“Na crise, a velha esquerda mostra suas misérias”

Entrevista realizado pelo portal Aporrea.org com Carlos Carcione. O dirigente de Marea Socialista analisa a grave crise na Venezuela e a necessidade de construir uma saída popular diante da polarização sangrenta.

Carlos Carcione 10 jul 2017, 19:15

Carlos Carcione é jornalista, pesquisador e coordenador da Equipe de Pesquisa do Marea Socialista. Como militante internacionalista reside há uma década na Venezuela, acompanhando a experiência do processo bolivariano. É integrante da equipe da Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição e membro da Plataforma pela Auditoria Pública e Cidadã que luta contra o desfalque à nação. É colunista em vários meios digitais, entre os quais se destacam Aporrea.org, Rebelión.org, Questiondigital.com, MST.org.ar, Portal de la Izquierda, e integra as equipes de investigação do recentemente criado Centro de Estudos da Realidade Latino-americana (CER/Latinoamericana).

Punto de Corte – À raiz da complicada e incerta situação venezuelana abriu-se um debate naquilo que genericamente poderíamos denominar de movimento da esquerda latino-americana e internacional. À medida que a situação do país torna-se mais crítica, pareceriam atuar como referência dois setores mais ou menos claros: um defendendo o governo de Nicolás Maduro e outro questionando-o. Como você vê esta polêmica?

O que se expressa assim jornalisticamente é para mim a simplificação interessada de uma polêmica de fundo. Quero esclarecer que o nosso olhar é a partir de uma localização como parte do processo bolivariano e não somente frente ao governo de Nicolás Maduro. Governo que um querido amigo, Santiago Arconada, batizou acertadamente de “Governo Maduro, Diosdado, Padrino”1. A partir do meu ponto de vista, o que está em jogo nesse debate é a posição quanto ao conteúdo das políticas do governo/PSUV, sua orientação, que setores sociais expressa, que interesses representa e quais as consequências que provocam ao país e à população. E não somente as figuras do governo, os discursos ou a apelação abusiva, excludente, à disputa geopolítica.

Falando de uma perspectiva do que se costuma chamar genericamente de “esquerda”, analisando estes elementos e levando em conta o que mencionei anteriormente e à luz da proposta da Constituinte de Maduro, vemos que há dois setores com este referencial na Venezuela. Grosso modo, por um lado existem as cúpulas do PSUV-Governo-Polo Patriótico e por outro um conjunto de plataformas de luta social e política de caráter amplo e plural como a Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição, a que luta contra o Arco Minerador do Orinoco, reagrupamentos recentes de setores sindicais e de lutas das comunidades, a Plataforma pela Auditoria Pública e Cidadã, Marea Socialista como organização política e partidos do processo bolivariano localizados recentemente neste espaço, como UPP-89, além de destacadas personalidades. As correntes dessa esquerda que descrevo defendem propostas opostas para enfrentar o colapso do atual do modelo rentista petroleiro venezuelano2. Se entendemos isso e se compreendemos quais são as diferenças radicais entre elas, a polêmica torna-se mais transparente. Fica mais nítido o que uns e outros defendem.

Esta localização dentro do processo tem uma importância adicional, porque, por exemplo, Marea Socialista – que no último período saiu do PSUV e mais tarde se definiu primeiro por não se sentir representada nem pelo PSUV nem pela MUD para, posteriormente, se posicionar como oposição de esquerda ao governo de Maduro3 – não renega seu pertencimento ao processo bolivariano, nem tampouco faz isso um grupo de ex-ministros de Chávez4 ou o heterogêneo movimento denominado pelos meios como “chavismo crítico”. Pelo contrário: as críticas, as advertências, as propostas e as políticas que vêm se desenvolvendo tanto por parte de Marea como por estes outros espaços se fazem a partir da defesa consciente, ou seja, crítica dos avanços e/ou conquistas econômicas, sociais e políticas do processo. Entre eles, a Constituição de 99 e outros triunfos que estão sendo atacados ferozmente pelo governo.

Enquanto isso, o setor que nomeamos anteriormente e aqueles que o apoiam do exterior, com o seguidismo incondicional e automático ao presidente, não questionam as políticas que o governo está levando adiante nem a própria Constituinte, expressando – tacitamente, às vezes, e explicitamente em outras – a aprovação dessas políticas.

PC – Poderia esclarecer quais são essas diferenças existentes entre esses dois setores tanto na Venezuela como internacionalmente?

Em termos esquemáticos, essas diferenças giram ao redor do brutal crack econômico que estamos vivendo, do pronunciado retrocesso com fortíssimos traços autoritários do sistema político. Ambos devem se consolidar e aprofundar com a Constituinte e com as contrarreformas tremendamente regressivas nas políticas sociais. Tratarei de sintetizar, brevemente, a que me refiro.

No campo econômico, podem ser vistos dois períodos claros do governo de Nicolás Maduro. Um primeiro momento, de ajuste macroeconômico gradual, que fracassa estrepitosamente. Este momento podemos localizar no tempo entre a desvalorização de fevereiro de 2013, um mês antes da morte de Chávez, e o segundo semestre de 2014, quando foi sancionado um primeiro pacote de Leis Habilitantes, uma tentativa de ajustar o gasto fiscal e de rebaixar investimento social nas Misiones; a redução das importações; redução do nível salarial real, via estímulo do processo inflacionário. Fracassa essa política que tem uma clara tendência regressiva, de contrarreformas econômicas, haja vista que o ajuste recai fundamentalmente sobre as rendas e a possibilidade de acesso a bens básicos das famílias trabalhadoras e dos setores mais despossuídos.

E fracassa entre outras razões porque não só não ataca, como aprofunda o padrão mafioso de acumulação rentista5, que se assenta na fuga delitiva de capitais, por meio de dois mecanismos financeiros fraudulentos: as manobras ilegais com a atribuição dos dólares petroleiros para as importações, para as grandes obras ou grandes contratos ou convênios internacionais; em segundo lugar, o manejo especulativo, ilegítimo, da dívida soberana da nação e da dívida do PDVSA, inclusive da dívida interna, que segundo já se demonstrou é uma dívida externalizável. Os mecanismos deste endividamento, segundo um estudo em profundidade de Oly Millán Campos e Paulino Núñez, com os quais compartilho assento na Plataforma pela Auditoria Pública e Cidadã, levam-na a níveis que estariam na ordem de 80% do PIB. Estes mecanismos tornam tal dívida, como bem insiste Paulino toda vez que pode, numa dívida sobretudo ilegítima e odiosa.

Não obstante todas as advertências sobre isso, o governo paga pontualmente cada vencimento, reduzindo importações, o que está provocando a aguda situação de escassez em alimentos e medicamentos que nos tem colocado à beira da crise humanitária. E comprometendo seriamente o futuro da nação. 6 Ao invés de aceitar a proposta que fizemos de Auditoria Pública e Cidadã a fim de que Maduro emule a atitude de Correa em relação à dívida do Equador, o governo obstina-se a pagar sem nenhum tipo de investigação nem auditoria independente. E já se foram dilapidados desta maneira 60 bilhões de dólares em três anos. Não nos cansaremos de insistir que ele está pagando esta dívida ao custo da fome, literalmente falando, do povo venezuelano, porque o valor destinado para o pagamento da dívida é abatido das importações essenciais.

O segundo período que destacamos começa no final de 2014 com a sanção de uma nova Lei Habilitante que permite ao presidente governar por decreto. Estas leis habilitam a criação de Zonas Econômicas Especiais, onde não vigora a legislação venezuelana. Toma forte impulso a partir da queda dos preços, sobretudo, no início de 2016 com os chamados 15 motores da economia produtiva, apresentados como um plano de superação do rentismo petroleiro, quando o que na realidade fazem é ampliar de maneira colossal a fronteira extrativista e a primarização da economia do país. Do “motor mineiro” com o Arco Minerador do Orinoco, do “motor energético” com a abertura total da faixa petrolífera, passando pelo “motor florestal” e até o “motor turístico”, estão transversalizados por uma política de abertura feroz ao capital transnacional.

Sobre nada disso se pronuncia a velha esquerda que apoia incondicionalmente Nicolás Maduro. Nem explicam por que razão seria necessário este plano, nem se é conveniente, nem tampouco se eles ouviram ou leram algum questionamento sobre o mesmo. Sequer fazem propostas alternativas. Neste terreno predomina o silêncio, um silêncio cúmplice, como se nada disso existisse, como se a realidade estivesse congelada no ano de 2012. A única coisa que falam é sobre a chantagem, a extorsão e a guerra econômica do imperialismo, algo que nós não desconhecemos, mas que não teria nem a décima parte do impacto atual, caso não se apoiasse nesta política de entrega e no padrão mafiosos de acumulação de capital que existem desde muito antes e que o governo Maduro organizou e disparou exponencialmente até chegar aos níveis de saqueio atual do país. Como escreve Oly Millán em seu artigo, “Es la Economía Estúpido…”, a Constituinte tem entre outros objetivos dar suporte jurídico para esse modelo.

PC – Quais são, para você, as contrarreformas nas políticas sociais?

No tocante às políticas sociais, esta esquerda em solidariedade automática com o governo continua utilizando as estatísticas de 2012-2013, as últimas publicadas de maneira completa, fazendo isso de forma global. Essas estatísticas dizem respeito a um país que já não existe. Aferram-se a esses números porque, uma vez reconhecida a realidade atual, grande parte de sua argumentação se desvaneceria. O que realmente sucede é que onde havia mercados populares como Mercal ou PDVDAL, nos quais grande parte da população podia obter alimentos de relativa qualidade a preços subsidiados, hoje apenas existe um sistema de distribuição estatal porta a porta, os CLAP, que até agora regularizou um número muito baixo de famílias que apenas podem ter acesso a essas caixas ou bolsas, uma vez a cada 50 dias. Onde havia um sistema nacional de atenção médica primária, elogiado por todos, os Barrio Adentro, nos quais se realizava diagnósticos, se faziam estudos elementares e até de certa complexidade, se entregavam medicamentos necessários de modo gratuito, hoje há terra arrasada, com equipes inoperantes, sem remédios, sem possibilidade de fazer os mais básicos estudos, com uma infraestrutura sem manutenção à beira do colapso. Onde havia casas de alimentação nas zonas mais vulneráveis, organizadas para que os que necessitavam comer o fizessem sem custo, sustentadas pelo trabalho voluntário e solidário de donas de casa dos bairros, já faz muito tempo que não chegam nem os ingredientes para cozinhar, o que provoca um fenômeno desconhecido na Venezuela Bolivariana: há cada vez mais cidadãos comendo o que se revira do lixo. Uma longa lista de políticas sociais, exitosas durante anos, seguem o mesmo caminho e hoje estão desaparecidas. O mesmo sucede com toda a legislação progressiva, como, por exemplo, a Lei Orgânica do Trabalho. Ficam no papel, que aceita tudo, mas não se aplicam. Para não falar do salário que era um dos melhores na América Latina e já está nos patamares do Haiti. Enquanto isso, o grande capital local e estrangeiro recebe benefícios insultantes de todo o tipo.

Frente a isso, aquela esquerda prefere não ver a realidade, olha para outro lado e repete as velhas estatísticas, os velhos avanços e conquistas, há muito tempo desmentidas pelos quilogramas perdidos pelo que os venezuelanos batizaram de “dieta de Maduro”. O maltrato, a perseguição aos setores mais oprimidos e o ocultamento criminoso de toda a informação impedem hoje que se conheça sequer qual é o orçamento da nação, assunto que se converteu num segredo guardado a sete chaves.

PC – O que você chama de forte tendência autoritária no sistema político?

Faz aproximadamente dois anos que se desenvolve por parte do governo, eu diria como política de Estado, um processo de desmantelamento de direitos e garantias estabelecidos na Constituição de 99. Supressão de direitos políticos e sociais, eliminação em grande parte do território nacional de direitos econômicos e eliminação de soberania. Suspensão, criação de obstáculos e eliminação de eleições sindicais, estudantis, de instituições autônomas, como as universidades, e de cargos políticos como os pleitos regionais para governadores, eliminação efetiva do direito ao Revogatório. Como observa Edgardo Lander numa recente entrevista: “Creio que, depois das eleições parlamentares de 2015, o governo parece assumir que sua continuidade no exercício do poder não é possível nem apelando para a votação popular nem respeitando a Constituição”.

Aqui não vou descrever o crescimento, também exponencial, da violência policial do Estado por fora dos protestos, em relação, por exemplo, à política das OLP 7, operações de limpeza e extermínio da denominada pela imprensa “hampa común”, contra toda norma legal e humana.

Esta tendência autoritária vem de antes e tem um marco importante com as fracassadas resoluções 155 e 156 do TSJ (Tribunal Superior de Justiça) nos finais de março – resoluções que configuraram um mini autogolpe, mas que tiveram de ser “revisadas” pelo rechaço nacional e internacional que provocaram 8. Ela tem-se acelerado desde o momento em que começaram os protestos em abril de 2017. Há dois trabalhos recentes que descrevem e avaliam corretamente a situação em que já foram produzidas 60 mortes no decorrer das manifestações. Mas talvez o símbolo mais contundente do aprofundamento desta tendência é a atuação contra todo tipo de princípio legal de tribunais militares para o julgamento sumário de civis, além da utilização de prédios militares para a detenção desses civis condenados pelos tribunais militares. A Constituinte está desenhada, segundo os objetivos que lhe atribuem os porta-vozes oficiais, para consolidar o autoritarismo.

Vamos insistir neste ponto em que é evidente que existem do lado da MUD setores que aproveitam o clima dos protestos para desenvolver ações foquistas. Estes grupos, que sem dúvida recebem financiamento e até treinamento dos Estados Unidos ou do uribismo, não buscam uma saída democrática nem eleitoral para a crise, mas a liquidação do chavismo. Mas isso, que com certeza repudiamos, de nenhuma maneira pode justificar a eliminação efetiva do direito ao protesto e de direitos humanos elementares, nem muito menos a repressão desproporcional e indiscriminada dos protestos por parte do Estado.

Neste caso, ocorre o mesmo que nos anteriores. Essa esquerda, que responde com mecanismos de alinhamento automático com o governo Maduro, carrega as tintas no papel “terrorista” das ações foquistas e livra a responsabilidade do Estado no tratamento repressivo dado aos protestos. Chegando ao caso extremo de Atilio Borón, sociólogo argentino prestigiado, que num artigo recente aconselha o presidente Maduro a “aplastar” alguns não identificados “terroristas”. Este “aplastar” é um termo que no contexto do artigo pode ser lido como um “extermine”.

Por isso, onde essa velha esquerda exige cerrar fileiras incondicionalmente com uma suposta “direção revolucionária” frente às ameaças imperialistas, nós exigimos a aplicação de políticas claras de ruptura com a dominação do capital financeiro, começando pela suspensão do pagamento da dívida. E denunciamos todas aquelas políticas que consolidam a dependência ao sistema do capital, depredam o ambiente, eliminam a soberania, desmontam as conquistas sociais, econômicas e políticas do processo, consolidam o rumo de capitulação do governo ao imperialismo e abrem as portas a uma ingerência ou intervenção estrangeira ainda superior. Quatro anos depois de iniciado este período já não se pode falar de erros. Ao contrário, para nós, o governo “Maduro, Cabello, Padrino” desenvolve uma política planejada, com a esperança de namorar com esses setores concentrados do grande capital.

À diferença da confusão instalada pelos setores de esquerda que apoiam incondicionalmente Maduro ou que timidamente fazem reclamações parciais e exigem uma mudança limitada de política, nós não depositamos nenhuma confiança nessa cúpula do PSUV/governo e, por isso, estamos empenhados na construção de uma nova referência ou alternativa política anticapitalista, ecologista, feminista, que recupere as chaves democráticas, anti-imperialistas e bolivarianas do Processo e que lute por aprofundá-las.

PC – A Constituinte não seria um canal de saída para a crise? Não poderia deter a escalada de violência e abrir uma rota de diálogo, estabelecendo regras do jogo que todos aceitem?

Antes de responder sua pergunta, é necessário fazer uma caracterização do momento atual. E responder por que, pelo meu ponto de vista, a resolução da crise só pode ser favorável ao país e ao povo que vive do seu trabalho com mais democracia, e não com mais autoritarismo. Mais democracia quer dizer neste momento recuperar a vigência da Constituição de 99. Hoje precisamos optar entre a proposta de Constituinte fraudulenta de Maduro e a guerra civil/esmagamento que propõe Borón – sabendo que estas duas opções buscam o estabelecimento de um sistema autoritário para poder consolidar o modelo de entrega que venho apontando – ou pelo oposto, a recuperação da vigência da Constituição de 99, a realização das eleições regionais e municipais com um claro cronograma para a eleição presidencial, tudo isso com plenas garantias de participação política para todas as expressões do pensamento político nacional, sem exclusões nem proscrições.

Creio também importante fazer outra definição. A caracterização da atual confrontação entre as cúpulas, diferentemente do período 2002-2003, contra aquilo que sustenta a cúpula do governo, repetindo e adornando com rios de tinta os intelectuais que respaldam Maduro fora do país, não é uma luta entre os setores populares contra os oligárquicos. Ao contrário, é uma luta por definir qual das cúpulas se garante no próximo período no controle do Estado para administrar e distribuir a renda. São dois setores das elites, um tradicional e outro emergente, subordinados ao capital financeiro internacional. E nenhum dos dois setores é democrático, ambos têm claro que necessitam um sistema político completamente autoritário para conseguir aplicar a contrarrevolução econômica em curso e as contrarreformas que acabam com os avanços políticos e sociais alcançados, com todas suas deficiências e limitações, no período de Chávez. Porque como disse a companheira Oly Millán no artigo que citei antes: “Mas também, essa história petroleira tem outra característica muito sui generis – em cada processo de boom petroleiro, produz-se um reacomodamento dos grupos de poder, ou seja, alguns caem em desgraça, enquanto outros se fortalecem e novos emergem”. Hoje, no declínio do boom petroleiro e num momento de colapso do modelo, há uma guerra de rapina entre estes dois setores das elites.

Neste contexto, outro objetivo da Constituinte é que a cúpula hoje no controle do poder estatal – ameaçada de perder todos seus privilégios, como castigo pela política antipopular e antinacional que vem aplicando nos últimos quatro anos – tenta retê-lo por intermédio de uma nova assembleia constituinte, cuja convocatória é espúria e suas bases comiciais são claramente ardilosas, sem necessidade de revalidar seu mandato em nenhuma eleição universal, na qual, sem dúvida, conforme todas as pesquisas, sairia derrotada.

Nestas condições, a Constituinte não é uma arma de Paz, como diz a cúpula PSUV/governo, mas ao contrário é a arma com a qual se pretende construir um regime autoritário. As eleições regionais oferecidas para dezembro ou o próprio referendo que indicou que Maduro requereria uma nova Constituição são apenas a máscara para maquiar de falsa amplitude democrático um embuste. Uma vez não sendo arma da paz, o enorme perigo que encerra ao ser realizada é que termine se transformando em alavanca com a qual a atual escalada de violência polarizada pelas cúpulas – da nova elite que controla o Estado e a antiga elite que se crê pronta para recuperar esse controle – abra a porta para um conflito civil de consequências imprevisíveis.

Contudo, a convocatória abriu outra porta, inesperada pela cúpula do PSUV, pela qual se começou a expressar com força o rechaço de uma parte importante do chavismo. Militantes, deputados e dirigentes médios do partido, funcionários atuais, ex-funcionários, intelectuais e acadêmicos (e muitas informações assinalam que até uma parte substantiva das forças armadas) rechaçam com sólidos argumentos a manobra antidemocrática. Com este setor coincidimos num ponto essencial: o único caminho democrático, e que portanto não pode ser sequestrado pelas cúpulas que instigam a violência, é a luta pela recuperação da vigência da Constituição de 99. Nisso estamos, enquanto a velha esquerda, em sua decadência, com sua alienação e disciplina automática – com um governo que rompeu com o processo que o levou até ali – segue mostrando ao mundo todas as suas misérias.

(Entrevista realizada pelo Aporrea.org e originalmente publicada em https://www.aporrea.org/ddhh/n309525.html)


1 Nicolás Maduro, presidente; Diosdado Cabello, deputado, primeiro vice-presidente do PSUV e cabeça do segundo grupo de poder mais importante deste trio; Vladimir Padrino, ministro da Defesa e chefe da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB).
2 É bom esclarecer que estes dois setores com todos os matizes e diferenças em cada um deles não são apenas nacionais. Eles têm também expressão internacional.
3 Para deixar taxativamente estabelecido que não tem nada a ver com a oposição de direita organizada na MUD.
As personalidades mais destacadas deste grupo são, entre outros, Héctor Navarro, ex-ministro de Educação e de Energia Elétrica; Olly Millán Campos, ex-ministra de Economia Popular, de Comunas e Movimentos Sociais; Gustavo Márquez Marín, ex-ministro do Comércio Internacional e ex-embaixador na Colômbia; Ana Elisa Osorio, ex-ministra do Meio Ambiente. Além deles, outras destacadas personalidades como o major-general Cliver Alcalá Cordones, os professores Edgardo Lander, Esteban Emilio Mosonyi e Freddy Gutiérrez Trejo, e lutadores sociais como Santiago Arconada.
5 Este padrão que se inicia com a exploração petroleira cruzou todo o período de governo do processo bolivariano e não foi desmontado até a atualidade.
6 Ultimamente, hipotecou-se o capital acionário de CITGO, subsidiária da PDVSA nos Estados Unidos, empresa que conta com refinarias aptas para o cru pesado venezuelano e uma rede de 17000 bombas de gasolina, cerca de 49% como garantia para um empréstimo de um Fundo Abutre e com a petroleira russa russa Rosneft, outro 50%. Esta operação foi realizada para obter liquidez a fim de pagar a dívida. E a chave de ouro, por ora, é a venda, a preço de banana, por parte do BCV de bônus da PDVSA, que não estavam no circuito financeiro internacional, para a Goldman Sachs, banco do qual foi executivo o atual Secretário de Tesouro de Trump.
7 OLP. (Operação de Libertação do Povo), política policial que consta de entrada nas zonas das grandes cidades para deter, reprimir e até assassinar, sem nenhum tipo de respeito pelas garantias constitucionais e legais mínimas.
8 O fato mais destacado deste rechaço foi a declaração da Procuradora-Geral da República, Luisa Ortega Díaz, assinalando que essas Resoluções rompiam o fio constitucional.


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Pedro Micussi