“A saída para a crise, uma nova fase de acumulação de capital, não é possível”

Para Chesnais, o capitalismo, imerso em suas contradições internas, e também acossado pela crise ecológica que ele gera, choca-se hoje com “limites intransponíveis”.

François Chesnais e Henri Wilno 22 ago 2017, 23:29

Henri Wilno – O debate entre economistas marxistas sobre as causas da crise atual não está fechado, muito pelo contrário. Como você se posiciona neste debate? Como se articulam os distintos fatores da crise?

François Chesnais – Geralmente data-se o começo da crise entre o fim de julho e começo de agosto de 2007. Nestes nove anos transcorridos, minha posição evoluiu, obviamente. Em um texto do outono de 2007 para o congresso Marx Internacional, publicado no número 1 da revista conjunta A l’Encontre-Carré rouge, disse de imediato que a crise havia começado de maneira muito clássica no sistema creditício estadunidense, que se tratava de uma crise de superproduçãoo e sobreacumulação baseadas em um endividamento massivo das empresas e dos imóveis, facilitado por meio de uma engenharia financeira inédita e cujo terreno era o mercado mundial. A crise de setembro de 2008 em Wall Street esteve a ponto de superar o sistema financeiro mundial e provocou uma recessão mundial interrompida pela China.

Desde uma perspectiva mundial, houve uma reestruturação e não uma destruição do capital produtivo. Este não foi o caso do capital fictício, isto é, dos títulos que dão direito a participar dos lucros no caso das ações e títulos de dívida privados e, no caso dos títulos do Tesouro, a cobrar pelo serviço da dívida pública cobrada à receita centralizada pelo imposto. Para seus titulares, esses títulos, que devem ser negociáveis a todo momento em mercados especializados, representam um “capital” do qual esperam um rendimento regular na forma de juros e dividendos (uma “capitalização”). Do ponto de vista do movimento do capital que produz valor e mais-valia, não são, no melhor dos casos, mais do que “recordações” de uma inversão já realizada, daí o termo “capital fictício”.

A partir destas formas fundamentais, a “engenharia financeira” engendrou formas derivadas (em inglês, derivatives). Em meus livros eu tenho sublinhado a atualidade do “ciclo curto” do capital-dinheiro (D-D’, isto é, receber mais dinheiro do que o investido inicialmente), em que os investidores esperam, sem sair dos mercados financeiros, fluxos de renda regulares “como as pereiras dão peras” [segundo uma expressão irônica de Marx].

Sobre a questão da taxa de lucro, em relação a qual não tive nada a contribuir, aderi à posição clássica, que a vincula à composição orgânica do capital, mas tenho insistido na necessidade de o capital industrial realizar o ciclo completo, D-M-P-M’-D’ (para obter D’ tendo adiantado D, deve haver compra de força de trabalho, produção e comercialização), e portanto de interessar-se pela demanda. Nos últimos meses em que estive escrevendo Finance Capital Today, caiu em minhas mãos um texto em inglês de Ernest Mandel de 1986, que não é citado nunca ou quase nunca, sobre as consequências do que ele chamava de “robotismo”, que então estava no começo.

Mandel sustenta neste escrito que “a extensão da automatização além de um certo limite conduz inevitavelmente, primeiro a uma redução do volume total do valor produzido, e depois a uma redução do volume de mais-valia realizada”. 1 Viu ali um “limite intransponível”, portador de uma “tendência do capitalismo ao colapso final”. A robotização bloqueia a possibilidade de rebaixar a composição orgânica, isto é, a relação entre a parte constante (o valor dos meios de produção) e a parte variável (o valor da força de trabalho, a soma dos salários), de modo que o jogo efetivo dos fatores “contra-arrestantes à queda tendencial da taxa de lucro” se tornam esporádicos e o que era um limite relativo se converte em limite absoluto.

Muito mais recentemente, em um texto esclarecedor de 2012, Robert Kurz fala de “produção real insuficiente de mais-valia” que subjaz a “terceira revolução industrial (a microeletrônica)”. A debilidade da inversão produtiva faz com que o capital fictício viva cada vez mais em uma esfera fechada. As “pereiras dão menos peras”, salvo o caso dos títulos do Tesouro, o trabalho dos operadores consiste em realizar lucros, na maioria das transações, passando de um compartimento de mercado a outro. O resultado é a instabilidade financeira endêmica e a formação de bolhas, que é outro traço característico do período.

Podemos dizer que o único horizonte do capitalismo é a perpetuação dessa crise?

Assim eu acredito, especialmente quando houver o entrelaçamento entre os efeitos econômicos, sociais e políticos da mudança climática. Dois potentes mecanismos, que se qualificavam de “procíclicos”, se tornaram estruturais e favorecem esta situação em que a saída da crise, isto é, uma nova fase prolongada de acumulação de capital, não é mais possível. O primeiro mecanismo está claramente identificado, a saber, a defesa incondicional dos créditos dos possuidores de títulos da dívida pública, que implica impor austeridade orçamentária e ataque aos direitos sociais. O segundo é um mecanismo cuja função começa a reconhecer-se, a saber, os efeitos da robotização, cuja desaceleração torna-se impossível devido à competição capitalista, à diminuição tendencial da mais-valia e à dificuldade de satisfazer os acionistas. Basta observar o que está ocorrendo com o sector bancário, sem dúvidas a “indústria siderúrgica de amanhã”.

Por outro lado, a crise econômica, ao prolongar-se, se combinará com os efeitos econômicos, sociais e políticos da transformação climática; as relações que o capitalismo estabeleceu com “a natureza” o conduziu a outro limite, cuja caracterização está em discussão. Marx não podia prever a destruição dos equilíbrios eco-sistêmicos pela produção capitalista, particularmente da biosfera. Apenas previu o esgotamento dos solos por efeito da industrialização da produção agrícola. Alguns marxistas, começando por O’Connor, trataram de preencher esse vazio. Têm começado pela definição da destruição dos recursos renováveis em suas diversas formas e mais tarde a mudança climática como um “limite externo”.

Defendo a tese da internalização do limite, a necessidade de agora abandonar a oposição entre “contradição interna” e “contradição externa” por causa da impossibilidade de o capitalismo modificar suas relações com o meio ambiente. Com efeito, a valorização sem fim do dinheiro convertido em capital em um movimento de produção e venda de mercadorias, também sem sim, o impede de frear suas emissões de gás de efeito estufa, controlar o ritmo de exploração dos recursos não renováveis. O mecanismo que conduz à “sociedade de consumo” e seu insensato desperdício é o seguinte: para que a autorreprodução de capital seja efetiva, é preciso que o ciclo de valorização se feche com “êxito”, ou seja, que as mercadorias fabricadas, a força de trabalho comprada no “mercado de trabalho” e utilizada de maneira discricionária pelas empresas nos centros de produção, se vendam.

Para que os acionistas estejam satisfeitos, é necessário levar ao mercado uma vasta quantidade de mercadorias que cristalizam o trabalho abstrato contido no valor. Para o capital, é absolutamente indiferente que essas mercadorias sejam realmente “coisas úteis” ou que simplesmente o pareçam. Para o capital, a única “utilidade” que conta é a que permite obter benefícios e prosseguir o processo de valorização sem fim, de modo que as empresas converteram-se em mestras na arte de convencer, por meio da publicidade, aqueles que tem poder aquisitivo, seja real ou na forma fictícia (o crédito), de que as mercadorias que elas oferecem são “úteis”.

A propósito da crise ecológica, para designar a tendência e sublinhar as responsabilidades utiliza-se frequentemente o termo “antropoceno”. Você o rechaça. Poderia precisar o que há por trás desse debate?

O que está em jogo é a necessidade de dar um fundamento sólido ao ecossocialismo. Não se pode esquecer que o artigo publicado na Inprecor é uma tradução da conclusão do Finance Capital Today. Para mim se tratava de proporcionar a um público anglófono um ponto de referencia. O nome de Jason Moore lhes era familiar. O termo “antropoceno” foi inventado por alguns cientistas para designar a atual era geológica, que se caracteriza pelo fato de que a “humanidade” se converte em uma força geológica efetiva que altera o conjunto de fatores climáticos, geológicos e atmosféricos.

Em um trabalho que pretende “multiplicar os pontos de vista”, Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz propuseram uma “leitura ecomarxista do antropoceno”, que consiste em “reler a história do capitalismo a partir do prisma não apenas dos efeitos sociais negativos de sua globalização, como no marxismo padrão (cf. A noção de ‘sistema-mundo’ de Immanuel Wallerstein e a de “intercâmbio desigual”), mas também de seus metabolismos materiais insustentáveis (que consistem em fugas para frente que ocorrem quando se ocupam novos espaços até então virgens. Implantando neles relações extrativistas e capitalistas) e seus impactos ecológicos”. 2 Bonneuil e Fressoz, assim como Jason Moore, estabelecem um vínculo entre a mudança das relações do ser humano com a natureza, teorizada por Francis Bacon e René Descartes, e as relações entre os seres humanos com a criação da escravidão e depois a construção da dominação imperialista.

Moore é menos ecumênico que os autores franceses e “afunda o prego”. A palavra “capitaloceno” serve para afirmar que vivemos “na idade do capital” e não na “idade do ser humano”. “A idade do capital” não tem apenas uma acepção econômica mas como designa uma maneira de organizar a natureza, fazendo da natureza um elemento externo ao ser humano e também um elemento cheap, no duplo sentido que essa palavra pode ter em inglês: barato, mas também derivado do verbo cheapen, que significa rebaixar, tornar barato, degradar. 3 Isso vale para os trabalhadores e as trabalhadoras, quando a intensidade da exploração do trabalho culmina em minas e plantações.

Você reatualiza o debate sobre os limites do capitalismo. Isto realça a importância sobre o que está em jogo no período atual. Contudo, ao contrário dos anos 1930, assistimos sem dúvida a um desenvolvimento das forças reacionárias de todo tipo, mas não o mesmo em relação ao movimento operário, enquanto que o movimento altermundista, na melhor das hipóteses, está estancado e os ecologistas são capazes de oferecer resistências locais ferozes, mas não mais do que isso… Neste contexto, quais podem ser as perspectivas e os pontos de apoio dos marxistas revolucionários?

Deve-se tomar cuidado com a analogia aos anos trinta, cada vez mais marcada pela perspectiva de uma nova guerra mundial. Mas de resto você tem razão. Tudo está nas mãos dos e das “de baixo”. O peso do desemprego bloqueia as lutas operárias. A tarefa do momento é transformar a indignação em raiva em todos os terrenos em que ela seja suscitada pelas desigualdades, e semear seus germes e apoia-la quando estourem. É essencial dirigi-la contra o capital e a propriedade privada. As lutas ecologistas tiram sua força de sua convicção e de sua delimitação exata do inimigo. Já o movimento altermundista, pelo contrário, está estancado porque eliminou o componente anticapitalista que teve em algum momento.

(Publicado originalmente na revista L’Anticapitaliste n. 86, de abril de 2017. Tradução de Gustavo Rego da versão em espanhol publicada pelo site Viento Sur.)


1 Ernest Mandel, , Introduction, em Karl Marx, Capital, Libro III (Penguin, 1981), p. 78.

2 Attac, Les Possibles, n° 3, primavera de 2014, onde resumem as posições defendidas em seu livro L’événement anthropocène – La Terre, l’histoire et nous, Le Seuil, 2013.

3 Jason Moore, Capitalism in the Web of Life, Ecology and the Accumulation of Capital, Verso, 2015.


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