Constituinte fraudulenta

Leia aqui o Manifesto da Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição ao povo da Venezuela.

Aporrea.org 5 ago 2017, 15:58

No domingo passado, 30 de julho, se consolidou um atropelamento generalizado aos direitos constitucionais e legais do povo venezuelano ao que a palavra ‘fraude’ não alcança minimamente para descrever. Também passou uma fraude, mas em realidade o que passou foi muito mais do que isso, e muito mais grave.

Para mais de uma dezena de venezuelanos o direito perdido foi o direito à vida, posto que morreram assassinado, o que em si já é muito mais que uma fraude, mas para os milhões de venezuelanos que no curso desse processo, sobretudo nesse dia, perderam o direito a um Poder Eleitoral confiável, a segunda-feira que amanheceu já era um dia de cidadania diminuída, já não era tão cidadão ou cidadã como no sábado, 29. Cunhado para o 3 de agosto, a 4 dias do encerramento do processo eleitoral do domingo passado, 30, nos é negada uma informação que o CNE já conhece e que está obrigado a dar, como a do número de votos nulos, é porque já não somos cidadãos e cidadãs aos que se deve cumprir e cujos direitos se respeitam. Agora o CNE, como o BCV, como os ministérios de Finanças, de Saúde, e outras instituições obrigadas por sua razão de ser a produzir informação e a transmiti-la publicamente, da informação se quer, como quer e quando quer. Quando um povo perde o respeito que os poderes do Estado e o governo lhe devem, somente porque este último possui a força das armas para impor o desrespeito, o que passou é algo muito maior e muito mais grave que tão só uma fraude.

O que parecemos ter perdido no domingo, 30 de julho, é a República Bolivariana de Venezuela.

Sobre a inconstitucionalidade e ilegalidade tanto da convocatória como das bases comiciais, a Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição já se pronunciou suficientemente.

Trataremos de precisar, neste manifesto, os elementos de fraude massiva implicados na terrível culminação que no domingo passado, 30 de julho, teve a usurpação da soberania do povo que arrancou o fatídico 1 de maio de 2017.

Advertimos reiteradamente sobre os riscos crescentes de uma violência generalizada no país, violência que está sendo alimentada tanto por setores vinculados à corrupção no seio do governo, como pelos setores mais radicais da direita opositora. Advertimos igualmente sobre o extremadamente perigoso que resultaria para o país uma intervenção armada externa ou sanções econômicas estrangeiras que afetariam em primeiro lugar à população venezuelana. Fixamos agora posição com respeito ao 30 de julho passado.

Durante os anos do processo bolivariano se desenvolveu na Venezuela um regime eleitoral extraordinariamente confiável. Investiram-se massivos recursos para criar um sistema de eleições totalmente automatizado. Contava este com rigorosos e transparentes mecanismos de auditoria de cada uma de suas fases. Tinha portanto garantia de que os resultados anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral em cada eleição correspondiam com exatidão –na grande maioria dos casos – à vontade expressa pelos e pelas eleitores. Este sistema eleitoral desempenhou um papel essencial na legitimação do governo bolivariano ante os sistemáticos ataques da direita nacional e internacional, em particular, frente às constantes ameaças do governo dos Estados Unidos. Uma e outra vez, o governo bolivariano conseguiu demonstrar, sem lugar para dúvidas, contava com o apoio da maioria da população do país.

Contudo, tudo isso se alterou de forma essencial nas eleições para a Assembleia Constituinte convocada pelo Presidente Maduro para 30 de julho deste ano. Um a um, passo a passo, todos os principais mecanismos de auditoria e controle que garantiam processos eleitorais transparentes e confiáveis foram desmontados pelo governo e pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE).

1. Em primeiro lugar está o assunto-chave do Registro Eleitoral. Nos anos anteriores, as eleições vinham se realizando com um Registro Eleitoral Permanente (REP) que era público e sistematicamente auditado. Isso não ocorreu nas recentes eleições da ANC. A votação setorial se realizou sobre a base de umas listas, no fundamental secretas, não-auditadas. Na fase prévia ao 30 de julho, o diretor do CNE Luis Emilio Rondón denunciou que se deixaram de realizar sete processos de auditoria e a que correspondia para esta sexta-feira, 4 de agosto, relativa à confrontação das atas de escrutínio pela mesa com os resultados transmitidos pelas máquinas de votação, foi suspensa sem explicações.

2. O direito constitucional ao voto universal e à igualdade de todos e todas as eleitoras (um eleitor, um voto) foi abertamente vulnerado. No mecanismo do duplo voto (um territorial e um setorial), discriminou-se arbitrariamente aproximadamente a cerca de cinco milhões de eleitores, que embora pudessem votar no âmbito territorial, não tinham o direito ao voto setorial. Desta forma, as bases comiciais destas eleições dividiram aos venezuelanos entre cidadãos de primeira (com direito ao duplo voto) e cidadãos de segunda (com direito a um só voto).

3. De acordo com a Constituição venezuelana, o voto não é obrigatório. Entretanto, diversos porta-vozes do governo, começando pelo presidente Maduro, por diversas vias mais de uma vez, ameaçaram com as graves consequências que teria para os cidadãos sua não participação nas eleições. Utilizaram-se as listas dos empregados públicos e trabalhadores das empresas estatais e dos beneficiários dos diversos programas sociais para ameaçá-los pública e reiteradamente com a perda de seus empregados e benefícios se não votassem. Chegou-se a extremos inconcebíveis tais como ameaçar de expulsão das escolas públicas aos filhos daqueles que não participassem no processo eleitoral. Tudo isso está amplamente documentado em declarações públicas de funcionários do Estado e nas múltiplas mensagens personalizadas que enviaram pelas redes sociais. A população experimentou isso como uma profunda humilhação. Os “puntos rojos” ficaram nas portas dos centros eleitorais para constatar os que votaram com o carnê da Pátria. Já começaram as primeiras denúncias da negativa a vender as bolsas do CLAP a quem não votou.

4. Em todos os processos eleitorais anteriores utilizou-se tinta indelével destinada a assegurar que cada eleitor pudesse votar uma vez. No atropelamento com o qual se convocaram e levaram a cabo estas eleições, optou-se por não utilizar tinta indelével com o qual se eliminou este fundamental mecanismo de controle.

5. A poucos dias das eleições, o CNE anunciou uma medida que agrava ainda mais o desmantelamento do sistema eleitoral, a eliminação na prática da função que deviam desempenhar os cadernos eleitorais. Em todas as eleições anteriores, sobre a base do registro eleitoral permanente e matrícula dos eleitores num centro eleitoral e numa máquina de votação específica, elaboraram-se cadernos eleitorais com a informação detalhada de cada um dos eleitores correspondentes a cada máquina. Estes cadernos eleitorais eram auditados com a participação dos representantes dos diferentes grupos políticos para confirmar sua exatidão. Depois de votar, cada eleitor ou eleitora assinava no lugar correspondente seu nome neste caderno e colocava igualmente sua impressão digital. Quando o CNE decidiu de último que os eleitores podiam fazê-lo em qualquer centro eleitoral de seu município e depois inclusive fora de seu município, como foi o caso do centro eleitoral de contingência do Poliedro de Caracas, desaparece este vital instrumento de controle e transparência do processo eleitoral. Embora seja certo que esta opção de votar num centro eleitoral diferente ao originalmente estabelecido deveu-se a inabilitação com violência de alguns centros eleitorais localizados em áreas opositoras, não é menos certo que com isso se perdeu uma muito fundamental instância de controle.

6. Uma previsão de transparência fundamental em todo o processo eleitoral, a qualquer nível, em qualquer lugar é a presença de testemunhas que acompanhem as diferentes fases do processo para impedir que se produzam ilícitos eleitorais. No entanto, como consequência da forma inconstitucional como se convocou a ANC e os prazos peremptórios estabelecidos para o registros dos e das candidatas, só participaram como candidatos, eleitores e testemunhas dos partidários do governo. Isso converteu as eleições do 30 de julho, praticamente, eme eleições internas do PSUV sem testemunhas externas. Houve observadores internacionais com o mesmo critério.

7. Proibiram-se os meios de comunicação de cobrir o processo eleitoral, ao impedir os jornalistas de aproximar-se a menos de 500 metros dos centros de votação. Isso converteu a essas eleições em um processo tudo menos público.

8. Finalmente, na quarta-feira, 2 de agosto, o diretor da empresa Smartmatic, Antonio Mugica, declarou desde a sua sede em Londres, que as cifras oficiais e as que registrou o sistema não coincidem em pelo menos um milhão de votos. Smartmatic é a empresa que fornece o suporte tecnológico-informático ao CNE desde 2004. Sua estreia foi com o Referendo Revogatório do Presidente Chávez, tendo realizado esta função até as eleições parlamentares passadas de dezembro de 2015. De sua declaração oficial, extraímos os seguintes parágrafos:

Hoje (2-8-17) é com o mais profundo pesar que temos de informar o anúncio de que os dados de participação no domingo passado, 30 de julho, para a eleição da Assembleia Constituinte foram manipulados. (…) A soma de todas as atas, ou seja, a totalização, deve coincidir com os resultados que publica o Conselho Nacional Eleitoral. Este é um mecanismo que permite descartar qualquer tipo de manipulação na transmissão, totalização e publicação de resultados. Isso foi feito em todas as eleições venezuelanas de 2004 até 2015, mas não foi feito para esta eleição de domingo passado (…). Uma auditoria permitiria conhecer a quantidade exata de participação. Estimamos que a diferença entre a quantidade anunciada e a que anuncia o sistema é de ao menos um milhão de eleitores.

Com segurança, será muito difícil desvendar se esta denúncia corresponde ao que efetivamente ocorreu ou se outros interesses estão incidindo.

Não existe razão alguma pela qual se possa ter confiança em que os resultados anunciados pelo CNE tenham alguma relação com a realidade. O CNE anunciou que participaram nestas eleições um total de 8.089.320 votantes. Esta cifra é, para dizer o mínimo, altamente suspeita. Não tem relação alguma com o que indicavam, sem exceção, todos os principais estudos de opinião que haviam se realizado no país antes das eleições que projetavam nível de participação muito inferiores. Tampouco as sondagem de boca de urna.

Chama a atenção que numa situação de profunda crise, como a que vive o país, e um governo com níveis tão extraordinariamente baixos de apoio, o CNE pretenda nos dizer que houve mais votos de apoio ao governo que os votos que recebeu Maduro nas eleições presidenciais de 2013 (7.587.579 votos equivalentes a 50,61% do eleitorado participante) quando as dimensões mais profundas da crise que hoje vive o país apenas se anunciavam.
Em todo caso, ainda sobre a base das cifras que apresentou o CNE, ficou claro que uma ampla maioria do país, 58.47% não se pronunciou a favor da Constituinte de Maduro, o que termina por lhe retirar toda a legitimidade.

Este conjunto de alterações na operação do sistema eleitoral constitui, de fato, um total desmantelamento do regime eleitoral que com tanto esforço e investimento de recursos se havia conseguido montar. Num país tão polarizado, com tanta violência como a que existe atualmente, este desmantelamento do sistema eleitoral não é pouca coisa. Nos deixa sem um pilar fundamental das possibilidades da convivência democrática. Já não contamos com um árbitro confiável. Já não se trata sobre se serão realizadas ou não eleições, igualmente há que se interrogar sobre o para quê de processos eleitorais se o suposto árbitro neutro, pública e notoriamente, deixou de sê-lo. O que ocorrerá no país se isso conduz ao encerramento total de toda opção eleitoral? Significará isso que se instalará a violência, o terrorismo paramilitar e a repressão estatal como substitutos da política, como a forma de processar nossas inevitáveis diferenças?

Embora a imagem de um povo sobre si mesmo é algo sutil, desta vez é algo fortíssimo. O dano moral de quem votou por que foi vítima de chantagem não é quantificável.

Quando vexado, quando humilhado fica alguém que se ameaça com demissão do trabalho no dia 31 se não votou no dia 30, com retirar a bolsa do CLAP, com deixá-lo sem apartamento, ou sem pensão? Isso é algo que tem que ver com a alma do povo e para isso não há medida.

Como fica essa FANB, esses oficiais e soldados concretos, com nome, apelido e família, plenamente conscientes da extorsão massiva que se infligiu ao povo venezuelano, e que elas e eles se viram obrigados a coonestar?

Quanto débil está um governo que, como não pode recorrer à consciência do povo, como o fez sempre o presidente Hugo Chávez, recorre à perseguição, à chantagem, à extorsão? Nada distinto pode ser esperado dos que não só são responsáveis do desfalque econômico que ameaça o futuro da nação, mas do desfalque político que significa pretender pôr Chávez anteparo desse desfalque econômico.

Ante todas as alterações, manipulações e vícios presentes neste evento eleitoral, impõe-se a realização de uma auditoria integral, pública, cidadã e plural, que inclua observadores internacionais sobretudo, do processo culminado em 30 de julho passado, como única via para a recuperação de um sistema, mas sobretudo de um Poder Eleitoral minimamente confiável. Este processo trazia como falha de origem a usurpação à soberania popular implicada em não consultar a vontade do poder originário sobre se queria ou não uma ANC.

Até que esta auditoria não seja realizada e se processe o mar de denúncia que estão fazendo os próprios candidatos e eleitores do Polo Patriótico que ao ver-se desconhecidos denunciam fraude, seria imoral que essa ANC pretendesse se instalar.

Chamamos ao povo da Venezuela a seguir na defesa da Constituição da República Bolivariana de Venezuela em acatamento da obrigação prevista no Art. 333 da mesma.

A ordem constitucional segue rompida.

Caracas, 3 de agosto 2017

Assinam: Héctor Navarro, Ana Elisa Osorio, Oly Millán Campos, Edgardo Lander, Esteban Emilio Mosonyi, Santiago Arconada, Gustavo Márquez Marín, Freddy Gutiérrez, Cliver Alcalá, Carlos Carcione, Juan García, Gonzalo Gómez.

(Reprodução de material publicado pelo Portal de la Izquierda)


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