feito uma revolução, mesmo que naquele momento sofressem com o regime ditatorial de Stálin.

Não é por casualidade que depois da guerra ocorrem as primeiras revoluções políticas no Leste e na ex-URSS. Em 1953 na Alemanha, depois 1956 na Hungria, onde os operários e estudantes organizados em sovietes derrotaram a burocracia e os conselhos operários tomaram o poder, que depois é recuperado pela burocracia graças à invasão do exército russo. Depois foi na Tchecoslováquia em 1967. Nenhum destes movimentos foi apoiado pelo imperialismo. Calaram-se e criaram assim as condições para que a burocracia pudesse sufocá-los. Mais importante ainda é que a situação revolucionária da guerra mundial levou à independência das colônias inglesas e francesas: Índia, Paquistão, Egito e, sobretudo, a segunda revolução na China, o país mais populoso do planeta que termina expropriando a burguesia. Imaginem a situação que se criou! Havia um terço da humanidade sob Estados Operários!

Estou indo um pouco além do tema, mas essa nova situação mundial começou com a derrota de Hitler na Alemanha. Podemos dizer que o século XX está marcado pela primeira revolução socialista de 1917, pela revolução democrática que liquidou o fascismo e pela expropriação da burguesia em um terço da humanidade. Dada a ausência de uma direção revolucionária como a russa, estes grandes triunfos não permitem que a revolução socialista como tal se transforme num triunfo definitivo do socialismo sobre o imperialismo. Porque eles fortaleceram a burocracia. Durante todo o pós-guerra, funcionou um pacto de divisão do mundo entre o imperialismo ianque e o aparato stalinista. Este não fazia revoluções na zona de influência do mundo ocidental e o imperialismo não se intrometia no Leste.

Este pacto funcionou até a queda dos regimes stalinistas na URSS e no Leste, produto também de revoluções democráticas, o outro grande acontecimento do século passado. O que sobra destes triunfos hoje em dia, quando vemos aumentar a miséria em todo o mundo? Um mundo mais instável e caótico, porque a burguesia imperialista está em crise e dividida, não tem o aparato russo para negociar e não imagino que tenha condições para voltar a retomar o nazismo como regime que lhe daria estabilidade bastante definitiva num mundo que iria à barbárie. As massas fizeram a experiência com o fascismo, não vejo que possa triunfar nos países centrais. Como já dissemos e escrevemos outras vezes, haverá novas revoluções democráticas que colocarão na ordem do dia a expropriação da propriedade privada dos meios de produção hoje em mãos de uma centena de grandes corporações e bancos.

A maior contradição de todo este período é que não se fortaleceu uma direção revolucionária, ou seja, uma consciência de massas socialistas e um partido como foi o Partido Bolchevique. Mas existem condições, oportunidades para avançar até ele.

M – Por que seguimos falando, ainda hoje, da Revolução Russa? Que lições podemos extrair dela para os acontecimentos políticos da atualidade?

Como lhe dizia, hoje a crise do capitalismo é muito grande. Não há uma guerra mundial à vista, ainda que possa ocorrer, nem vejo o nazismo triunfante. A crise é global. Expressa-se na estagnação econômica e na crise dos regimes que governam. Nas mudanças climáticas, o aquecimento global… Agora, o capitalismo como um todo é um elo débil e a América do Norte um deles.

Ao mesmo tempo, é muito grande também a crise de uma direção como a que tiveram os bolcheviques em 1917. Não para fazer uma cópia da mesma, já que o mundo teve suas mudanças, mas é necessária uma direção com a capacidade daquela.

Falar em crise de direção significa não só que faltam esses homens e esse partido. Há também uma crise na consciência das massas, que não têm um modelo porque veem que o “socialismo real” é o único que conheceram e fracassou. Não é fácil resolver estes problemas que se dão no marco de que as massas estão lutando contra a atual forma globalizada do capitalismo neoliberal que se aplica. Este capitalismo está conduzindo mais trabalhadores, raças, mulheres e camponeses à miséria. Isto pela primeira vez é um processo global que ocorre no mundo. Seja porque nos países centrais também há crise e seja porque também sentem as ondas inexoráveis de imigrantes, a miséria e a destruição do planeta.

A primeira conclusão é que necessitamos fazer uma revolução. A ruptura com o regime, que certamente vai se antecipar à ruptura do sistema, está colocada não apenas no Brasil, mas também em países capitalistas avançados. Isso é novo, pode haver revoluções que terão num primeiro momento um caráter democrático em países centrais. E não há aparatos que controlem as massas como o da burocracia stalinista. Trotsky tem um belo texto escrito em 1934: Se a América do Norte se tornasse comunista. Leio algumas partes porque me parecem atuais e inspiram a ter confiança, a perseverança baseada na análise científica e no otimismo revolucionário de Lênin e dos bolcheviques:

“Se os Estados Unidos se tornassem comunistas, como consequência das dificuldades e problemas que a ordem capitalista é incapaz de resolver, descobriria que o comunismo, longe de ser uma intolerável tirania burocrática e de controle individual, é o modo de alcançar a maior liberdade pessoal e a abundância compartilhada. (…) Os Estados Unidos só poderão chegar ao comunismo passando pela revolução, da mesma maneira como alcançaram a independência e a democracia. O temperamento norte-americano é enérgico e violento e insistirá em quebrar uma grande quantidade de pratos e atirar no chão uma boa quantidade de carrinhos de feira antes que o comunismo se estabeleça firmemente (…). Os EUA soviéticos não terão que imitar nossos métodos burocráticos. (…) Entre nós, a falta daquilo que é mais elementar produziu uma intensa luta para conseguir um pedaço extra de pão, um pouco mais de tecido. Nessa luta, a burocracia se impõe como conciliador, como árbitro todo-poderoso. Mas vocês são muito mais ricos e terão muito poucas dificuldades para satisfazer as necessidades de todo o povo”. E conclui dizendo que seria muito difícil que outra potência, como o Japão ou a Inglaterra, intervenham ali. Agora, o que ele falaria de Putin, com o qual Trump mantém uma perigosa amizade?

M – Ao longo da entrevista, falamos muito do papel de Lênin. O que as novas gerações militantes deveriam aprender de seu legado? Em outras palavras, o que é ser leninista hoje?

Aqui está, então, uma segunda conclusão. Compreender a importância do sujeito político, o partido. Não para fazer uma cópia do partido de Lênin, que é impossível, mas para usar sua teoria e seu método de compreender e atuar sobre a situação atual. Construir uma ferramenta política no movimento de trabalhadores, na juventude, entre as mulheres e em todos os setores explorados e oprimidos, que hoje são muitos. Como dizia, a atualidade da necessidade de uma ferramenta política, de uma alternativa política de poder é uma necessidade angustiante. Daí a importância de se recuperar Lênin, que, sem dúvida foi o estrategista e dirigente mais talentoso na condução da revolução. Temos suas lições.

Para os mais jovens, ofereceria duas lições que estão muito presentes: lutar por construir essa ferramenta política rechaçando o dogmatismo e ter a força, a paixão militante, de Lênin e de todos os revolucionários russos: tornar-se militantes da revolução!


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