Revolução Russa, Educação e pedagogia marxista

A partir da experiência soviética na educação, podem-se extrair lições para as lutas em curso dos movimentos docente e estudantil bem como refletir sobre uma questão fundamental: qual educação o socialismo pode produzir?

Maycon Bezerra 10 jul 2017, 19:13

As lutas pela educação pública no Brasil e seu lugar na política socialista

Refletir em defesa da educação pública no centenário da Revolução Russa nos obriga a tomar em consideração a experiência revolucionária na educação e na pedagogia, assim como na cultura em geral, produzida sob o poder operário e popular dos sovietes e do partido bolchevique, a partir de 1917, naquele país. Hoje, mais do que nunca, a ordem capitalista em franca decadência apresenta enormes sinais de morbidez no tocante à totalidade da vida social. Os retrocessos civilizatórios impostos pelo capital, nessa nova etapa histórica de crise da globalização neoliberal, são evidentes e se avolumam por toda parte. Guerras, massacres e genocídios são o ponto culminante de uma “nova normalidade” constituída pela agressiva e acelerada espoliação imperialista dos recursos naturais e do fundo público dos diferentes países e povos do mundo, bem como da intensificação da exploração do trabalho, por toda a parte, crescentemente privado de garantias e proteções legais. O capitalismo internacional segue se degenerando – sob a tutela e direção da alta finança – em uma forma “pós-moderna” de rentismo parasitário, obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas e incapaz de apontar para a superação da longa estagnação econômica mundial.

Nesse contexto de crise, a “contrarrevolução econômica permanente” se consolida como a única alternativa para o capital, o que o leva a um choque frontal contra os interesses e necessidades das demais classes da sociedade, sobretudo contra os trabalhadores e trabalhadoras mais vulneráveis da periferia capitalista, mas também dos grandes bolsões de pobreza e subcidadania dos países centrais. Sob a intransigência exclusivista dos interesses dominantes, os regimes políticos burgueses se tornam rígidos, impermeáveis às mais elementares reivindicações e exigências das camadas populares da sociedade. O resultado inevitável é a eclosão de uma poderosa crise de legitimidade desses regimes, que passam a ser questionados por fortes mobilizações de massa, com nítidos contornos revolucionários, de norte a sul do planeta. Os levantes populares e a política das ruas, que clamam por direitos fundamentais e por democracia efetiva, se instalam no centro do momento histórico. No entanto, por ora, se estabelece um impasse. Nem a oligarquia financeira dominante é capaz de criar as condições para o esmagamento contrarrevolucionário do movimento de massa, por um lado, nem esse movimento de massa é capaz de afirmar uma clara alternativa de poder, democrático radical e anticapitalista, capaz de suplantar a classe dominante e seu regime político. Trata-se de uma guerra de trincheiras, parafraseando Gramsci, na qual os dois campos beligerantes disputam entre si cada palmo de terreno. Nesse momento, o inimigo de classe está com a iniciativa. Cabe à classe trabalhadora (e seus aliados) barrar a ofensiva burguesa, reagrupando suas forças e preparando, no calor mesmo do combate, as condições para uma contraofensiva. A isso nos lançamos.

No que se refere especificamente ao que se passa no campo da cultura e da educação, a decadência capitalista segue produzindo a proliferação de todo tipo de irracionalismo e obscurantismo fundamentalista. A crise do racionalismo burguês, combinada com a permanente e onipresente campanha de propaganda antissocialista e antimarxista na mídia, nas igrejas, no mundo intelectual e artístico hegemonizados pela burguesia, abre uma avenida para o avanço dos novos e velhos fundamentalismos teocráticos, étnicos e raciais que envenenam a atmosfera cultural do mundo contemporâneo, embalando o ressentimento de classes médias pauperizadas e outros setores de massa atirados no desespero. Importante destacar o papel do relativismo extremista e irracionalista de algumas correntes intelectuais do “pós-modernismo” na pavimentação dessa estrada por onde rolam os pesados tanques de guerra do obscurantismo reacionário atual. Em sua cruzada contra o materialismo dialético, os “iconoclásticos” detratores da ideia de verdade desmoralizaram a crítica autêntica, enquanto prática, e produziram os escombros com os quais se erguem os sombrios monumentos à ignorância e à barbárie que se espalham pelo mundo.

A educação escolar, por sua vez, se encontra tragada por um processo violento de precarização e mercantilização. Ao clássico dualismo educacional do mundo burguês – que promove e sofistica cada vez mais as escolas dos filhos da classe dominante e alta classe média, enquanto afoga na miséria as escolas dos filhos da classe trabalhadora – são acrescentados e/ou fortalecidos novos elementos de censura e perseguição ideológica, religiosa e étnico-racial. Trata-se de um fenômeno internacional: assim, na consolidação avassaladora da educação confessional e fundamentalista no mundo árabe, como na reacionária “escola sem partido” do Brasil, ou mesmo na “republicana e laica” estigmatização e discriminação das estudantes islâmicas nas escolas da França ou da Dinamarca. Esses ataques e restrições do direito à educação e à liberdade de ensino e aprendizado refletem nesse campo, a intensidade da mobilização dos setores mais reacionários da burguesia e das altas classes médias, bem como dos setores populares por eles dirigidos, na correlação das forças sociais como um todo. Mobilização que se dá em torno de uma agenda reacionária e embalada por ideologias obscurantistas de diferentes matizes, voltada a impor sua hegemonia nesse aparato formidável de formação cultural e ideológica, que é o sistema de educação escolar e universitário.

Ao rentismo predatório somente interessa o curto prazo. Não há espaço, sob sua direção, para projetos civilizatórios de longo alcance, como foi possível fazer avançar – em alguma medida – no contexto do “capitalismo regulado” do Welfare State, na Europa e EUA. Sendo assim, não se pode esperar nenhum compromisso sério da classe dominante com um projeto minimamente democrático de educação para as maiorias populares: mesmo nos limites da ordem do capital, da mercadoria e da propriedade privada. As escolas e universidades, com uma significativa desigualdade de ritmo e intensidade entre países e regiões, vão sendo convertidas em espaços para a acelerada valorização do capital ou abandonadas à própria sorte e ao sucateamento. Não há futuro para uma educação pública sob os regimes oligarquizados da burguesia decadente.

Há, no entanto, resistência por toda parte! Como no Brasil, há dinâmica também nas bases da sociedade, o que incide diretamente sobre o campo da educação. A juventude, sobretudo a juventude da classe trabalhadora, tem sido o setor mais mobilizado e combativo do povo brasileiro, expressando sua radicalidade política e social, por dentro e por fora das escolas e universidades. Lá, vem produzindo um movimento estudantil massivo e muito avançado, que protagonizou uma das maiores jornadas de luta estudantil da história, com mais de mil escolas e campi universitários ocupados e autodirigidos, por todo o país. Ao mesmo tempo, diante da precarização das condições de trabalho, carreira e salário – chegando-se ao extremo do confisco salarial por meses seguidos – os trabalhadores da educação pública assumem uma posição de vanguarda no movimento sindical, estando praticamente em mobilização permanente. A internacional efervescência de indignação democrática dos setores populares se faz sentir com muita força no tema do direito a uma educação pública, gratuita, democrática e emancipatória para todos e todas. No Chile, na França, na África do Sul, EUA e no Brasil, essa é uma reivindicação popular de primeira grandeza. Que se choca frontalmente contra a lógica privatista e mercantil que o grande capital incorporou, através dos regimes políticos que dirige, como sua única alternativa de política educacional e de pedagogia.

Dessa maneira, a demanda por educação popular, no sentido mais amplo do termo, expressa de modo concreto nas lutas em defesa da educação pública no mundo todo, no contexto da atual degeneração rentista do capitalismo e da degeneração oligárquica dos regimes políticos da burguesia, se converte em uma demanda de teor explosivamente subversivo, em função de sua cada vez mais radical incompatibilidade com a ordem imposta pela dominação tirânica do capital-dinheiro. O nível de combatividade e massificação das lutas por educação pública e democrática como direito universal, bem como o nível de repressão a elas imposta pelos de cima – de um lado – e o protagonismo juvenil com seus métodos revolucionários de combate, como as ocupações autodirigidas de escolas e universidades – de outro lado –, põem na ordem do dia o enfrentamento total contra a pedagogia do capital e a necessidade de lhe impor uma crítica radical como ponto de partida da afirmação de uma outra perspectiva, antagônica, assentada nos interesses do povo trabalhador e da juventude. Estamos diante da necessidade de uma reflexão revolucionária sobre uma outra política educacional, mais ainda, outra pedagogia, capaz de expressar a efervescência rebelde das lutas de educadores e estudantes progressistas e democráticos em todo o mundo e no Brasil também. É essa necessidade que impõe a relevância atual da experiência histórica da Revolução Russa no campo da educação e da pedagogia, como horizonte de referência concreto, com seus êxitos e recuos, com sua experimentação prática em um momento quente da história, como marco na elaboração teórico prática de uma pedagogia marxista voltada a inserir a educação, de modo vivo e real, na trama de emancipação humana pela revolução e pelo socialismo.

Experiência revolucionária na educação da Rússia soviética

A Revolução Russa de 1917 demoliu os pilares da velha estrutura de poder absolutista e latifundiário-capitalista do império dos Romanov, afirmando a soberania insurreta do poder operário e popular dos sovietes e virando a ordem estabelecida do avesso. Contra a miséria, a fome e a carnificina imposta pelos de cima na I Guerra Mundial, a classe operária aliada aos soldados e ao campesinato russo empreenderam uma dura marcha para a construção de um outro poder e uma outra sociedade, sobre os escombros daquela que iam revolucionando com sua iniciativa. Aqueles que tinham sido sempre apresentados como pouco mais que instrumentos de trabalho destituídos de capacidade dirigente, em séculos de pensamento filosófico atrelado à condição privilegiada das classes dominantes, agora assumiam em suas mãos os destinos da Rússia e disparavam o toque de clarim que convocava os trabalhadores e trabalhadoras do mundo todo à luta revolucionária pelo poder e pela transformação profunda e radical da ordem existente. Sob a direção de um partido revolucionário, firmemente enraizado na vida e nas lutas da classe operária e solidamente assentado sobre um marxismo vivo, dinâmico e revolucionário, refratário a todo dogmatismo e esquematismo (como deve ser todo marxismo digno desse nome), as massas trabalhadoras russas abriram um capítulo decisivo na história da humanidade: a etapa histórica que coloca a revolução socialista como horizonte concreto de superação das contradições cada vez mais monstruosas da ordem capitalista.

Certamente que os poderes do mundo capitalista, dentro e fora da Rússia, não poderiam testemunhar passivamente tamanha ousadia e tamanha ameaça a suas prerrogativas e a seus privilégios. À guerra civil contrarrevolucionária impulsionada de dentro, pelos generais czaristas e forças ligadas à velha ordem, se somou a intervenção militar contrarrevolucionária de 14 potências estrangeiras. Entre 1918 e 1921, o poder dos sovietes, sob a direção do partido bolchevique, teve de enfrentar a colossal tarefa de fazer a defesa da revolução, reconstruir a economia e a vida social sobre novas bases, e, ao mesmo tempo, combater o gigantismo das forças contrarrevolucionárias combinadas. Inevitavelmente, essa última tarefa era condição das demais e assumiu centralidade, imprimindo sua marca tanto na forma assumida pela reconstrução quanto na forma assumida pela defesa da revolução. Esse período se conclui com a vitória militar do poder soviético, mas esse terá que lidar com um legado de imensa destruição material, desagregação social, desamparo, miséria e fome; além de uma mortandade de vários milhões de homens, mulheres e crianças do povo russo. É sobre essas bases que terá de ser realizada a defesa da revolução e, sobretudo, a imensa tarefa de reconstrução – sobre novos fundamentos – da vida comum.

No plano dessa reconstrução em condições duríssimas, a tarefa específica no campo da educação se apresentava como um desafio enorme. Tratava-se não apenas de reconstruir o que havia sido destruído pela guerra civil, mas de construir, pela primeira vez naquele país, um vasto sistema de escolas e demais instituições educativas capazes de atender as necessidades da massa do povo russo, em todo seu enorme território. No entanto, como agravante desse desafio, essas escolas não seriam, porque não deveriam mesmo ser, uma mera reprodução da escola burguesa dos países capitalistas. A revolução estava assentando os pilares de uma nova sociedade, na qual a imensa maioria de trabalhadores assumiria, de modo direto e cada vez mais firme e protagonista, a tarefa de construir e conduzir a vida coletiva, a nova ordem social, pela trilha em direção à emancipação humana. Por certo, essa nova sociedade que se ia construindo exigia uma nova escola, baseada em uma nova pedagogia, vinculada a um novo objetivo histórico. A velha cultura da Rússia czarista, como um todo, estava submetida à pesada carga de artilharia ideológica das forças revolucionárias.

Sacudida pela ação protagonista das mulheres revolucionárias, tendo as operárias à frente, a tradicional família patriarcal russa começava a perder sustentação material e cultural: abriam-se creches, refeitórios e lavanderias públicas para socializar o trabalho até então reservado às mulheres no âmbito da reprodução da força de trabalho, na esfera doméstica. O divórcio e o aborto foram legalizados, o que demonstra o quão profundo foi – nesse primeiro momento – o poder soviético em matéria de revolução cultural, apesar de todas as incalculáveis dificuldades. Juntamente com a cultura do mandonismo autoritário dos grandes latifundiários e patrões contra as massas trabalhadoras, o chauvinismo nacional grão-russo também se encontrava sob pesado questionamento e sofria severa crítica por parte das nacionalidades até então oprimidas sob o czarismo, e que agora impulsionavam (em ritmos e intensidades desiguais) um florescimento cultural autônomo e revolucionário. Essa nova cultura democrática e emancipatória que o próprio processo revolucionário ia forjando, como uma necessidade vital para a própria defesa da revolução e para a reconstrução social a partir do protagonismo operário e popular, precisava fazer derreter a imensa geleira do analfabetismo, da ignorância e do conservadorismo tradicional que mantinha as amplas massas do povo russo, sobretudo na zona rural, em um atraso cultural profundo. Superar essa situação foi a tarefa assumida por um importante grupo de pedagogas e pedagogos revolucionários, reunidos em torno do Comissariado Nacional da Educação (CNE) do poder soviético, para impulsionar a reconstrução da educação na Rússia revolucionária. Ali estavam nomes como Lunacharskiy, Lepeshinskiy, Pistrak e Nadezhda Krupskaia, companheira de Lênin.

A obra de construção de um sistema educacional integrado e efetivo no país, sobre as bases de uma pedagogia revolucionária e marxista, precisava lidar com imensos desafios. Desde um primeiro momento, se estabeleceu a oposição do conservador sindicato dos professores da Rússia contra o poder revolucionário dos trabalhadores. A greve e a sabotagem da parcela reacionária do magistério, bastante significativa, contra o governo soviético e contra a reestruturação do sistema educacional, operava como um pesado obstáculo. Como pano de fundo geral, é possível apontar também a profunda destruição e precariedade material, a violência e os horrores da guerra civil, bem como a legião de milhões de crianças e adolescentes órfãos da guerra e da fome, necessitados de assistência, amparo e educação, que constituíam em conjunto um quadro de dificuldades inauditas para a tarefa dos pedagogos revolucionários do Comissariado Nacional de Educação. De 1917 a 1923, o centro de sua tarefa foi uma obra de destruição: a destruição da velha escola czarista, autoritária, religiosa, verbalista e imprestável para as novas necessidades dos trabalhadores e trabalhadoras da Rússia. Quebrar a resistência do magistério reacionário, banir a religião do ambiente escolar, eliminar a segregação sexista entre os estudantes, superar os métodos coercitivos e autoritários de ensino, desfazer-se da ideologia reacionária expressa nos materiais e no currículo da escola: aí esteve o centro da intervenção da pedagogia marxista instalada no comando do CNE, nessa etapa do processo revolucionário, utilizando-se das contribuições mais avançadas da pedagogia burguesa progressista de Dewey para dinamitar as bases extremamente anacrônicas da escola russa do czarismo.

Ao mesmo tempo, se iniciava também o trabalho de construção da nova escola socialista lado a lado com a proliferação de centros e instituições de instrução extraescolar, especialmente voltadas aos trabalhadores, soldados e camponeses em idade adulta. O método de construção dessa nova escola socialista teria de ser, como exige uma concepção científica de pedagogia, o método experimental. E assim foi feito. A incrivelmente desafiadora tarefa de dar vida, a partir dos escombros da escola czarista, a uma escola cuja função, estrutura e metodologia estivesse condicionada pela necessidade de fortalecer o poder operário e popular e, mais ainda, construir a nova economia e a nova ordem social da Rússia soviética, se constituía em algo não apenas inédito como também, nas condições do país, de êxito pouco provável. Os mais importantes nomes da pedagogia revolucionária e marxista russa se engajaram com todo empenho nessa tarefa. Em 1918, na I Sessão dos Professores Internacionalistas, o CNE anunciou a criação da rede das Escolas Experimentais Demonstrativas, dentre elas, as escolas-comunas, de tipo internato, sobre cuja experiência existe mais farta documentação. O objetivo dessa rede de escolas experimentais era permitir que a prática coletiva dos educadores, juntamente com os estudantes, e sob a orientação dos organismos competentes do CNE, pudesse ir forjando a natureza e os métodos dessa nova escola socialista, com o acompanhamento permanente e a supervisão científica do próprio CNE. Esse período de experimentação foi planejado para se estender de 1918 a 1925, quando então a nova concepção assim elaborada, seria implementada na rede escolar de massa.

A experimentação pedagógica, no entanto, não partia da estaca zero, nem da aleatoriedade espontânea. Havia um princípio geral orientador dessa prática experimental, expressa na diretriz elaborada pelo CNE que afirmou a “escola única do trabalho”, fundada na politecnia, como a base geral da escola pública soviética. Essa concepção buscava superar o dualismo escolar do mundo burguês, reflexo concreto da separação entre teoria e prática, planejamento e execução, trabalho intelectual e trabalho manual. Voltado a garantir a perpetuação da condição dirigente das novas gerações de burgueses e pequeno-burgueses a seu serviço, e a perpetuação da condição subalterna das novas gerações nascidas na classe trabalhadora. Assim, em contraposição a essa estrutura básica do projeto educativo da burguesia, o poder soviético, através do CNE, afirmava a escola única do trabalho como base da concepção oficial de educação escolar do novo regime. Com essa perspectiva se buscava integrar a socialização do patrimônio de saberes, acumulados historicamente pela humanidade, o desenvolvimento de uma concepção científica e materialista da realidade entre os estudantes, o aprofundamento da sua sensibilidade e experiência estéticas, assim como a inserção qualificada dos jovens no mundo da produção material, tanto pela prática quanto pela compreensão teórica de seus fundamentos. Por certo, nos marcos da construção de uma sociedade socialista dirigida pela classe trabalhadora, cuja tarefa mais elementar consistia em reconstruir, organizar e dirigir coletivamente a produção social, o centro dessa nova escola era o trabalho: tanto como princípio prático integrador de suas diferentes dimensões educativas quanto do ponto de vista de seu princípio educativo teórico geral.

Esse princípio geral da escola única do trabalho orientou a organização pedagógica das Escolas Experimentais Demonstrativas. No entanto, esse princípio não pressupunha a uniformidade das escolas e de sua prática educativa, longe disso. Havia, a princípio, dois grandes grupos de escolas desse tipo, as urbanas (voltadas aos filhos da classe operária) e as rurais (voltadas aos filhos do campesinato), divididas em função da natureza do trabalho que as centralizavam. Nessas escolas, a formação politécnica, a imersão crítica na “atualidade” e a prática da autodireção deviam formar o tripé do processo educativo das crianças e adolescentes. Ou seja: a) a articulação do aprendizado da natureza e da sociedade pela mediação do trabalho, enquanto prática concreta (como trabalho socialmente útil) e como princípio teórico central; b) a incorporação do processo educativo dos estudantes ao processo social abrangente, ou melhor, à luta dos trabalhadores em defesa do poder soviético e à construção socialista; e c) a participação direta e protagonista do corpo estudantil na organização e gestão coletiva das escolas, em todas as suas dimensões. Assim foi feito, e apesar de inúmeras dificuldades postas pela situação geral do país, consumido pela guerra civil e seu rastro de destruição e morte, as escolas experimentais levaram à prática essa orientação, com níveis de êxito muito desiguais. A partir delas, o CNE elaborou um conjunto de programas a serem levados às escolas de massa, o que abriu um novo momento nessa experiência revolucionária no campo da educação e da pedagogia na Rússia soviética.

A partir da metade dos anos 20, ficou explícita toda a dificuldade de levar a cabo uma revolução educacional tão profunda em um ambiente de precariedade material imensa, de insuficiente preparo dos profissionais da educação e de um desenvolvimento muito incipiente da reflexão e da prática de uma pedagogia marxista, que precisou se constituir nas difíceis condições de uma guerra civil. No que se refere à imersão dos estudantes na “atualidade” e à participação ativa e protagonista do corpo estudantil na manutenção, aprimoramento e direção das escolas, o balanço foi, em geral, positivo pelos seus resultados. No entanto, a metodologia de ensino que abdicou – em parte ou no todo – da sistematicidade dos conteúdos e temas tal como organizados nos marcos das disciplinas escolares enfrentou um balanço bastante negativo. As crianças e jovens (em grande medida) não puderam se apropriar, naquelas circunstâncias, dos saberes elementares das grandes áreas do conhecimento humano através da escola. Quando a escola era basicamente a única fonte de cultura letrada das crianças e jovens das classes populares, a perda relativa da importância de sua socialização metódica e sistemática no ambiente escolar, não necessariamente pela natureza do princípio pedagógico que orientou essa tendência, mas pelas condições gerais de sua aplicação, não possibilitava a formação de um ambiente cultural minimamente letrado e cientificamente educado entre as massas. Requisito indispensável para o avanço da industrialização e para a reconstrução socialista da economia.

Em resposta ao resultado negativo dos primeiros anos da nova metodologia escolar, nos anos finais da década de 20, se deu um aprofundamento radical justamente da tendência pedagógica responsável pela fragmentação e dispersão dos conteúdos do ensino na metodologia dos projetos, inspirada na pedagogia burguesa mais avançada, dos métodos “ativos”, nos países capitalistas desenvolvidos. Era o contexto da afirmação de Stálin, da coletivização forçada dos campos e da política internacional sectária e ultraesquerdista do “terceiro período”; quando um ambiente ideológico extremado era politicamente funcional à burocracia dirigente – que afirmava chegada a hora da política de “classe contra classe”, no sentido do “colapso revolucionário do capitalismo mundial”. No interior do debate educacional, a radicalização do desmonte das disciplinas escolares era defendida como parte do processo mais profundo de superação da educação escolar, como um todo, nos marcos do que se compreendia como o “aprofundamento do socialismo” (no interior) e a “ofensiva revolucionária mundial” (no exterior). Em consequência, fortaleceram-se as divergências entre os pedagogos soviéticos e, em 1931, a direção do Estado silenciou os altos decibéis do debate, lançando uma reforma educativa que pôs fim ao período experimental da educação e da pedagogia soviéticas, impondo unilateralmente o recuo à pedagogia tradicional da escola burguesa, suprimindo as novas metodologias de ensino, assim como as experiências de protagonismo coletivo infantil e juvenil e de autodireção da comunidade escolar. Ao longo dessa década, especialmente a partir dos expurgos de 1937, Stálin e sua camarilha burocrática eliminam a quase totalidade dessa geração pioneira de pedagogos revolucionários, assim como o que havia sobrado da vanguarda bolchevique e as patentes superiores do Exército Vermelho. A experiência revolucionária russa, como um todo, dava vários passos para trás.

Lênin e a pedagogia marxista

Lênin teve também um papel determinante no estabelecimento dos fundamentos da pedagogia soviética. Como uma pedagogia marxista, devia estar rente à dinâmica e às necessidades da luta de classe do proletariado contra a burguesia e sua dominação, pela construção e consolidação do poder operário e popular e pela edificação da economia e da sociedade socialistas no sentido da autoemancipação dos trabalhadores e da humanidade. Dessa maneira, longe de oferecer qualquer esquema educativo rígido e fechado, uma pedagogia marxista deveria ser capaz de colocar o tema da educação em uma interação viva com a luta de classe dos trabalhadores, em suas cambiantes condições. A escola única do trabalho, de natureza politécnica, emerge como meta da reconstrução educacional revolucionária, mas não como modelo abstrato a ser imposto dogmaticamente, sem se levar em consideração o conjunto das condições e possibilidades objetivamente disponíveis. A crítica leninista à tradicional escola burguesa, com seu autoritarismo verbalista e excludente, se fez sempre acompanhar por sua crítica a todo rechaço “principista” a se valer do que havia de utilizável em seu repertório organizacional e pedagógico para a causa da emancipação do proletariado. Assim como na complexa reconstrução e organização da economia, a pedagogia soviética deveria ter a flexibilidade e a agilidade necessárias para reconstruir o sistema educativo sempre em íntima articulação com as condições gerais da luta de classe do proletariado.

Até o final de sua vida, Lênin esteve fortemente preocupado com as tarefas gerais da industrialização da economia soviética, da afirmação protagonista das massas trabalhadoras na reconstrução geral da vida econômica e social do país e com a necessidade de conter a expansão do fenômeno burocrático na União Soviética. Todas essas questões apenas poderiam ser adequadamente resolvidas em conjunto, de modo combinado, e para tanto a elevação do nível cultural geral das massas se impunha como uma necessidade inadiável. O letramento elementar, a alfabetização científica, e alguma qualificação técnica das massas respondiam às necessidades mais imediatas da reconstrução da indústria; mas a formação de uma classe trabalhadora culta, capaz de assumir a tarefa de construção do socialismo e liderar a revolução mundial contra o imperialismo, ou seja, a formação de uma classe trabalhadora consequentemente comunista exigia que a educação soviética estivesse à altura de garantir a socialização pedagógica do patrimônio de saberes produzidos e acumulados pela humanidade, em seus diferentes momentos históricos. Uma educação comunista de massa, materialista e dialética, deveria ser formada não através da memorização e repetição de palavras de ordem comunistas, mas sim através do ensino e da apropriação das premissas e bases da consciência comunista – instaladas no grande acervo das principais áreas do conhecimento humano –, assim como através da inserção político-pedagógica da escola na luta de classe de proletariado e do aprendizado prático da autodireção coletiva, por parte da juventude.

Dessa maneira, Lênin se opunha de modo frontal aos defensores do Proletkult, movimento político cultural que advogava pela abolição imediata da cultura burguesa e pelo erguimento imediato de uma cultura proletária nova, absolutamente desligada da cultura burguesa. No campo da educação, essa corrente aparecia defendendo a dissolução das disciplinas escolares e da própria escola, como instituição, em nome de uma educação pelo trabalho, fundamentalmente como prática. A exaltação do conhecimento prático extraído da experiência imediata e do senso comum popular em contraposição aos conteúdos sistemáticos da ciência, da filosofia e das técnicas ensinadas pelos professores nas escolas também estava presente nas formulações dos intelectuais do Proletkult. Lênin, ao contrário, afirmava que uma cultura proletária teria de se constituir a partir da superação da cultura burguesa – superação enquanto incorporação e crítica – não a partir de sua abolição arbitrária. Do mesmo modo que o marxismo não se constituiu negando ou recusando, mas superando, o pensamento burguês. A formação de uma cultura proletária entre as massas revolucionárias russas dependia da assimilação crítica dos saberes legados pelas diferentes etapas históricas da dominação do ser humano pelo ser humano, incluindo sua última etapa anterior, burguesa.

A educação, nos marcos dessa pedagogia marxista, é compreendida como um processo social abrangente. A fábrica educa, a luta educa, a guerra educa. A escola também educa. Ocupa um papel fundamental enquanto agência formativa. E educa não apenas pelos conteúdos que ensina, mas pela forma como organiza o espaço e as pessoas, pelas normas de comportamento, pelos lugares reservados aos adultos, às crianças e aos jovens no interior de uma estrutura de poder determinada. Educar a jovem geração construtora do socialismo exigia incorporar também ao processo educativo a afirmação do protagonismo participativo efetivo dos estudantes na direção da vida integral da escola. Mais do que isso, exigia articular a autodireção coletiva do corpo estudantil das escolas com o movimento organizado da juventude revolucionária de todo o país (a União das Juventudes Comunistas da Rússia, no caso) e com a solução dos problemas práticos e reais da construção do socialismo: como a construção de hortas comunitárias nos bairros e subúrbios das cidades assoladas pela fome, ou a alfabetização intinerante de jovens e adultos nas zonas rurais, por exemplo. As escolas dirigidas por assembleias com ampla maioria estudantil, com crianças e adolescentes assumindo tarefas e responsabilidades reais relativas ao funcionamento de instituições educativas bastante integradas ao seu entorno, correspondiam bem ao aspecto dinâmico do caráter formativo da educação soviética, sob a perspectiva de Lênin.

Sendo seu objetivo a formação da juventude para a tarefa de construção socialista, a discussão sobre a pertinência ou não da escola como instituição formativa especial deveria ser abordada sob o enfoque das condições gerais e necessidades postas para a realização dessa tarefa, não sob qualquer espécie de enfoque abstrato e “principista”. As escolas, como os tribunais, os hospitais e os exércitos, são instituições que precedem historicamente a época da construção socialista, mas desvencilhar-se arbitrariamente de todas elas, sem que as condições concretas para sua superação histórica, estivessem colocadas, significaria desarmar o proletariado em sua luta revolucionária e emancipatória. Lênin, à frente do Estado soviético, foi um campeão da flexibilidade tática. Na reconstrução da economia soube apontar no sentido de sair do “comunismo de guerra” para a NEP, reforçando temporariamente o papel do capital privado como forma de responder às necessidades imediatas do abastecimento da população, ao final da guerra civil, e de impedir o colapso produtivo geral que, além do mais, abriria as portas para a contrarrevolução. Dessa forma, fica claro que a exigência de supressão imediata da escola, por sua condição de instituição oriunda das velhas sociedades de classe, não correspondia em nenhuma medida à forma de Lênin considerar o problema educativo da Rússia revolucionária. A revolução precisava se expressar na escola – em sua forma, estrutura e métodos – assim como, por exemplo, na fábrica ou no Exército. Mas sua diluição apenas estaria colocada na ordem do dia, se tivesse se tornado historicamente obsoleta, o que em nenhum momento refletiu a situação russa até o início dos anos 30, foco dessa análise.

Conclusão

A experiência revolucionária na educação e na pedagogia da Rússia soviética estimulou fortes discussões, tanto internas quanto externas aos ambientes socialistas internacionais. Gramsci, por exemplo, acompanhou esses debates, nas condições em que isso era possível, e, como educador e dirigente revolucionário, contribuiu muito para o aprofundamento da reflexão sobre a escola única do trabalho e sobre as mediações que a luta socialista pela educação deve incorporar e assumir nos marcos da ordem burguesa.

Sob a perspectiva de uma pedagogia marxista, tal como compreendida por Lênin, os alvos e metas da luta pelo direito a uma educação pública, democrática e emancipatória para as maiorias populares não podem ser desassociados da luta de classe dos trabalhadores contra a opressão burguesa e pela superação socialista do capitalismo, como um todo. No entanto, precisa levar profundamente em consideração as condições concretas em que essa demanda está colocada. Nos marcos de uma sociedade capitalista dependente, como a brasileira, na qual os filhos da maioria do povo trabalhador apenas muito recentemente tiveram acesso aos bancos escolares de instituições cada vez mais precarizadas, a questão central para uma pedagogia marxista é menos a de revolucionar os métodos de ensino e aprendizagem da escola, e muito mais a de garantir sua existência mesma. A recente onda de ocupações de escolas autodirigidas demonstrou a urgência da questão educacional no país, a energia e a demanda por protagonismo da juventude das classes populares e a relevância desse debate para a política revolucionária do socialismo.


Referências bibliográficas

GOLDMAN, Wendy. “Mulher, Estado e Revolução”. Boitempo Editorial. São Paulo. 2014

LENIN, Vladimir. “Cultura e revolução cultural”. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1968

PISTRAK. M (org). “A Escola-Comuna”. Expressão Popular. São Paulo. 2009.


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