“As lutas estão dando um salto no mundo”
A história do trotskismo peruano, o papel de Hugo Blanco, o enfrentamento com a ditadura de Fujimori e as oportunidades abertas para a esquerda peruana na atualidade são abordadas nesta entrevista com Tito Prado.
Se certa vez o intelectual socialista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) escreveu que “nada importa, na história, o valor abstrato de uma ideia, mas sim seu valor concreto” 1, a ideia do socialismo tem em Humberto “Tito” Prado um de seus maiores colaboradores para que permaneça com plena validade. Militante pela causa revolucionária desde os tempos de juventude, Tito Prado carrega quase cinco décadas de distintas batalhas travadas sob a tradição trotskista para a direção nacional do Movimiento Nuevo Perú (MNP), novo partido da esquerda peruana que reúne, entre outras correntes, seu Movimento Por la Gran Transformación (MPGT) e a ex-presidenciável Verónika Mendoza, a terceira mais votada nas eleições de 2016 com 18% dos votos.
Nas duas horas de conversa autobiográfica que a revista Movimento realizou com Tito, pudemos tomar contato com parte da história viva e plenamente ativa da esquerda anti-imperialista latino-americana. Nosso entrevistado foi um daqueles jovens estudantes dos rebeldes anos 60 que largou tudo para se juntar ao chamado de Che em prol da revolução internacional. Tito, no entanto, não incorreu no erro de absolutizar a tática guerrilheirista, inconforme com a realidade social peruana. Internacionalista, compreendeu com seu maestro argentino Nahuel Moreno a importância de enxergar a totalidade do movimento revolucionário socialista a fim de transformar o Peru, nunca aposentando o método da organização e mobilização da classe operária e demais setores explorados e oprimidos para o futuro de sua estratégia. E é com essas perspectivas que ele impulsiona uma coluna de jovens quadros revolucionários que está se forjando no Peru pós-Ollanta Humala, ex-nacionalista cuja rendição ao receituário neoliberal foi logo denunciada pelo MPGT de Tito Prado.
Evidentemente, um dos enfoques da entrevista é o balanço histórico de sua experiência com Hugo Blanco – outro militante incansável da revolução peruana, também entrevistado por nossa revista na edição n. 4 e que seguiu outras vias de ativismo. Além de reconstituir os desacertos políticos com Blanco, Tito Prado rememora a coleção de triunfos e tropeços – dos quais ele não se isenta – cometidos pela vanguarda peruana neste quase meio século transcorrido, sem se esquecer de intervir energicamente nas questões presentes que se impõem aos socialistas de nossa época.
Movimento – Em que contexto tu começaste a militar? Que idade tinhas e como foi?
Comecei com as grandes mobilizações juvenis, em particular estudantis, que se deram no mundo no ano de 1968. Eu tinha 18 anos. Estavam acontecendo grandes mobilizações na França, na Argentina e no México. Havia também a luta dos jovens contra a Guerra do Vietnã. Eu sou dessa geração. De um setor da juventude que se radicalizou ao ver estes movimentos que convulsionaram o mundo. Sou parte dessa onda de radicalização da juventude naqueles anos. Como muitos da minha geração, nos perguntávamos por quê? O porquê da Guerra do Vietnã, o porquê destas mobilizações que convulsionaram a França e a Europa, o porquê das ditaduras na América Latina… A partir dessas perguntas, começamos a tomar consciência de que algo não ia bem no mundo. E também em nosso país. Desde a época do colégio, eu era admirador da luta de Hugo Blanco e da luta camponesa que ele encabeçou em Cuzco. Parecia-me formidável que ele fosse a expressão dessa luta tão importante, porque existia no Peru o gamonalismo 2 e a opressão ao índio. Coisas que eu aprendi a partir de algumas leituras. E ele encarnava tal luta em carne e osso. Então, sentia-me, de alguma maneira, parte deste processo e das lutas que se desenvolviam no Peru. Eu estudava arquitetura, na Universidade Nacional de Engenharia (UNI), era um dos mais jovens da minha turma e optei por assumir um compromisso com todas estas causas.
Algo que marcou uma atitude mais militante foi conhecer o que tinha acontecido na Revolução Espanhola. Apesar de serem acontecimentos muito anteriores, ali pude ver o valor de um povo em luta, a capacidade de transformar a realidade e a tragédia que significou o stalinismo, não só para a Espanha, mas para outros países. Demorei em assumir um compromisso partidário porque sentia que era perder, em alguma medida, a liberdade. Ainda pesa em um jovem dessa idade o individualismo, né? Contudo, pesaram mais as lutas que se desenvolviam no meu país. Naqueles anos governava Velasco Alvarado, um regime militar, que implantou uma série de reformas muito importantes de caráter nacionalista, mas, claro, a partir de um poder burocrático por meio do Estado, o que gerou grandes mobilizações operárias. Eu, já militante da FIR – grupo de Hugo Blanco no qual ingressei – optei junto aos jovens estudantes por militar nas fábricas. Durante 10 anos, militamos em diferentes greves e isso foi decisivo na formação de nossa organização. Porque algumas outras formações priorizavam o trabalho popular, camponês ou estudantil. Nós fomos uns dos poucos que se dedicaram à militância no movimento operário num período em que havia grandes lutas operárias.
Esse processo culminou na greve geral de 1978, fato que paralisou o país por completo e levou à retirada da ditadura militar do sucessor de Velasco, encabeçada por Morales Bermúdez. Foi uma luta dirigida pelo movimento operário, no qual nos construímos durante estes anos. Foi uma vitória relativa: a ditadura teve que sair, mas lamentavelmente tivemos mais de 5 mil dirigentes operários despedidos. Cortaram a cabeça do movimento operário, mas politicamente a esquerda capitalizou esta vitória contra a ditadura e, nas eleições à Assembleia Constituinte de 1978, apresentou distintas chapas. A nossa, encabeçada por Hugo Blanco (era a terceiro na lista da FOCEP), ficou em terceiro lugar nas eleições gerais com 15% da votação que era muitíssimo! Nunca a esquerda tinha conseguido esta votação e conseguimos eleger, com a FOSEP, 13 deputados constituintes. Entre eles o próprio Hugo, Enrique Ferrnandez Chacón e outros. E de fato ganhamos a liderança da esquerda, frente aos grupos maoístas ou stalinistas que ficaram pelo caminho. A FOCEP foi um instrumento de classe, tanto que seu nome era Frente Operária, Camponesa, Estudantil e Popular. Pretendia apresentar uma alternativa do movimento operário e popular frente às diferentes variantes da direita naquele momento. Posteriormente, em 1980, justo quando era necessário intervir nas eleições gerais se ensaia uma frente eleitoral do conjunto da esquerda chamado ARI1 (Aliança Revolucionária de Esquerda) que, uma vez mantida teria mudado a história. Quem a encabeçava era Hugo Blanco, unindo toda a esquerda ou quase toda, com uma altíssima intenção de votos. Mas, por distintas causas e distintas responsabilidades (que inclusive nos toca, apesar de não havermos estado na ARI), se dividiu. E, já nos anos 80, o papel eleitoral da esquerda foi negativo, muito fracionado. Nós mantivemos uma frente (Frente dos Trabalhadores ao Poder) que obteve 4% dos votos. Não foi mal, mas se perdeu a grande oportunidade de uma frente que aglutinava toda a esquerda, que poderia ter disputado o primeiro ou segundo lugar.
M – Gostaria que falasse um pouco do PST e a colaboração com outros dirigentes como Ricardo Napurí, Enrique Fernandez e outros.
Bem, Napurí foi o dirigente mais importante do grupo lambertista que se chamava POM-R, Partido Operário Marxista Revolucionário. Eles foram da FOCEP, portanto compartilhamos essa experiência notável que se deu no Peru. Mas depois da vitória, eles desenvolveram uma política muito voluntarista. Agitavam greve geral quando já não havia mais condições para isso, propunham construir uma organização dentro da FOCEP com 20 mil filiados, quando a ruptura da LIT já tinha nos golpeado muito. Entretanto, conseguimos trabalhar em conjunto, apesar destas diferenças, e nos unimos em uma única corrente internacional. Na França, ocorreu esta unidade entre a nossa corrente (Fração Bolchevique) e a OCI de Lambert. Isso nos levou a processar a unidade de nossas organizações no país. Nem todos os membros do POM-R entraram em acordo com o PST. Alguns ficaram pela metade do caminho. Quando houve uma crise dessa unidade internacional, Napurí e um contingente de seus companheiros finalmente entraram no PST e atuamos juntos durante alguns anos. Napurí era um dos líderes de esquerda mais importantes do Peru. Antes, ele havia sido militante de outra organização que se chamava Vanguarda Revolucionária, junto com Javier Diez Canseco, Ricardo Letts, Edmundo Murrugarra, uma organização de característica centrista, com grande simpatia pelo castrismo. Justamente por este caráter centrista, a VR rompeu. Napurí formou, então, o POMR e participou conosco da FOCEP, sendo sem dúvida um dos grandes dirigentes da esquerda peruana.
M – Poderias falar um pouco da tua experiência com o morenismo? Como entraste na corrente e como se desenvolveu tua trajetória.
Quando eu decidi ter uma atitude militante, isso levou a romper com minha família, inclusive com meus estudos universitários. Eu compreendia que era um compromisso de vida e estava disposto a tudo para que se pudesse levar adiante a revolução também no Peru. Um pouco estimulado pelo triunfo da Revolução Cubana e pelo processo de grandes lutas em todo o continente. Nesse período, todos pensávamos que a revolução no Peru estava mais perto, coisa que não aconteceu. Então, o primeiro passo era ter uma atitude militante. Entretanto, o segundo passo era: qual localização internacional tu tens? Então, chegou às minhas mãos um texto de Moreno, polêmico com Che Guevara, no qual reivindicava o caráter revolucionário de Che e o conceito que tinha da revolução na América Latina, do caráter socialista que ele atribuía à revolução latino-americana, sua ruptura com a tese de que seria um processo pacífico. Ao mesmo tempo, divergia de Guevara e sua defesa do caráter foquista2 da revolução. Moreno, ao mesmo tempo em que discordava da estratégia de construção de focos guerrilheiros no campo que Che atribuía ao processo revolucionário, reivindicava a experiência de Hugo Blanco de colocar ênfase em duas estratégias: a mobilização e organização permanente do movimento de massas e a construção de uma direção revolucionária. Estas teses me pareceram que definiam o contexto, naquele momento na América Latina. Portanto, optei por seguir de perto o processo de Moreno, do partido argentino e de outras organizações afins. E optei por viajar para conhecer estes processos no ano de 1971. Foi minha primeira viagem internacional! [risos]. Não sei como consegui a passagem, mas fui. Para tomar contato com Moreno e com sua corrente. A partir daí me identifico plenamente com o morenismo, como uma continuidade do trotskismo, como uma luta por construir uma Internacional e, especialmente, estimular e propugnar uma revolução no continente latino-americano. Desde então, sou parte dessa corrente.
M – O partido sofreu muitos golpes, especialmente por ser o partido de Hugo Blanco. Tu estiveste em muitos destes momentos. Como foi e como superaram cada momento difícil?
Depois das mobilizações camponesas, Hugo Blanco é condenado a 25 anos de prisão. Antes, o promotor tinha pedido a pena de morte e uma campanha internacional lhe salvou a vida. Sua prisão marca o fim desta experiência. Muitos quadros que tinham sido parte desta experiência acabaram presos, perseguidos ou cansados. Sua prisão marcou uma derrota. Não de seus ideais ou de seu programa, mas desta experiência, porque ficou isolada, não se difundiu em escala nacional, não empalmou com o movimento operário e popular das cidades. Por um lado, o governo respondeu à revolução camponesa com repressão. Por outro, respondeu com a implantação de uma reforma agrária. Acalmou as coisas. pelo menos nesta zona [Convención e Lares]. Então, a partir deste ano, o que primou foi a defesa de Hugo, a defesa dos companheiros presos.
Quando eu ingresso nessa organização, ela se encontrava dizimada. Assisti a um congresso na clandestinidade, no qual havia cerca de 70 companheiros (basicamente de Cuzco). A opção majoritária foi de seguir a política que emanava do IX Congresso da [IV] Internacional. Inclusive com o voto de Hugo de dentro da prisão, o Congresso apoia a tese segundo a qual se deveria seguir a linha do ERP argentino e do POR da Bolívia, quer dizer, seguir as teses da guerrilha urbana. Então, eu lembro que junto com um punhado de companheiros, todos novos no partido, decidimos votar contra esta orientação, indo contra o voto de Blanco. Na saída do Congresso, nos perguntávamos o que faríamos. Porque decidimos não seguir a linha guerrilheirista e ficamos sós! Aí decidimos fazer duas coisas: uma, visitar Hugo Blanco, para quem dissemos o tanto que nos alarmava ele ter votado uma política diferente de sua experiência. Hugo nos confessou que não tinha lido bem o documento, reconheceu que havia se equivocado e que não concordava com essa tese. Nos propôs formar a comissão reorganizadora da FIR. Esse foi um acordo. O segundo acordo foi ir à Argentina, conhecer Moreno. E essas duas coisas deram origem a nosso grupo, que inicialmente se chamou comissão reorganizadora da FIR sob a bandeira de reivindicar o método da mobilização de massas e da construção do partido contra as teses guerrilheiristas que não somente haviam entrado na FIR, por impulso da IV Internacional, mas que também estavam muito generalizadas na vanguarda de esquerda no Peru.
Esta é uma definição importante, neste momento o grande perigo não era o oportunismo, o grande perigo era o ultraesquerdismo. Tu me perguntavas sobre as dificuldades que tivemos na construção. Passamos de tudo. Momentos de repressão, de prisão, mas do ponto de vista político, um problema que muito nos afetou é que Hugo sempre foi contraditório para a construção do partido. Porque a política que nós reivindicávamos ajudava nossa construção, mas quando ele saiu da prisão todos achávamos que era a oportunidade para deslanchar. Porém, ele não ajudou, infelizmente. Vou te contar uma história muito concreta: se não me engano ele saiu em 1973, quando já tínhamos alguns anos de militância, um núcleo forte em Lima, muitos quadros, sobretudo estudantis, ganhos entre os secundaristas, e muitos operários, ganhos nas greves. Então, Hugo livre, para nós, era “a” oportunidade! Ele foi recebido num coliseu cheio, demasiadamente cheio, pela gente que o considerava seu líder. Ou seja, Hugo era de massas. Por quê? Porque foi o líder camponês, porque nunca se dobrou, porque convocou a greve geral contra a ditadura, enfim, uma série de circunstâncias que fizeram dele um líder de massas. Nós, ainda um pequeno grupo, víamos que sua liberdade era a oportunidade para crescer. Assim parecia, pois cada convocatória, cada atividade com ele era multitudinária. Nas universidades, faltava espaço nos salões, ficava gente do lado de fora. Nisso, aproximamos muita gente, mas, neste contexto, estourou uma greve nacional dos professores e ele optou por ser parte das ações de rua desta greve, contra nossa opinião, contra a opinião de nossa pequena direção. Dissemos a ele que isso era colocar em risco sua liberdade e, portanto, colocar em risco a organização. Mas ele colocou à frente seu critério de que tinha que estar, como sempre, nas lutas. Como resultado, o descobriram e o deportaram. Ficamos um longo período sem nosso principal dirigente, um processo de construção que foi abortado a partir de uma decisão que foi imposta por sua personalidade, mas que não era compartilhada pelo grupo como um todo.
Posteriormente, quando triunfa a FOCEP, Hugo retorna. E nós – que havíamos dito que o principal dirigente da FOCEP, Genaro Ledesma, um advogado de esquerda, recentemente tinha ido a Cuba e voltava com uma linha diferente – alertamos Hugo de que era necessário modificar a direção da FOCEP e que ele, o responsável por receber uma abrumadora maioria dos votos, passasse a ser o representante e não Ledesma. E ele se negou, disse que “não, Ledesma tem que seguir como presidente”. Hugo não levou a sério nossas advertências e, depois, Ledesma consumou um acordo com setores militares e, se não me engano, com o PC também. Logo a FOCEP é rompida e Hugo Blanco fica sem a Frente, sendo o principal líder, sendo o mais votado! O resultado foi que perdemos a FOCEP. Isso foi um desastre político e também um fator de ruptura entre nós. Ele rompeu com o PST e formou o PRT. Qual era a principal diferença de ambas as políticas? O PRT se orientava para formar um partido centrista, em unidade com Vanguarda Revolucionária e outros grupos de esquerda, sob a tese do Secretariado Unificado da IV, de que naquele momento havia uma nova vanguarda nos partidos centristas. Já nós víamos a necessidade de um partido mais operário e mais popular… Para mim, então, os golpes mais fortes foram de caráter político. Expressos pela personalidade de Hugo Blanco, pouca disposição em se disciplinar por seu próprio partido. Além de sobrepor seu critério pessoal. Isso nos levou em duas ocasiões, pelo menos, a abortar um processo de construção.
M – Tu falavas anteriormente da ruptura da Frente de Esquerda, ARI, e das distintas responsabilidades, incluindo as nossas. Quais foram os principais erros em tua opinião?
Nosso erro fundamental foi não ver a oportunidade que representava a ARI. Ficamos à margem da ARI. Sob a ideia de que, ao haver aceitado um pequeno setor que rompeu com Ação Popular, tinha se convertido em uma Frente Popular, coisa que era absolutamente exagerada e até equivocada, porque ARI era uma unidade de toda a esquerda com Hugo Blanco como candidato, o que lhe garantia bastante independência. Este setor que nós denunciamos era muito pequeno, era na realidade um setor que veio à esquerda a partir de posições populistas. Encontramos, na verdade, um pretexto. Nossa posição foi muito sectária. Quando se rompeu a ARI, nós sentíamos que havíamos triunfado, quando na realidade deveríamos haver estado aí e evitado que isso acontecesse.
M – Bem, vamos dar um salto na história. Tu foste parte e estiveste muito envolvido na mobilização que derrubou Fujimori em 2000, a Marcha de Los Cuatro Suyos. O que significou este processo para a construção de uma alternativa para o país?
No ano 2000, quando vieram à luz, pelos meios de comunicação, os vídeos que mostravam como o governo Fujimori havia comprado deputados para se manter no poder, a luta contra o governo deu um salto a dois níveis de confrontação: um, do resto da esquerda que se negava a fazer unidade de ação com os partidos que começaram a romper com este regime; e outro, a nossa posição, que afirmava não ser uma luta somente de classe, mas sim uma luta democrática e deveríamos construir uma unidade de ação com todos os setores que tivessem dispostos a derrubar a ditadura. Nós nos somamos às ações que envolviam Ação Popular, APRA, o partido de Toledo… por isso fomos parte da Marcha de Los Cuatro Suyos, à qual finalmente a esquerda teve de se somar, por ver que sua política de pretender dirigir a queda de Fujimori somente pela esquerda havia fracassado e levava ao isolacionaismo. Então, definitivamente, o que triunfou foi uma política de unidade de ação da qual nós fizemos parte. Tanto fizemos parte que um dos nossos companheiros perdeu um olho nesta luta [Aldo Gil]. E nós, em um dos momentos finais, às vésperas da Marcha de Los Cuatro Suyos, participamos com deputados da nossa corrente do Brasil e Argentina, evidenciando que estávamos jogados em escala continental na luta pela derrota do fujimorismo. Finalmente, Fujimori foi derrotado, mas nós consideramos que a luta deveria continuar, porque seguia vigente sua Constituição bem como o modelo econômico neoliberal. Para encarar esta nova situação, decidimos mudar o nome de nossa organização para La Lucha Continúa. Isso nos permitiu ter relações com um setor juvenil, vanguarda das mobilizações contra Fujimori e aí começou uma nova etapa de nossa construção…
M – Que foi até a experiência com o nacionalismo, não?
Claro! Com La Lucha Continúa estabelecemos vínculos com o nacionalismo, porque vimos que havia aberto uma nova oportunidade para a esquerda que estava muitíssimo desarticulada e muito reduzida pelo fracasso de Izquierda Unida, que foi o novo reagrupamento posterior à ARI, e a derrota do Sendero Luminoso3. Ambas as frustrações, por assim dizer, deixaram a esquerda muito mal, no entanto havia muita disposição de luta do povo peruano. E essa vontade de luta, alguém teria que expressar.
Assim que Ollanta Humala volta da Europa, montamos uma comissão para falar com ele. Nesse momento, ainda não aparecia em nenhum meio como um líder. Simplesmente tinha fama por haver organizado uma insurreição militar no sul do país contra a ditadura, que durou poucos dias. Quando regressou, visitamos Ollanta, propondo que ele encabeçasse uma corrente pela mudança, de caráter nacionalista e popular. E esboçamos o que seria logo o programa da “Grande Transformação”: recuperação da soberania, assembleia constituinte, etc. Ollanta nos escutou, junto com o seu principal colaborador naquele momento, Francisco Rojas – que em seguida faleceu em um acidente – confirmando estar totalmente de acordo com as nossas propostas e nos pedindo para ingressar no Partido Nacionalista Peruano (PNP). Nós entramos pouco tempo depois e desenvolvemos uma experiência de vários anos, entre 2005 e 2011. Durante todo este período, sempre fomos uma corrente interna no PNP, defendíamos o máximo que podíamos um processo de mudança no país, independente da direita. Porém, os métodos absolutamente caudilhescos e burocráticos na direção da organização nos levaram a desconfiar de Ollanta e, por esta razão, mantivemos uma atitude crítica dentro do partido. Em particular, nos apoiamos na juventude que estava organizada em uma instituição que se chamava COEN, dirigida por nós e com várias centenas de jovens em todo país. Em 2011, quando assume Ollanta, nós já começamos um processo de ruptura, pois nos demos conta que a traição estava absolutamente consumada e oficializamos a ruptura com o partido um ano depois.
Formamos o Movimiento Por La Gran Transformación (MPGT) junto com outros setores que haviam resistido à traição de Ollanta e haviam rompido também. Entre eles, Jorge Rimarachín, um congressista do nacionalismo que teve uma atitude de confrontação com o governo por causa do projeto Conga4. Conga nos uniu. Formamos o MPGT, até nosso ingresso na Frente Ampla.
M – E, nessa experiência da Frente Ampla, qual balanço tu fazes? Foste candidato a deputado pela FA, inclusive. E agora, com a formação do Nuevo Perú, novas oportunidades se abrem. Podes falar um pouco deste processo mais recente?
Nós ingressamos na Frente Ampla depois que esta atravessou uma crise. Ocorreu uma ruptura com velhos partidos que a integravam e que haviam optado por apoiar Suzana Villarán para sua reeleição na prefeitura de Lima, se posicionando a favor de uma frente com Alejandro Toledo, ex-presidente de um governo neoliberal. Logo, o setor originário da FA resistiu a este curso e nós saudamos que não tenham caído nessa política, começando a nos aproximar. Já em 2015, iniciamos um acordo. Entraríamos na FA com base em um protocolo, no qual acordávamos mutuamente defender um programa de mudanças. Um programa democrático e anti-imperialista como ponto de partida para um caminho de maiores transformações. Ou seja, nosso ingresso na FA se deu numa circunstância em que a velha esquerda ficou de fora, após sua capitulação a Toledo. A FA se constituiu como uma confluência de distintos grupos em torno deste programa para ação. Não era uma unidade em torno de uma ideologia, que era muito diversa, porque vinham movimentos ecologistas, democráticos, de gênero, nacionalistas, socialistas… O que nos unia era uma proposta programática, que sendo democrática se expressava na assembleia constituinte e que sendo anti-imperialista se expressava na necessidade de recuperação de nossos recursos e na soberania econômica do país. Um programa que marcava uma dinâmica de transição porque, ao questionar a propriedade privada das grandes transnacionais, estava questionando a propriedade capitalista, afinal. Então, ainda que não se reivindicasse socialista, era um programa muito progressista, de uma perspectiva democrático-anti-imperialista, a qual poderia abrir uma perspectiva socialista. Óbvio, caso ele chegasse a ser governo. Como parte das organizações que compunham a FA, participamos das eleições de 2016.
Sim, efetivamente, fui candidato em Lima… e não me elegi. Na realidade, minha candidatura foi de última hora. Eu duvidava muito se teríamos condições de sustentar uma candidatura. Ao final, o ânimo e a vontade dos companheiros me animaram e, obviamente, se tivéssemos uma candidatura ela deveria servir para a construção. E, ao redor da candidatura, foi se conformando uma corrente dentro da FA que se identificava com as ênfases que nós colocávamos nas propostas programáticas. Que finalmente foram incorporadas e a FA de conjunto passou a identificar-se com essas propostas. A FA elegeu 20 congressistas, três deles de Lima que já eram muito conhecidos e essa vitória abriu uma nova etapa. Verónika [Mendoza] foi muito significativa nessa vitória: teve dois milhões e oitocentos mil votos, que significam 18% dos votantes. Somos a segunda força do Congresso, tivemos uma vitória absoluta em sete regiões do país, sobretudo no sul. E, de fato, Verónika ficou como a líder deste processo e a FA como opção de governo em 2021.
M – O processo de construção das candidaturas, inclusive a da própria Verónika, foi muito democrático, não é? Todo o povo foi chamado a participar nas primárias…
Claro. A FA foi uma unidade do diverso ao redor de um programa, mas também ao redor de um método democrático, tanto para a eleição de suas autoridades como para a eleição de suas candidaturas. Nós, pela primeira vez no país, ensaiamos uma escolha dos candidatos via consulta cidadã. Não era só a militância das organizações que votava, mas qualquer cidadão que tivesse vontade de fazê-lo. Assim os candidatos tinham mais possibilidade de refletir o sentimento de suas regiões e não responder à lógica do mais amigo do líder ou o que põe mais dinheiro como foi tradicional no Peru e em todos os partidos. No nosso caso, inaugurávamos uma nova forma de fazer política que caiu muito bem na cidadania. Evidentemente, também cometemos erros que servirão de experiência, mas o método nos resguarda e o reivindicamos.
M – Foi justamente a ruptura deste método que gerou a ruptura da Frente Ampla e o surgimento do Nuevo Perú, não?
Nós achamos que a FA rompeu-se por uma questão organizativa, mas que refletia um problema político mais de fundo. A questão organizativa é: quem detinha a legalidade da FA, uma de suas partes (Tierra y Libertad5), se negou a abrir o padrão de seus militantes a toda base frenteamplista, retendo dessa maneira para si todas as decisões finais. Não democratiza as decisões na FA. Isso já é uma barbaridade! Se nós queremos ser uma opção de poder, temos que dar a possibilidade de que todos os militantes exerçam poder sobre a Frente. Mas, ao contrário, se diferenciamos os direitos de quem milita em Tierra y Libertad (TyL) e quem não milita, há um muro que divide, o que é antidemocrático, é uma primeira questão. Mas isso refletia um problema político mais de fundo, ou seja, TyL e seu líder Marco Arana não consideram que está aberta a luta pelo governo, se trata de acumular. Portanto, se contentam em ter grupos menores, mas sob seu controle. E disputaram de tal forma a liderança com Verónika, que, ao final, assumem uma posição sectária e fracionalista de ruptura da Frente. Eles decidiram ficar com o nome, o logo, os recursos… sob a ideia de que, com isso, terão uma boa performance eleitoral, mas a realidade vai demonstrar que nem com todo dólar do mundo podem enganar a vontade dos peruanos que demonstram sua simpatia majoritária por Verónika.
É uma pena que TyL tenha dado aval ao governo numa política de “Unidade Nacional”. Nós não faremos isso. Consideramos que continuam os grandes problemas econômicos e sociais do Peru, evidenciados agora nos desastres naturais, pois quem mais sofreu as consequências foram os setores populares. Pensamos que é necessário persistir em uma política de mudanças. Levantamos como bandeiras fundamentais a mudança de modelo econômico – para que o Peru possa dispor de seus recursos naturais para o desenvolvimento nacional e o bem de sua população – e a necessidade de uma Assembleia Constituinte para mudar o regime político que permite a corrupção e a impunidade. Esses são nossos eixos. De alguma forma, retomamos os eixos fundacionais da FA e os alinhamentos organizativos votados no II Congresso, que definem a organização como anti-imperialista, anticapitalista e socialista. Há um progresso do que foi a FA em seu momento e o que é hoje o Movimiento Nuevo Perú (MNP).
M – Uma última pergunta para finalizar. Que mensagem queres deixar aos jovens que estão começando a militar?
A mensagem de que estamos vivendo numa época muito promissora, porque as lutas estão dando um salto no mundo, à medida que o capitalismo se mostra um regime econômico, social e político que “no va más”. Já não são somente os países periféricos, como na década de 60 e 70. Quando eu comecei a militar, agia com a ideia de que os processos revolucionários maduros se desenvolviam nos países do Terceiro Mundo, onde se concentravam as maiores contradições. Hoje em dia, a crise do capitalismo levou essas contradições às metrópoles, em particular, aos EUA. Isso se expressa no fato de que nasceu dentro do Partido Democrata uma opção socialista! Sanders fala de socialismo, quando já parecia perdida esta opção política, e com um programa que questiona os monopólios, a ditadura do capital. Logo, isso é um sintoma de que os processos de mudança e de massas que confrontam o sistema agora se generalizam no mundo inteiro e, em especial, entrou nos EUA. Isso é a diferença de quando eu comecei a militar. O neoliberalismo, ao ter generalizado suas políticas, também generalizou os protestos. Não são somente os operários, os estudantes e camponeses; agora, também os setores médios se movimentam. Há múltiplas razões para lutar contra o neoliberalismo e o sistema capitalista. É uma luta generalizada, mais forte, com uma consciência mais continental e mundial. Isso para mim é o novo. E os meios de comunicação modernos como a internet, como o WhatsApp, ajudam para que esta comunicação internacional seja mais intensa.
Eu diria aos jovens que aproveitem, porque o novo pode ser a destruição deste sistema, porque se a revolução entra nos EUA pode ser o princípio do fim. Obviamente, também há avanço da direita, mas estamos vendo que não é o que define a situação mundial. Para mim o mais significativo, para usar termos moderados e precisos, o mais significativo da situação mundial é esta luta que abarca tantos setores sociais e se generaliza em todo o planeta.
1 Ari, em quéchua, também significa algo como “Sim, podemos!”.
2 Centrado na estratégia de construção de focos insurrecionais ou guerrilhas no campo. De acordo com Che: “1) As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército. 2) Nem sempre há que se esperar que se dêem todas as condições para a revolução; o foco insurrecional pode criá-las. 3) Na América subdesenvolvida, o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo” (GUEVARA, Guerra de Guerrilhas, 1982, p. 13).
3 Sendero Luminoso foi um grupo guerrilheiro de orientação maoísta, surgido na década de 1960, quase extinto durante os anos Fujimori e que ressurgiu no século XXI como um pequeno grupo armado na região oriental dos Andes.
4 Conga foi um projeto da grande mineração no norte do país, região de Cajamarca, que teve uma enorme resistência popular por meio do movimento Conga No Va. A mobilização derrotou, afinal, o projeto.
5 Terra y Libertad é uma organização política peruana que se auto-definide como “ecossocialista” e “democrata radical”. Fundada em 2010, conta com a inscrição eleitoral, utilizada pela Frente Ampla nas eleições de 2016.