Marea Socialista diz não à violência: nem “coletivos” armados, nem “guarimberos”

Diante da profunda crise econômica do país, o governo aprofunda sua política rentista e corrupta, acelera a entrega de recursos minerais e do petróleo às transnacionais estrangeiras, endurece o regime e intensifica a repressão às manifestações.

Marea Socialista 2 jul 2017, 21:58

Introdução

2017 tem sido um ano complicado e extremamente conflitivo. Os cenários modificam-se rapidamente e a incerteza da população venezuelana é maior que em 2016. Em um mês e meio, morreram mais pessoas que durante os quatro meses de guarimbas em 2014. Ambiente de violência em crescimento e, se mantido o ritmo atual, de maior confrontação. Entretanto, este cenário de confrontação pode ser evitado. Duas tarefas se cristalizam: deter a escalada de violência e organizar o descontentamento. Percebem-se novos signos. A maioria do povo venezuelano começa a agir de outra maneira. Levanta-se uma voz diferente em relação às da polarização. É preciso organizar a indignação para assim darmos um rumo à luta do povo.

É imprescindível definir e assinalar os setores violentos que são produto da polarização. Guarimberos e coletivos. Quem são? Que interesses defendem? Como atuam? A quem convém esta violência? Que relação há entre estes grupos e os que se manifestam de maneira pacífica? Existe uma relação de identidade entre eles? Ante tudo isso, o que fazer e como fazer? É preciso fazer um debate político sincero, entendendo que as respostas não são fáceis, imediatas e diretas, porque a incerteza e as mudanças políticas são aceleradas e, às vezes, imprevisíveis. Por isso mesmo, debater é buscar o caminho, não aceitar o que se dá por consolidado desde os extremos e a partir de uma mesma violência de duas pontas que se respalda uma na outra.

A armadilha da polarização do “Bem” e do “Mal”

Os meios de comunicação venezuelanos têm perdido toda a credibilidade na Venezuela. Os audiovisuais e impressos, os oficialistas e os que estão sob a influência da MUD. Cada um joga com a informação e “informa” a seu favor. Salvo algumas exceções, mostram posturas parciais e tergiversadas, algo que piora ainda mais quando as manifestações têm mortes.

É necessário deixar a visceralidade de lado. Do contrário, cairemos diretamente na armadilha da polarização. O maniqueísmo julga com fanatismo as ações do único adversário, rechaça qualquer coisa que o inimigo diga e assume que toda a crise e as mortes são responsabilidade direta e única daquele que se encontra do outro lado. Tudo se reduz a um campo completamente bom em contraposição a outro completamente mal.

A polarização conduz unicamente à confrontação dos venezuelanos comuns, os que sofrem com a crise, e desvia a atenção dos problemas reais e de seus corresponsáveis. A polarização é parte desta armadilha.

Quem é responsável pela crise?

É necessário partir do estrutural. No entanto, isso implica aprofundamentos que desviariam a atenção do tema principal. Esboçamos aqui apenas três ideias, desenvolvidas e postuladas em documentos anteriores:

  1.  O governo é o principal responsável pela crise atual, por suas políticas de ajuste neoliberal, e por ter favorecido o capital financeiro internacional. Tudo isso vem sendo gestado desde 2014. Zonas Econômicas Especiais, Projeto do Arco Minerador do Orinoco, entrega da faixa petrolífera a empresas transnacionais, exploração a céu aberto das minas de carvão da Serra de Perijá, a redução das importações (em mais de 60%) para poder pagar uma dívida externa jamais auditada, e a cumplicidade do oficialismo e da MUD ante o rombo por corrupção de ao menos 500 bilhões de dólares, clientelismo e quebra de empresas nacionalizadas (como Café Venezuela, Corporação Venezuelana de Cimento, Sidor, etc.), são somente alguns exemplos.
  2.  O governo acompanha seu programa de ajuste com uma política sistemática de repressão em distintos níveis.
  3.  A MUD é cúmplice e corresponsável pela crise. Desde a sua vitória nas eleições de dezembro de 2015, seus principais dirigentes apostam em saídas violentas, fora do marco constitucional. Além de ser em boa parte responsável pelo fracasso da convocação do referendo revogatório, a MUD utiliza a crise como propaganda política, mero tema de seus discursos, e em contrapartida não acompanha as lutas populares dos setores excluídos (como as lutas dos trabalhadores e operários, feministas e de gênero, ambientalistas e ecológicas, saúde, direitos sociais, etc). Não apoia a auditoria contra a corrupção, a revisão da dívida externa, os direitos dos outros partidos fora da polarização, etc. Tem se expressado através de convocatórias cada vez mais esvaziadas, sem programas a nenhum prazo, os quais convêm ao projeto pessoal de seus dirigentes e das cúpulas que os rodeiam.

As dimensões da violência parapolicial

A violência tinha gerado, até 5 de junho, um saldo preocupante de 80 mortos, conforme a contagem dos meios de comunicação, e mais de 480 feridos que lutavam por direitos fundamentais, segundo o Ministério Público. Além da repressão que estas cifras evidenciam somada às ações do Estado desde o início do ano, há uma violência que os meios e as cúpulas responsabilizam ao bando contrário reciprocamente. Para o governo, os falecidos são responsabilidade dos guarimberos. Para a direção da MUD, os falecidos são decorrência da repressão ou dos “coletivos”. Um jogo macabro que exacerba ânimos e parcializa posturas.

Esta manipulação oculta as graves consequências da violência parapolicial. Dos 39 falecidos registrados desde abril até 4 de maio, quinze (15) envolvem diretamente a grupos irregulares, entre os quais se encontram 13 civis, um guarda nacional e um policial de Carabobo. Dez deles por impactos de bala.

Resulta, pois, alarmante que a responsabilidade de quase 40% dos assassinados recaia sobre os setores violentos, cifra que poderia aumentar. O jogo e a manipulação midiática em prol dos interesses políticos turvam ainda mais o cenário e dificultam a determinação das responsabilidades. Chega a parecer que estas mortes são simples números a avultar nos noticiários. Isso ajuda as posturas políticas que mostram desinteresse pelas causas reais de tais fatos.

Ademais, é preciso somar dezenas de feridos pelas agressões das mais várias: linchamentos, intimidações, destruição de espaços públicos (como edifícios e hospitais) e ações que, continuadas e propagadas, pode nos conduzir a uma convulsão social incontrolável. Por isso, é indispensável rechaçar contundentemente a ação destes grupos violentos que só impõem sua dinâmica e prejudicam os menos favorecidos.

Guarimberos extremistas1

O governo criou uma campanha comunicacional em que os guarimberos são setores paramilitares financiados por agentes externos, de acordo com as classes altas de nossa sociedade. Ainda que certamente existam grupos que recebem dito financiamento, suas características são muito complexas. O financiado ou o paramilitar é uma parte realmente minoritária deste fenômeno.

Os guarimberos são um setor político extremista que tem se espalhado nas principais cidades do país. Corresponde principalmente a setores de classe média, mas começa a ganhar eco também em pessoas de setores populares, forçados ante a ausência de outras alternativas. Apesar de desarticulados entre si a nível nacional, demonstram símbolos claros de uma política reacionária, xenofóbica, racista, discriminatória e uma intolerância ante tudo o que guarde relação direta ou indireta com os movimentos de esquerda, o próprio Chávez e até o Chavismo como fenômeno político. Extrapolam críticas políticas fundamentadas e expressam cargas emocionais de ódio e rechaço a estes símbolos, apartando-se do reconhecimento de outros setores e de toda possibilidade de diálogo.

Embora rejeitem boa parte da direção da MUD, da mesma forma que fazem com o governo, são acompanhados e respaldados pelos setores mais violentos, neoliberais e elitistas da oposição, como María Corina Machado 2. Todas suas iniciativas se traduzem em ações de vandalismo, agitando palavras-de-ordem impostas pela MUD, como “NÃO mais ditadura”, e expressões claras de antichavismo fanatizado. Desprezam o debate democrático, inclusive com os setores que se manifestam de maneira pacífica. Antecipam uma política de “caça às bruxas”, caso cheguem ao poder, e uma intenção de aliar-se ao setor financeiro internacional, como demonstraram iniciativas desta índole em outros países (como “Aurora Dourada” na Grécia). Além disso, evocam políticas reacionárias com símbolos autoritários, de sectarismo e de ajuste, em certa medida similar (e igualmente perigosa) à do governo, mas com interesses políticos e econômicos contrários.

Estes grupos instalaram uma espécie de estado de sítio temporário em alguns redutos urbanos ou até zonas completas, aproveitando-se de manifestações ou “trancazos”, às vezes como resposta à repressão desmedida de parte do governo. Tomam ruas e avenidas principais; instalam-se como entes superiores ao estado durante os dias de conflito; estabelecem horários de compras ou aquisição de serviços, restringindo arbitrariamente a entrada e a saída daqueles que vivem nas zonas tomadas, agredindo todo aquele que se pronuncie contra eles ou critique essas ações. Chegaram até a cobrar “pedágio” dos veículos que pretendiam transitar pelas barricadas.

Esta descrição fica refletida nas ações que os guarimberos extremistas levaram a cabo em abril e maio:

  •  Assassinato de civis e, em menor medida, de membros dos corpos de segurança.
  •  Linchamentos e queima de pessoas (inclusive de não-manifestantes) durante os protestos 5.
  •  Toma de bairros nos quais impuseram sua autoridade.
  •  Queima de sedes do Ministério Público.
  •  Ataque a espaços de serviço público como hospitais.
  •  Amedrontamento de habitantes de suas próprias zonas.
  •  Mensagens de ódio e incitação à agressão a setores políticos distintos e a todo aquele que não queira se somar a suas iniciativas violentas.

“Coletivos” armados6

Grupos históricos da esquerda venezuelana, alguns relacionados diretamente com a experiência da guerrilha nos 60 e 70, os quais em 1999 tinham presença em setores populares de Caracas e de outras capitais do país, vincularam-se ao começo do processo bolivariano. Da mesma maneira como ocorreu com muitos movimentos sociais (por moradia, comunitários, estudantis, operários, etc), estes grupos se degeneraram progressivamente a partir da cooptação propiciada pela direção do PSUV e da clara burocratização do processo chavista, acentuada no auge da renda petroleira. Alguns poucos coletivos ou grupos mantiveram seus princípios ideológicos e atualmente fazem um esforço para desenvolver trabalhos comunitários e/ou de produção autossustentável, mas uma grande parte deles converteu-se num apêndice direto do Estado, com a ânsia de acessar a uma parte da renda petroleira. Ao se relacionar com a direção burocrática do processo, esta confiscou a possibilidade de participação e autonomia verdadeiras.

Nos últimos anos do governo de Chávez, multiplicaram-se referidos grupos, surgindo em zonas onde eram completamente inexistentes anos atrás. Alienados de toda relação com o trabalho comunitário de base, começaram a se instalar como organizações de controle territorial. Cada “coletivo” foi instalando seu local exclusivo, empregado como centros de operações políticas e de micronegócios, com pleno financiamento do Estado. Serviram como comandos de campanha durante os diversos eventos eleitorais. Ao possuir uma quantidade importante de armamento de todo o tipo e de procedência duvidosa, exerceram cada vez mais uma sorte de autoridade por cima, inclusive, dos corpos de segurança do Estado, controlando amplos espaços (sem invadir a atividade nem os espaços de outros “coletivos”) e baixando novas regras para a comunidade, segundo seus critérios.

O caráter mafioso, corrupto e criminoso de acumulação por parte das cúpulas governamentais permeou estes grupos violentos. O processo de depuração dos corpos de segurança anteriores, que estavam altamente corrompidos, como a PTJ e a Polícia Metropolitana, deu origem à formação dos novos “coletivos” armados3, inexistentes há uma década. Seu treinamento militar, as armas e os portes de arma (que deveriam ser manejadas apenas pelo exército) e a impunidade de suas ações evidenciam sua relação direta com instituições públicas.

Esta dinâmica, contundentemente detestada pelas comunidades dos setores populares, tem se agravado com o governo de Nicolás Maduro. Hoje, os coletivos armados instalados nos bairros das principais cidades do país respondem a uma voz de mando central, um burocrata de alto poder no Governo. Ligam-se diretamente com programas impulsionados pelo Executivo, exercendo uma posição de administração e vigilância de operativos sociais como Mercal e CLAP, para citar somente alguns; e inclusive isso lhes tem permitido estabelecer negócios de revenda de alimentos e outros produtos, num mecanismo obscuro conhecido como “bachaqueo”.

Com o agravamento da crise, estes grupos violentos buscam afiançar uma estrutura de controle social sobre as comunidades, ao impor ordem nas filas e amedrontar os habitantes que se queixem ou que sejam reconhecidos como opositores. Além disso, atuam diretamente como grupo de choque contra qualquer manifestação política ou reivindicativa, como ocorreu durante o protesto do setor universitário, no início do ano, no qual membros destes coletivos agrediram estudantes e civis. Ante esta realidade, a Guarda Nacional Bolivariana e a Polícia Nacional Bolivariana mantêm-se à margem, sem atender às permanentes denúncias da cidadania, e em alguns casos chegam a ser cúmplices diretos de suas ações.

Durante os meses de abril e maio, os “coletivos” armados levaram a cabo suas práticas políticas com total impunidade:

  •  Vinculação direta com assassinato de civis
  •  Intimidação e agressão direta contra manifestantes pacíficos e desarmados;
  •  Agressão a jornalistas e roubo de equipes
  •  Agressão e execução de disparos contra policiais e manifestantes pacíficos
  •  Porte evidente de armas de fogo (longas e curtas) e armas brancas em distintos pontos da cidade

História da luta e da dupla moral da esquerda

A violência política hoje não se restringe unicamente às ações de vandalismo dos guarimberos extremistas, nem as ações reacionárias dos “coletivos” armados. Existe una violência legítima dos cidadãos, que se mobilizam pacificamente ante a repressão das forças de segurança. Pretender mesclar o vandalismo guarimbero com a confrontação de manifestantes com corpos de segurança é cair na superficialidade tendenciosa da polarização e até negar décadas de confrontação Estado-povo, nas quais inclusive a velha esquerda participou infinitas vezes.

Os ajustes econômicos, as crises e a restrição de direitos são catalisadores para os protestos populares. Ocorreu durante o século XX, com a revolução mexicana, a revolução russa e a revolução cubana, o Maio francês, a queda das ditaduras latino-americanas, o “Caracazo”, para citar alguns exemplos. Ocorreu durante a primeira década do século XXI, com o “Argentinazo”, os “indignados” na Europa, os Ocupa Wall Street. E segue ocorrendo hoje com mobilizações multitudinárias de jovens e trabalhadores de todos os continentes, assim como ocorre no Brasil, onde o povo se mobiliza e o Estado reprime de forma desmedida.

Setores do povo trabalhador mobilizam-se permanentemente e o Estado as reprime de muitas maneiras e em distintos níveis. Ante a repressão, os setores populares se defendem com pedras, bombas molotov, barricadas ou com o que encontrem. São táticas de luta históricas, que não se inventaram em 2017 na Venezuela, e que não tem nada a ver com a queima e destruição de espaços públicos seletivos, com o objetivo de criar caos. Criminalizar estas táticas é criminalizar as lutas históricas venezuelanas. Ou agora lançar pedras e coquetéis molotov é um crime de lesa-humanidade?

Pode-se ou não estar de acordo com o objetivo da manifestação ou de seus dirigentes; pode-se participar, ignorar ou ser contrário, como é o caso das manifestações da MUD nas quais não participamos. Mas aprovar, desde a esquerda, a investida dos corpos de segurança do Estado (burguês, evidentemente) contra manifestantes desarmados, por não estar de acordo com suas exigências, é uma clara expressão antidemocrática e autoritária, inaceitável. Rompe-se cinicamente com os códigos e princípios revolucionários que foram construídos no último século. Ou reprimir uma mobilização popular de centenas de milhares de pessoas está bem porque não esta não é liderada por uma direção marxista-leninista como pretende ser a do governo? Ou existem cidadãos (dos 99% explorados) com mais ou menos direitos, conforme sua ideologia?

Por outro lado, justificar a repressão das manifestações pela participação nelas de setores minoritários violentos é igualmente um erro. Nas manifestações participam guarimberos extremistas? Seguramente que sim. Da mesma forma, nas mobilizações governamentais PSUV– Gran Polo Patriótico participam membros dos “coletivos”. Em ambos os casos seguem sendo uma minoria, o que não deslegitima as manifestações. Por isso, o discurso polarizado perde toda a coerência e expressa uma perigosa dupla moral. Ou o “Caracazo” foi uma mobilização organizada e homogênea? Por que se admira o “Caracazo” se ele não tinha direção política clara? Em nenhum momento, afirmamos que o “Caracazo” significa o mesmo que as mobilizações da MUD, mas sim afirmamos que não existe justificação para a repressão desmedida em nenhum dos casos. Nenhuma luta é pura e expressa setores muitos diversos da sociedade.

A irresponsabilidade criminosa das cúpulas da MUD

Nos últimos meses, a direção da MUD mostra-se absolutamente irresponsável. Sua ambiguidade nos objetivos das manifestações, sua ausência de análise e propostas para superar a crise econômica, social, moral; seu discurso reacionário e superficial de reduzir tudo a um “Fora Maduro” e “Não mais ditadura”, tem despertado uma violência descontrolada, que se impôs no cenário nacional. Esse reducionismo, que deixa de lado a complexidade da situação e da sociedade venezuelana, cede espaço para que os setores mais radicais imponham sua agenda, estabelecendo sua forma de luta como a “única” possível e viável; enquanto isso, milhares de manifestantes pacíficos saem às ruas para lamentavelmente ser bucha de canhão da dupla violência que se esconde por baixo da polarização.

A MUD ignora o terrível impacto da violência extrema. Da mesma forma, o governo imita essa postura com o caso dos “coletivos” armados. Nenhum dos dois se distanciam destes grupos. Não importam os responsáveis, nem importam as táticas; não importa se há um direcionamento correto ou se é necessário que morram centenas de pessoas; ao final para a MUD é “culpa do regime”. Este tipo de violência só favorece a polarização das cúpulas PSUV-MUD, e busca exacerbar ânimos e emoções para somar à política visceral de ódio e enfrentamento.

Eis o que os discursos dos dirigentes mais incendiários, como María Corina e Freddy Guevara, ocultam nos debates de fundo: a crise e as condições de vida do povo venezuelano. Ao que parece, o problema não é como solucionar a escassez de alimentos e de remédios, as alternativas ao Arco Minerador e às Zonas Econômicas Especiais, o pagamento forçado da dívida externa não-auditada, os direitos sociais, os direitos sociais, os feminicídios, o estado de abandono crítico dos hospitais e o sistema de saúde, a criminalidade desatada, a mineração ilegal e a corrupção que já roubou mais de 500 bilhões de dólares. O problema é o Madurismo, a liberdade (em abstrato) e a saída de Leopoldo López do cárcere. Para eles, o problema não é o colapso do modelo rentista nem como desenvolver uma economia produtiva e soberana. O problema é o fato de Maduro ser quem está administrando a renda de maneira mafiosa.

Por isso, a direção da MUD dedica-se a impor sua agenda (no melhor estilo do PSUV). Por isso, tergiversa toda a luta político-social legítima a partir do mal-estar desumano da população, com propostas por fora do marco constitucional. Por isso, é que em vez de discutir e diagnosticar o problema da liberdade de imprensa e da necessidade da comunicação alternativa, convoca a marchar em honra da RCTV (canal plenamente parcial a favor de um setor empresarial durante décadas na Venezuela). Por isso, a cúpula da MUD é hoje um freio objetivo para a construção de uma alternativa real de luta contra o plano de ajuste do governo.

A violência como consequência do rumo neoliberal e repressivo

Então, todo o cenário de violência deste ano não é uma causa, mas um produto de uma política equivocada do governo. Desde 2014, o governo vem aplicando um ajuste econômico contra o povo venezuelano. O aumento da desigualdade social e da pobreza 4 a partir da execução de medidas neoliberais (mencionadas anteriormente) e aceleradas com a queda do preço internacional do petróleo, somado à limitação clara de direitos democráticos constitucionais (eleições setoriais, discussão e descumprimento de contratos coletivos, militarização de empresas e instituições, postergação de eleições regionais, suspensão arbitrária do referendo revogatório, Assembleia Nacional Constituinte sem referendo consultivo, entre outros) conduziria inevitavelmente a mais violência e confrontação social. Como de fato está ocorrendo.

Reduzir o discurso a que tudo acontece a partir de uma conspiração imperialista é eludir por completo as terríveis condições de vida nas quais se encontra o povo venezuelano. Certamente, existem organismos internacionais que obedecem aos poderes mundiais e têm um caráter intervencionista, mas o capitalismo imperial está personificado em governos e burocratas, empresas transnacionais, bancos e organismos financeiros internacionais com os quais o governo tem excelentes relações a partir do pagamento da dívida externa (ilegal, ilegítima e mafiosa), as Zonas Econômicas Especiais e a assinatura de contratos desnecessários na Faixa Petrolífera e no Arco Minerador do Orinoco.

Outro tipo de oposição: demandas do povo e método democrático

Hoje o debate de tática, da forma e dos métodos de luta volta à baila. Um setor minoritário concluiu que o governo só pode ser derrotado com guarimbas e caos. De maneira sectária, pretendem impor uma ideia de “ditadura” clássica, apelam para o foquismo como único método válido de luta, com o discurso pírrico do “Fora Maduro”, sem uma proposta de país alternativo. Nos encontramos entre dois abismos. Mas na realidade vem-se demonstrando que com guarimbas e marchas o governo não vai cair, mas que, ao contrário, se viu favorecido.

As guarimbas e o vandalismo afastam o grosso do povo venezuelano, o trabalhador de cada dia da luta na rua e aumenta a polarização. Acumula para a irracionalidade e para o ódio, reduz princípios éticos e humanistas. Evita o debate político e prepara um perigoso cenário de maior confrontação e derramamento de sangue.

A participação massiva do povo, com toda sua heterogeneidade, é determinante para gerar mudanças políticas contundentes. Estas não ocorrem por simples desejos, bons discursos, ou simplesmente por ter a “razão”. Sem apoio popular ativo e presencial, a luta fica isolada e apartada de todo verdadeiro objetivo político.

Para incorporar a setores massivos do povo, devemos deixar de lado os velhos vícios sectários, antidemocráticos e reacionários tradicionais na Venezuela e começar a construir uma política distinta. Para incorporar a setores massivos da gente, devemos escutar o povo e começar a visualizar as lutas populares mais sentidas. Devemos deixar de refletir desejos e ações particulares para começar a refletir o sentimento e a ação coletiva.

A fim de que sejam enfrentadas as políticas de ajuste do governo e para que todos os setores sociais se somem a este enfrentamento é crucial levantar uma nova alternativa política, embasada em dois pilares fundamentais:

  1.  Demandas do povo: refletir as necessidades e lutas mais sentidas da população. Um programa amplo que contemple a múltiplos setores e suas exigências.
  2.  Método democrático para discutir: a) as táticas e estratégias de luta na rua, submetendo-nos à vontade da maioria da população, repudiando a ação de grupos violentos minoritários; b) as bandeiras unitárias, as medidas mínimas para por fim à crise socioeconômica que acomete o povo venezuelano, além de propostas de fundo para construir um novo projeto nacional. Para melhorar as condições de vida e recuperar os direitos sociais e políticos é necessário nos encontrarmos em espaços diversos e participativos. A saída de Maduro por si só não assegura bem-estar nem uma melhora da situação. O problema é o modelo rentista e presidencialista.

Portanto, nós, do Marea Socialista, postulamos:

Nem MUD, nem PSUV!

Nem “coletivos” armados nem “guarimberos” extremistas!

Mobilização ativa e democrática!

Construamos outro tipo de oposição!

Nós, do Marea Socialista, propomos:

Exigimos ser consultados em tudo!

REFERENDO CONSULTIVO PARA A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE! O poder constituinte reside intransferivelmente no povo. Qualquer mudança da Constituição Bolivariana deve ser consultada com o poder originário, mediante referendo. Não pode se instalar uma ANC, sem consultar o soberano se o desejo é alterar a carta magna.

AUDITORIA PÚBLICA E CIDADÃ CONTRA A CORRUPÇÃO E A FOME – Desapareceram por desfalque mais de meio trilhão de dólares, quantidade suficiente para assegurar o consumo do povo durante vários anos sem contar com os ativos petroleiros, e portanto, sem importar o preço do petróleo.

AUMENTO IMEDIATO DA IMPORTAÇÃO DE REMÉDIOS E ALIMENTOS – NÃO AO PAGAMENTO DA DÍVIDA EXTERNA! Sacrificar o alimento e a saúde do povo para pagar a dívida aos bancos e organismos financeiros é criminoso. Dívida que não foi gerada pelo povo venezuelano e que grande parte parecia ser ilegítima e ilegal, em seu uso e proveniência, como ocorreu com a Grécia e o Equador, os quais conseguiram por em movimento processos de auditoria. Auditemos a dívida externa venezuelana e determinemos o que é legal!

CALENDÁRIO ELEITORAL (2017-2018) E INSCRIÇÃO ABERTA DE PARTIDOS E CHAPAS – A saída da crise só pode ser alcançada com mais democracia e não com menos. O referendo revogatório foi detido de maneira autoritária e as eleições regionais foram postergadas por fora dos prazos constitucionais. Faz-se urgente o compromisso com um cronograma eleitoral, mas de todas as eleições contempladas para o período 2017-2018, com prazos definidos, além do fim da proscrição de grupos políticos mediante a abertura de inscrição de chapas eleitorais, sem critérios antidemocráticos.

A luta pela justiça social e os direitos democráticos não pertence a um só grupo nem do que lance mais pedras. É de toda a população que se sente parte dela.


1 Quando falamos de “guarimberos” extremistas não nos referimos aos manifestantes que se defendem das agressões ou arremetidas dos corpos da seguridade do Estado em manifestações pacíficas.
2 Ex-deputada de direita que apoiou a tentativa de golpe contra Chávez em 2002.
3 Quando falamos de “coletivos” armados não nos referimos a cidadãos organizados em agrupamentos sociais ou políticos com trabalho comunitário real, honesto e sem intimidação. Cremos que conceitualmente a palavra “coletivo” reflete uma perspectiva ampla e distinta de fazer política, mas a realidade é que hoje o grosso da população utiliza dita denominação para referir-se a grupos socialistas armados e violentos.
4 Cifras do ministério de Saúde corroboram que entre 2015 e 2017, houve um aumento da mortalidade infantil e da mortalidade materna, de 30,12% e 65,78% respectivamente. No mesmo sentido, cifras do INE afirmam que a pobreza extrema aumentou de 6% , no segundo semestre de 2012, a 9,3% para o primeiro semestre de 2015, enquanto que para esse mesmo período a pobreza geral aumentou de 21,2% para 33,1%.


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Pedro Micussi