Hegelianismo – a expressão filosófica da Revolução Francesa de 1789

No aniversário de nascimento de Hegel, reproduzimos o primeiro capítulo da obra “Marx e o núcleo da dialética de Hegel” publicado pela Editora Alfa-Omega.

Roberto Robaina 27 ago 2017, 14:40

Herbert Marcuse começa o seu livro Razão e Revolução definindo que o idealismo alemão foi considerado a teoria da Revolução Francesa. Fora da França, na vizinha Alemanha não unificada, os efeitos da Revolução Francesa de 1789 repercutiram na Filosofia (1978). Aí se encontravam Kant, Fichte, Schelling e Hegel.

Se a caracterização de Marcuse pode ser feita do idealismo alemão de modo geral, muito mais se nos referimos à obra de Hegel em particular. Sua obra não foi meramente o desenvolvimento da Filosofia em si mesma como ele próprio definiu, mas teve como base as ações dos franceses, refletindo as convulsões da revolução cuja repercussão atravessou a fronteira – Hegel era contemporâneo e simpatizante da mesma – produzindo um pensamento no qual a marca é a unidade dos contrários, o choque permanente, o movimento infinito, os saltos, as rupturas, as mudanças. Assim, como para Hegel o pensamento era o pensamento do seu tempo (2010), também no pensamento de Hegel o peso das contradições, dos conflitos, da negação e da diferença foi a expressão do seu tempo.

A definição apresentada por Herbert Marcuse refletia as próprias posições de Hegel, que, de modo espirituoso, dizia que enquanto os franceses experimentavam tais tempos com ações concretas, escrevendo a História, com a política prática, os alemães, atrasados na prática, dedicavam-se a escrever e a refletir sobre os acontecimentos. Hegel percebia que sua filosofia era contemporânea de mudanças históricas revolucionárias. Suas palavras foram as seguintes:

Aliás, não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo do seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação (HEGEL, 2002, p. 31)

Em seguida, define que a nova figura vai se formando.

Desmanchando “tijolo por tijolo” o edifício do mundo anterior, num processo lento, quando os sintomas do abalo deste mundo são ainda isolados, expressos na frivolidade, no tédio, no pressentimento vago de um desconhecido, até que é interrompido o lento processo de acumulação quantitativa, isto é, quando dá-se um salto de qualidade e o desmoronamento gradual “é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo”. (HEGEL, 2002, p. 31)

Para Hegel a Revolução Francesa foi esse sol nascente que inaugurou uma nova época histórica. Estava repleto de razão. Com a abolição do feudalismo e os primeiros passos de novas relações de produção capitalistas, o indivíduo era colocado como o senhor de sua vida. Como asseverou Marcuse, “a situação do homem no mundo, seu trabalho e lazer, deveriam, doravante, depender de sua própria atividade racional livre e não de qualquer autoridade externa” (MARCUSE, 1978, p.17). O mundo deveria se tornar uma ordem de razão.

1.1. A contribuição de Kant para o pensamento dialético

Kant foi o primeiro autor que colocou a razão como ordenadora do mundo. Mesmo autores como Eusebi Colober, que parecem ver o surgimento do idealismo em seus críticos (1986), reconhecem na obra de Kant as sementes do idealismo. Ele foi o fundador desta escola. No caso de Kant, mais do que a Revolução Francesa, creio que refletiu os avanços da ciência do seu tempo, em particular da física newtoniana. Como afirma Nahuel Moreno:

Kant tenta levar até as últimas consequências o papel construtor do sujeito em relação às matemáticas, raciocinando sobre a física de Newton que, surpreendentemente, conseguia que as suas célebres fórmulas matemáticas sobre a gravitação se aplicasse a diferentes campos físicos. (MORENO, 2007, p. 78).

Refletindo sobre tais progressos, Kant definiu o sujeito como elemento determinante sobre a própria noção de realidade, já que, segundo sua posição, tanto o tempo quanto o espaço – fundamentais para a definição do que é real – são intuições a priori ou categorias subjetivas, isto é, inerentes ao sujeito. Esta reviravolta de mostrar o sujeito como o centro em torno do qual gira a compreensão do real ficou conhecida como a revolução copernicana. Ao mesmo tempo Kant percebeu uma questão fundamental: a existência de diversas posições entre filósofos acerca da realidade – a Filosofia era uma campo de batalha, como dizia ele – em contraste com a uniformidade das posições em áreas do conhecimento como a geometria e a lógica formal.

Diante deste contraste, combinado com os claros avanços científicos expressos no progresso da física newtoniana, Kant sustentou que era necessário compreender o porquê da Filosofia permanecer o palco de incontáveis posições desencontradas e divergentes. Somente após esta compreensão haveria condições de avançar na Filosofia. Definiu que era preciso estabelecer uma crítica da razão, como se fosse um tribunal capaz de definir as regras e os limites do conhecimento.

Portanto, sua principal obra foi uma teoria do conhecimento no qual estabeleceu um método para julgar as filosofias. Sua epistemologia teve como base a ideia de que somente seriam científicas aquelas teorias baseadas nas regras abstratas, como a lógica formal e a matemática, ou seja, aquelas próprias ao juízo sintético a priori, ou então as ciências particulares experimentais, como a física e a biologia. Os conhecimentos que não se enquadrassem nestes critérios eram indecidíveis.

Assim, estabelecendo a consciência como fundamento supremo do conhecimento e da moral e tendo como base de sua obra a defesa da autonomia e a atividade do sujeito, Kant apresentou uma crítica aberta e contundente ao dogmatismo da velha metafísica. Tal metafísica se ancorava na aceitação e no uso dos conceitos como “alma”, “mundo” ou “Deus” sem discutir e investigar nossa capacidade de conhecê-los. Como tais questões não podiam ser respondidas com apelo às regras abstratas nem às experiências, não podiam, segundo Kant, ser realmente conhecidas. Não podia, portanto, ser científicas.

Além de fundamental no advento do idealismo, Kant também, mesmo com seus limites, contribui para o desenvolvimento do pensamento dialético. Sabe-se que sua Filosofia destacou a importância da espontaneidade do “eu penso”. Segundo Kant:

O primeiro conhecimento puro do entendimento, sobre o qual se funda todo o seu uso restante e que ao mesmo tempo é inteiramente independente de todas as condições de intuição sensível, é o princípio da unidade sintética originária da apercepção (KANT, 1999, p. 124).

E completa deixando claro que:

Todas as minhas representações têm que se submeter à condição unicamente sob a qual possa atribuí-las, como representações minhas, ao próprio eu idêntico e, por conseguinte, enquanto ligadas sinteticamente numa apercepção, enfeixá-las mediante a expressão universal eu penso. (KANT, 1999, p. 124).

Hegel disse que Kant corretamente mostra que o que pensamento produz é a unidade: em outras palavras, que os pensamentos têm a forma de uma “função sintetizadora através da qual o múltiplo se reduz à unidade” (HEGEL, 2005, p. 428)., isto é, o pensamento produz a si mesmo como uno, constrói então a identidade na diversidade. É interessante observar estes aspectos dialéticos que surgem no pensamento de Kant, embora ele não os desenvolva. Segundo Marcuse, a unidade originariamente sintética da percepção “se identifica com os princípios dos opostos, do próprio Hegel, porque a unidade sintética é, propriamente, uma atividade pela qual o antagonismo entre sujeito e objeto é produzido e simultaneamente superado”. (MARCUSE, 1978, p. 58). Trata-se da própria forma do pensamento onde cada ente é uma unidade sintética de condições contraditórias. Com efeito, sustentava Schelling:

Uma síntese, em geral, surge pelo conflito da pluralidade com a unidade originária. Pois sem conflito em geral, nenhuma síntese é necessária; onde não há pluralidade, há unidade pura e simples; mas, se a pluralidade fosse o originário, mais uma vez não haveria síntese (SCHELLING, 1980, p. 11).

E sentenciava em seguida: “a síntese é o conflito em geral, e, aliás, precisamente o conflito entre sujeito e o objeto”. (SCHELLING, 1980, p. 12).

Como vimos, Hegel também percebeu esta unidade mencionada por Schelling e explorada corretamente por Marcuse, e ainda apresentou que Kant, quando explica a possibilidade de aplicar os conceitos puros do entendimento aos fenômenos, também unifica a sensibilidade pura e o entendimento puro – predicados anteriormente como termos absolutamente antagônicos – declarando que o “enlace deste algo duplo é, por sua vez, uma das páginas mais belas da filosofia kantiana” (HEGEL, 2005, p. 431). Afirmou ainda que Kant mesmo não tinha tido consciência desta unificação, combinando a sensibilidade e o entendimento “de modo externo, superficial, como um pedaço de madeira e um osso atados por uma corda” (HEGEL, 2005, p. 431). Assim, Kant foi reconhecido por Hegel ao “por de manifesto que o pensamento tem juízos sintéticos a priori, que não podem extrair-se da experiência, põe de manifesto o pensamento como algo concreto em si” (HEGEL, 2005, P. 423).

A valorização da obra de Kant então teve muita relação com sua defesa de que não há possibilidade de um conhecimento do objeto sem a atividade do pensamento, sem um a priori que permita a autoconsciência da unidade do eu, uma síntese inspiradora da dialética. A riqueza de seu pensamento se expressou, entre tantas outras, na sua síntese da intuição e do conceito ao definir que “a intuição é um representar singular, o conceito de uma representação geral ou representação obtida pela reflexão” (KANT, 2003, p. 88).

1.2. As diferenças entre Hegel e Kant

Os aportes de Kant, entretanto, não anulam a necessidade de superação de seu pensamento para que a dialética pudesse se afirmar. Como se sabe, o filósofo de Königsberg tentou sintetizar o empirismo com o racionalismo, mas ao mesmo tempo limitava a possibilidade do desenvolvimento do conhecimento humano. Chamava de númeno a coisa em si mesma, que não podia ser conhecida, diferente do fenômeno, que correspondia à experiência e podia ser conhecido. Depois de definir que apenas via atividade do sujeito se pode apreender o objeto, ele limitava esta apreensão apenas aos fenômenos, e declarava que a coisa em si era incognoscível. Dessa forma, embora Kant tenha sustentado para a consciência de si todos os momentos do em si, manteve a separação de si mesmo deste em si. A coisa em si sai, em Kant, fora da atividade do sujeito.

Mesmo Fichte, que se reivindicava kantiano, não aceitava estes limites. Se o sujeito constrói conhecimento do objeto, por que uma coisa em si que não se pode conhecer? Desta forma em Kant não se apreende o sujeito em sua atividade, uma vez que a ação tende sempre a superar uma ideia (subjetiva) e torná-la objetiva, isto é, já que a atividade efetua a passagem do subjetivo ao objetivo. Ele mantém-se sempre no reconhecimento do meramente subjetivo.

Hegel deixou claro que esta contradição no pensamento kantiano deveria ser superada. Afinal, embora possamos reconhecer que a definição de que era impossível o conhecimento de Deus, da Alma e do Mundo fosse uma crítica impulsionada pelos avanços da ciência contra a velha metafísica, a coisa em si não deixava de ser também uma concessão para a velha metafísica, à medida que atribuía um terreno onde a razão e sua atividade não podiam dominar. A coisa em si seria um território exclusivo da fé. Ao resguardar a coisa em si da cognoscibilidade do sujeito, Kant aceita um terreno inacessível para a atividade racional. A crítica de Hegel partiu da compreensão de que não havia terreno onde a razão não pudesse penetrar e conhecer.

A Filosofia, para Hegel, como necessidade de superação de um dualismo que separava e cortava a relação viva entre razão e sensibilidade, inteligência e natureza, entre subjetividade absoluta e objetividade absoluta. “Suprimir tais opostos tornados fixos é o único interesse da razão (HEGEL, 2003, p. 38). E ainda agregou que a razão concebia o surgimento do mundo intelectual e do mundo real como um devir, sendo que na “atividade infinita do devir e do produzir, a razão uniu o que estava separado e rebaixou a cisão absoluta a uma relativa, que está condiciona pela identidade originária” (HEGEL, 2003, p. 38).

Para Hegel não se podia separar sujeito e objeto nem o fenômeno da coisa em si. Em Hegel, nada sai fora da atividade do sujeito. Segundo Denis Rosenfield:

O ponto de partida de sua filosofia é a unidade do pensamento e do ser. Não se trata, para Hegel, de nenhum ponto de partida dogmático, mas do começo mesmo do filosofar, que envolve não apenas o conhecer, nem o que se torna objeto do conhecimento, porém ambos como integrantes do mesmo processo. Todo o processo do conhecimento pressupõe uma relação entre o sujeito cognoscente e o objeto, como se tivéssemos duas coisas ou entes separados, preexistentes, de alguma maneira, à relação que se estabelece. Hegel, por sua vez, mostra que tal separação é apenas aparente, pois o primado é dado pela relação que institui os termos relacionados (ROSENFIELD, 2002, p. 36).

Hegel é justamente um pensador da unidade do pensar e do ser. A tese do idealismo subjetivo, levada em suas consequências, reconhecia apenas a realidade do lado subjetivo, o próprio pensamento como meramente subjetivo. Hegel definia que se o subjetivo existia é porque existia também o objetivo. Sua demonstração deste idealismo objetivo, isto é, que reconhecia a existência do objetivo, foi sustentada numa concepção prática, concreta, de que ninguém pode viver e desconhecer que as coisas existem. Ou seja, foi um argumento pragmático.

Na dialética do senhor e do escravo, Hegel (2002) mostra como a estrutura lógica do pensamento reflete a experiência do corpo e sua luta de vida ou morte. Trata-se da identidade entre ser e pensar, neste caso com o pensar derivando do ser, de sua experiência de escravo, derivação esta que será abandonada na Ciência da Lógica, quando estabelecerá o ser como derivado do pensar. Destas considerações da fenomenologia, Hegel afirmou que a estrutura lógica do pensamento é a mesma estrutura lógica do ser, que o subjetivo e o objetivo têm identidade. E é importante que se leve em conta que, como muito bem esclareceu Heidegger (2007, p. 107), o que “nós, segundo o começo da filosofia ocidental, nomeamos ser, para Hegel se chama realidade”. Hegel está, portanto, falando da unidade entre a estrutura lógica do pensamento e a estrutura lógica do real. Sendo assim, não pode, por exemplo, existir a contradição apenas como um conceito subjetivo, inexistente no real, tal como asseverou Kant e outros autores, inclusive marxistas contemporâneos, como Lúcio Colleti. A categoria da contradição também responde ao pensar tanto quanto ao ser.

Nesse sentido, Hegel resgatou Espinosa (2000, p. 228), que definia que “a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas”. Hegel foi o defensor, consequentemente, do princípio de desenvolvimento de toda a realidade, subjetiva e objetiva. Tratou, então, de agarrar a essência da vida. E isso passa por compreender a lógica do próprio pensamento, que era para Hegel a atividade do espírito. Nas palavras corretas de Cirne Lima:

Hegel toma Espinosa e Kant como marcos referenciais do próprio filosofar. A grande tarefa da filosofia consiste para Hegel em pensar o Absoluto não apenas como substância, mas também como sujeito. A substância de Espinosa e o sujeito de Kant têm que ser pensados juntos como uma unidade, uma, única, em um processo de desdobramento, deve ser unida, em uma conciliação harmônica, com a liberdade e com a validade universal do sujeito transcendental. Verdadeiro é somente o todo. E o todo não é apenas substancial e objetivo, mas é também e principalmente aquela forma mais alta de unidade que contém tanto a substancialidade como a subjetividade, unidade esta que Hegel chama, então, de conceito, respectivamente, de espírito. Conceito e espírito são formas de pensar, eles são, entretanto, um princípio interno de organização das coisas na natureza e na história. Esta organização do pensar, por um lado, e esta organização do próprio ser, pelo outro lado, que são apenas dois lados da mesma moeda, originam-se do mesmo princípio e são dirigidas por uma regra básica que se chama dialética. (CIRNE LIMA, 2006, p. 75-76).

Sua compreensão da unidade entre o ser e o pensar se alicerçava na defesa de que a razão pode penetrar em todo o real. Não existe sujeito sem objeto e nem objeto sem sujeito. E se o sujeito produz as condições de conhecimento do objeto, não pode ocorrer uma separação absoluta entre sujeito e o objeto, não pode, portanto, haver uma coisa em si jamais cognoscível. Fica então evidente como Hegel era distante da separação kantiana entre sujeito e objeto, já que em Hegel o próprio objeto somente poderia ser apreendido pela ação do sujeito, e somente pela reflexão aparece a verdadeira natureza do objeto e este pensamento é a própria atividade do sujeito. Assim, a coisa em si que não pode ser conhecida é uma abstração vazia, um lugar de misticismo, que estaria mais além de todo e qualquer pensamento.

Tratava-se, claramente, da necessidade de superação da teoria de Kant, já que este pensador, depois de revolucionar o pensamento, dando um peso fundamental para o sujeito e a consciência, impõe-se um limite e separa de modo definitivo o para si e o em si. Além da defesa da unidade entre ser e pensar, Hegel criticou a epistemologia kantiana, que separava o conhecimento da crítica ao conhecimento. Sua crítica ao sistema kantiano consta também na Filosofia do Espírito, Hegel partiu de uma crítica que sustentava que o temor do erro já era o próprio erro na teoria do conhecimento de Kant, e que não se podia saber o que se podia ou não conhecer antes de mergulhar no próprio objeto do conhecimento mesmo. Para Hegel a própria indagação sobre a possibilidade do conhecer já é um conhecer e não faz sentido querer aprender a nadar sem entrar na água.

Segundo Hegel, na relação entre o ser e o pensar, inclusive a metafísica antiga era superior a Kant, já que a mesma definia que as coisas podiam ser conhecidas. A metafísica antiga partia da seguinte premissa:

O que conhecemos pelo pensamento sobre as coisas e concernente às coisas constituem o que elas têm de verdadeiramente verdadeiro, de maneira que não tomava as coisas em sua imediação, sim na forma do pensamento, como pensadas. Esta metafísica, portanto, estima que o pensamento e as determinações do pensamento não eram algo estranho ao objeto, mas bem que constituíam a essência (HEGEL, 1968, p. 43).

Ao rejeitar a coisa em si, Hegel simplesmente rejeita os númenos kantianos, a separação entre númenos e fenômenos. Define que tudo pode ser conhecido, que a realidade estava toda nos fenômenos, embora nos fenômenos como tal a realidade não é mais do que uma realidade imediata, consequentemente relativa, incompleta, isto é, precisa-se descobrir também a essência, o que está por trás do fenômeno. A Lógica de Hegel busca, então, o movimento do conteúdo, não se prendendo no imediato, consciente de que a essência precisa se manifestar, de que aparência é importante porque revela um lado da essência, um momento dela, mas que se deve acompanhar a totalidade dos fenômenos em seu desenvolvimento, em sua ultrapassagem, em sua constante negação e relação. A contradição em Hegel era justamente o motor de todo este movimento, desta ultrapassagem, desta penetração no interior do ser.

Na Ciência da Lógica, obra em que Hegel ensina seu método, deixa claro que somente quando algo tem em si mesmo uma contradição se move por si mesmo, tem impulso e movimento e que apenas com o método dialético se apreende o fenômeno em seu desenvolvimento, em sua passagem de um estado a outro, relacionando forma e conteúdo e tratando sempre de ligar a lógica ao conteúdo do processo, assimilando precisamente o movimento interno de seu conteúdo e seu caráter relacional.

O método não é distinto de seu objeto e conteúdo, pois é o próprio conteúdo, a dialética que esta encerra em si, que o impulsiona para frente. É por isso que nenhuma exposição pode ser considerada científica se não seguir o curso deste método; e se não se adapta ao seu ritmo sensível, pois este é o da própria coisa (HEGEL, 1968, p. 50).

Em outras palavras, Hegel não aceitava a ideia de um método que fosse exterior ao movimento objetivo das coisas. “Só o método consegue domar o pensamento e levá-lo à coisa e aí o reter”, disse no prefácio da segunda edição da pequena lógica (HEGEL, 1969, p. 45). Afirmava, então, que o método era idêntico ao conteúdo, a consciência da forma que assume o movimento interior do seu conteúdo. Ao mesmo tempo insistia que somente depois de se ter um conhecimento mais profundo de outras ciências, começa a dar conta de que a lógica não o geral abstrato, mas o geral que abarca a riqueza do particular. Trata-se, portanto, de uma nova lógica, uma nova superação da lógica formal defendida por Kant.

Em Kant havia uma epistemologia pura, um método sem o objeto; em Hegel, a epistemologia sem ontologia não existe, não é viável, e o método e o objeto são opostos complementares, não independentes, e nem opostos sem relação, como ocorre em Kant. No prefácio à primeira edição da Enciclopédia, Hegel (1969, p. 13) já dizia que a exposição presente “estabelece uma nova elaboração da filosofia conforme um método – que, como espero, ainda será reconhecido como o único verdadeiro e idêntico ao conteúdo”.

A diferença entre Kant e Hegel corresponde, portanto, a diferenças de método. Enquanto Kant separava as formas do pensar do conteúdo, mantendo a tradicional visão da lógica formal que discutia a lógica como se a mesma se limitasse às regras do pensar sem se importar com o conteúdo, deixando o conteúdo para as ciências particulares com seus métodos particulares, Hegel inaugurou a lógica processual, relacional, de conteúdo, cuja preocupação envolvia apreender todo o existente, tanto as ciências naturais quanto a história humana, sob o impacto da Revolução Francesa e da restauração.

(Capítulo 1 do livro “Marx e o núcleo racional da dialética de Hegel”, Editora Alfa-Omega. 2013.)


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