Herbert Marcuse, filósofo e revolucionário

No dia 29 de julho de 1979 faleceu o filósofo marxista e ativista Herbert Marcuse. Um resgate de sua história e seu valor para os desafios que temos que enfrentar na esquerda socialista.

Juliano Niklevicz 29 jul 2017, 23:57

No dia 29 de julho de 1979, há exatos 38 anos atrás, faleceu o filósofo marxista e ativista Herbert Marcuse. No dia de hoje se torna fundamental resgatar brevemente sua história e seu valor para os desafios que temos que enfrentar na esquerda socialista.

Como um dos intelectuais mais importantes dos anos 60 e 70, Marcuse foi um tipo de filósofo tão raro quanto necessário aos dias atuais. Sua radicalidade, talvez, se deva mais às derrotas que vivenciou do que às suas vitórias. Aos vinte anos de idade, participou de uma sublevação revolucionária que ficou conhecida como a revolta espartaquista, que acabou sendo brutalmente reprimida e derrotada, tendo seus principais líderes, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, assassinados. Esse fato marcou a vida de Marcuse. A partir de então, voltou a dedicar-se ao trabalho acadêmico, sem, no entanto, abandonar a luta política. Observando seu percurso filosófico e político, é nítido como a experiência de juventude sob o horizonte revolucionário da época gerou uma convicção na mudança radical da sociedade que o acompanhou até o fim da vida. Entre os teóricos de Frankfurt, da nomeada “teoria crítica”, pode-se dizer que Marcuse foi o único a manter acesa a chama da revolução como guia de sua produção conceitual, e também como guia da sua prática.

Isso não é pouco, pois, se tomarmos os filósofos descendentes de Marx, a regra básica de que é necessário transformar o mundo ao invés de apenas interpretá-lo, talvez seja a mais descumprida de todas. Essa é, aliás, uma questão deveras difícil de responder: como é possível que alguém se considere marxista e encontre coerência e alento no trabalho acadêmico e intelectual distanciado da prática coletiva de mudar o mundo? Talvez seja possível dizer que, se você conhece alguém assim, avise-o para voltar algumas casas e começar de novo, pois, de fato, não entendeu nada de marxismo.

Herbert Marcuse, de fato, não é um destes. Como um dos intelectuais que, ao lado de Antônio Gramsci, conseguiu estabelecer uma relação produtiva entre a teoria e a prática revolucionária, Marcuse tem muito a nos ensinar sobre a potência e as limitações dos movimentos que estão influenciando fortemente a política contemporânea, tais como os movimentos feminista, negro, ambientalista e de juventude. Mas porque sabemos tão pouco de Marcuse? Bem, é comum que tais intelectuais que não se contentam com os muros da universidade sejam vistos pela dita “academia” como portadores de um pensamento “menos rigoroso”. Isso também ocorreu com Marcuse, basta ver a evidente exclusão do seu pensamento dos currículos das universidades brasileiras, nas traduções mais procuradas, na falta de incentivo de recepção de sua obra. O problema se torna ainda pior quando, tais intelectuais, se misturam com estudantes e movimentos radicais envolvidos com ocupações, movimento feminista, negro, grupos ambientalistas, participando de aulas públicas, formações políticas, debatendo estratégia e tática da mudança social etc. Aí, de fato, a coisa complica na academia e fora dela.

Curiosamente, não poderia deixar de citar, foi bem esta peculiar característica de Herbert Marcuse — filósofo que uniu como ninguém Marx e Freud a favor da revolução — que foi louvada e retomada por uma grande e renomada intelectual do nosso tempo, aclamada recentemente na UFBA (Universidade Federal da Bahia). Trata-se de sua ex-aluna, a filósofa e ativista Ângela Davis: “Marcuse me ensinou ser possível, a um só tempo, ser acadêmica e militante, erudita e revolucionária”.

O discurso de Ângela, que resgata a memória de Marcuse, se concretizou em sua vida militante. Há pouco mais de 5 anos, quando o mundo presenciava uma onda de protestos que foi determinante para a tão importante jornada de junho aqui no Brasil, ela falava de dentro da Universidade da Pensilvânia para mais de dois mil jovens. A filósofa terminou sua palestra sobre os conceitos de “nova sensibilidade” e “dessublimação repressiva” de Marcuse e saiu em marcha junto ao movimento do Occupy Wall Street. A energia que nos anos 60 e 70 era emanada pela juventude que levantava cartazes com os dizeres “Mao-Marx-Marcuse” na França, estava sendo, em 2011, concentrada nas ruas dos EUA contra os 1% e em defesa dos 99%.

Os novos sujeitos da mudança, tão aclamados de modo apaixonado por Marcuse, que não podem substituir as massas de trabalhadores em sua função revolucionária, mas podem ajudar a organizá-las e educa-las, estavam novamente fazendo sua experiência. Os grandes jornais tiveram de contentar-se com noticiar a marcha, e tentar prevenir que o “guru” da juventude rebelde (como ficou conhecido pela imprensa, intencionalmente, para menosprezar seu trabalho) voltasse a dar a tônica das manifestações. As manchetes foram categóricas: “Por favor, não tragam de volta Herbert Marcuse”, disse o The Economist, como se estivesse com medo de que os pensamentos daquele que outrora a Revista Time chamou de “O flautista de Hamelin da juventude insurreta”1, contagiasse ainda mais rebeldes.

Acontece que o verdadeiro intelectual para Marcuse é aquele que resiste em converter imediatamente teoria em prática, justamente porque aprendeu que a “teoria é impulsionada pela prática”, e que “a teoria que se mantém afastada da prática torna-se ela mesma falsa”. Tais palavras, proferidas na ocasião da sua discussão com Adorno sobre o movimento estudantil — discussão acalorada, diga-se de passagem –, expressam bem a posição de Marcuse e sua opção pelo engajamento político.

Sobre Ângela Davis, Marcuse não poupou elogios e não cansou de demonstrar sua admiração de professor que acabara tornando-se também aluno. Certa vez, resumiu bem o motivo de Reagan pedir sua prisão: “ela é negra, ela é militante, ela é comunista, ela é altamente inteligente, ela é bonita. E esta combinação é mais do que o sistema pode tolerar”. Estes motivos, de fato, corporificam em uma figura síntese revolucionária que Marcuse perseguiu e defendeu.

Marcuse deve muito de sua filosofia ao pensamento do jovem Marx e também de Freud. A partir destes pensadores elaborou, de modo muito original, uma noção de transformação social que envolve necessariamente uma transformação profunda na natureza humana e no meio ambiente. Tal mudança, pensa Marcuse, transformaria a própria humanidade e também sua relação com o mundo libertado, tornando possível uma nova ciência e uma nova técnica, ideia muito atacada por seu caráter utópico. No entanto, esta reivindicação é reconhecidamente oriunda do pensamento marxista, sobretudo com a promessa do surgimento do “homem socialista”. A própria noção de comunismo como uma construção social que supera a pré-história da humanidade, possibilitando o surgimento de uma sociedade sem classes, deixa ver esta intenção. Apesar de Marcuse nunca ter articulado seu pensamento nestes termos, o espectro do “homem novo”, por vezes articulado com uma reconciliação com a natureza, aparece em diversas ocasiões, mas nunca de uma forma tão viva como na obra que serviu de inspiração póstuma para o maio francês, seu livro Um ensaio sobre a libertação (1969). Na obra, que pode ser considerada a mais utópica de Marcuse, tal ideia aparece à luz do conceito de nova sensibilidade, que visa expressar a imagem de um sujeito possuidor de outras qualidades naturais: um sujeito livre, terno, solidário, sem culpa, capaz de vivenciar as novas necessidades de uma sociedade socialista, que estariam “mergulhadas” em sua dimensão pulsional, em seu corpo e em sua consciência. Esta “especulação utópica”2 não aventurada pelo marxismo tradicional a não ser de modo episódico, foi o projeto de Marcuse em 1969.

Argumentando que a opção da teoria crítica e do próprio marxismo em evitar “desenvolver conceitos das formas de liberdade possíveis em uma sociedade socialista” já não poderia mais ser mantida, Marcuse escreve uma obra enfaticamente voltada para este fim. Como parte deste esforço, elabora uma noção de natureza humana que nenhum colega ousou supor, onde o conceito de trabalho de Marx e o conceito de Eros de Freud unem-se na possibilidade de se criar uma “nova natureza humana”, onde o reino da necessidade e do trabalho poderia então se converter em jogo, em realização de Eros, tal como visava o jovem Marx. Certa vez em um diálogo com Habermas — um de seus maiores críticos — Marcuse não deixa dúvidas. Além de dizer que a natureza é “algo que deve ser criado”3, responde com certa ironia a provocação de Habermas a respeito das razões da revolução, e sobre o possível reavivamento do “pathos do homem novo” marxista. Diz ele: “bom, e para que necessitamos de uma revolução se não conseguimos um homem novo? Isto é algo que nunca entendi. Para quê? Com vistas ao homem novo, naturalmente. Este é o sentido da revolução como a viu Marx (…). Somente no nível histórico do capitalismo tardio se agudiza a exigência de um homem novo como conteúdo principal da revolução, por que só agora — e isso é algo que cuja plausibilidade deveria se discutir — está aí o potencial social, natural e técnico, para que esse homem novo possa surgir e realizar-se”3.

Numa época em que os celulares se tornam uma parte de nós e o trabalho se torna full-time (e numa época em que é preciso falar em inglês para passar seriedade), a filosofia de Marcuse traz o questionamento radical acerca das formas de felicidade, sobre a relação do capitalismo com a nossa sensibilidade, sobre a violência brutal e estrutural que afeta diretamente as novas formas de protesto radical. Sobre a acusação de utópico, talvez, nem seja preciso defender-lhe. Se pensarmos de modo antidialético, seguindo a lógica formal clássica onde não há contradição, onde A é igual a A e B é igual a B, com certeza Marcuse será visto como utópico. Mas será mesmo que é utópico alguém dizer que o trabalho pode ser prazeroso? Mais que isso, será utópico defender que a ideia de trabalho e de jogo, aparentemente antagônicas, são na verdade absolutamente próximas, na medida em que se acabe com o trabalho alienado?

Marcuse insistia que a sociedade tentava se passar por racional, mas, na verdade, era irracional. Em uma palestra de 1966, disse que deveríamos perseguir “em vez de armas e manteiga nas nações superdesenvolvidas, margarina suficiente para todas as nações”. Ou seja, ao invés de “progresso” e de sua convivência com a miséria, que se pare o progresso até que a miséria tenha acabado. Isso parece lógico, menos para a lógica do sistema capitalista. O pior é que aquilo que é irracional também se desloca para dentro dos sujeitos, de nós mesmos. Ao invés de indignar-se contra a injustiça de uma situação desumana, como homens e mulheres abrindo sacos de lixo nas ruas do Rio de Janeiro, enquanto a força nacional de segurança é chamada para “conter a violência”, é bem possível que reclamemos do “cheiro do ralo”, do lixo espalhado pelo chão. Irracional é o sistema, são as prisões, são as escolas que parecem masmorras e suas estrutura arcaicas. Irracional é saltar do ônibus, ver pessoas comendo lixo, enquanto jantares de cinquenta mil reais decidem os rumos do país. Irracional é ouvir na televisão sobre a necessidade de comprar um carro para ter a “felicidade” de ficar três horas e meia no trânsito da casa para o trabalho.

Marcuse visualizou uma sociedade irracional e reivindicou na esteira do marxismo que lutemos por uma mais solidária e racional. Por isso, somos seus herdeiros.


Notas do autor

1 Mike David, p. 88, Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles, 2006.

2 Marcuse, p. 03, An essay of liberation. Boston: Bacon Press, 1969.

3 Marcuse, p. 251. In Habermas, Perfiles filosófico-políticos. Madri: Taurus, 1975.


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