Lulismo e a estratégia de conciliação de classes: faltou um programa?

Em polêmica suscitada por recentes posições de Gilberto Maringoni, o autor trata da estratégia da conciliação de classes com a qual Lula e o PT governaram por 13 anos.

Bernardo Corrêa 28 ago 2017, 21:38

Uma polêmica com Gilberto Maringoni

“…eles nunca ganharam tanto dinheiro na vida como ganharam no meu governo. Nem as emissoras de televisão, que estavam quase todas quebradas; os jornais, quase todos quebrados quando assumi o governo. As empresas e os bancos também nunca ganharam tanto, mas os trabalhadores também ganharam. Agora, obviamente que eu tenho clareza que o trabalhador só pode ganhar se a empresa for bem. Eu não conheço, na história da humanidade, um momento em que a empresa vai mal e que os trabalhadores conseguem conquistar alguma coisa a não ser o desemprego” (Lula da Silva – entrevista a Emir Sader em maio de 2013).

Talvez um dos debates mais importantes que a esquerda brasileira e latino-americana esteja fazendo atualmente seja sobre o balanço da experiência do PT no governo. Junto à situação venezuelana, é um tema que já compõe o que poderíamos chamar de agenda pública da esquerda.

Inúmeros militantes e analistas têm insistido de que a lição mais importante a ser tirada é sobre o que Ricardo Antunes chamou de “mito da conciliação de classes” que o PT propalou. Há outros, entretanto, que têm dado ênfase na necessidade de construção de um programa para o Brasil, que teria sido esta a grande ausência da experiência lulista. Destas duas avaliações, evidentemente derivam distintas caracterizações. Há os que sustentam que se tratou de uma traição à classe trabalhadora e sua história de lutas, das quais o PT formou parte determinante. Outros buscam encontrar erros que seriam responsabilidade do conjunto da esquerda, debilidades de sua elaboração, despreparo para lidar com o Estado e o governo. Muitos apontam nos limites da “governabilidade” e do presidencialismo de coalizão as explicações para a colaboração de classes. Não me parece correto.

Trata-se de uma polêmica bastante profunda, pois envolve uma concepção de Estado, e no terreno político, demarca estratégias conflitantes entre si. Além disso, também define a profundidade das lições que se deve tirar do lulismo. A primeira pergunta que salta à vista é: qual o objetivo de governar o Estado, pela via eleitoral, sem que se altere sua natureza de classe por meio de uma revolução?

Há quem diga que em uma estratégia revolucionária não cabe esta tática. Não é meu caso. Não há que se ter ilusões bernsteinianas de que é possível que a maioria social dos trabalhadores possa expressar-se gradualmente em maioria parlamentar, tampouco de que é possível modificar a natureza do Estado burguês por mera “vontade política”, para usar um termo em voga.

A chave para responder à pergunta me parece que está justamente na visão processual desta tática. No final do anos 90, início dos 2000, quando ainda fazíamos a luta interna no PT contra as posições de colaboração de classes da direção lulista, em um encontro do Bloco de Esquerda do PT no Rio de Janeiro, o militante histórico Vladimir Palmeira fez uma definição de que nunca vou me esquecer. Ele dizia que um governo de esquerda eleito deveria levar as barreiras da legalidade ao limite da ilegalidade, para então construir uma nova legalidade. Evidentemente, não estava se referindo a ser corrompido por empreiteiras ou cooptado pelos negócios da burguesia e seus partidos, mas da necessidade de ir além dos limites que a legalidade impõe, articulando as medidas governamentais à mobilização social, como forma de superar estes limites. Ou seja, trata-se de utilizar a posição adquirida na superestrutura da sociedade capitalista para modificar as prioridades governamentais e o próprio regime político, esgarçar os mecanismos da democracia representativa e, dessa forma, redesenhá-lo transitando a uma democracia direta ou participativa.

Eu agregaria à definição de Vladimir que a posição no aparelho de Estado abre a possibilidade de uma administração dos conflitos sociais, sendo que a tarefa do governo não deve ser apaziguar tais conflitos, pois são eles que revelam os próprios limites da sociedade capitalista e tensionam o governo a dar passos adiante em sua estratégia. A tarefa primordial é modificar a relação entre a sociedade política e a sociedade civil, valendo-se dos conflitos sociais existentes. Ampliar os espaços de participação política da maioria do povo, para que este constitua uma espécie de contrapoder frente ao “comitê executivo dos negócios da classe dominante”. De certa maneira, governar significa produzir uma agenda de conflitos sociais que favoreçam o exercício da função hegemônica. Como bem diz Marcelo Freixo, quem diz governar para todos está mentindo para alguém.

A estratégia do PT no governo foi exatamente o oposto. Ela partia do pressuposto de que o Estado democrático de direito, este belo apelido para o Estado burguês, é uma instituição que pode ser utilizada para equilibrar os conflitos de classes, arbitrar esta luta por meio de reformas e um programa que possa ser uma síntese dos interesses dos de baixo e dos de cima, na fórmula de Lula “o trabalhador só pode ganhar se a empresa for bem”. Pela própria natureza do Estado, é impossível implementar este “ganha-ganha”. As concessões aos trabalhadores foram mediadas pela desmobilização dos movimentos sociais e pela abertura de novos negócios, muitos com financiamento público e isenções fiscais aos empresários. Por isso que Lula afirmava que “eles nunca ganharam tanto dinheiro na vida como ganharam no meu governo”. Três exemplos são chave.

O FIES e o ProUni possibilitaram o acesso de muitas pessoas às universidades privadas no país, algo importante. Por outro lado, o mecanismo de endividamento de estudantes, ao ter o governo como fiador, garantiu risco zero aos empresários do ramo frente a uma possível (e provável) inadimplência, hoje em 53%. Em 2014, havia cerca de 7,8 milhões matriculados no ensino superior, sendo que 75% das matrículas concentradas na rede privada (5,9 milhões). Após a fusão entre as empresas Kroton e Anhanguera em 2013, a Kroton Educacional se tornou a maior do mundo no ramo, obtendo um crescimento de 22.130%, passando a valer quase 5 bilhões de reais na Bolsa de Valores. A empresa é de Walfrido Mares Guia, político mineiro envolvido no “Mensalão Tucano”, ex-ministro de Lula (de 2003 a 2007) e dono do jatinho que levou Lula a Curitiba na audiência com o juiz Sergio Moro. Mares Guia também foi um dos maiores doadores da campanha de Haddad à prefeitura de SP, quando ministro da Educação, ele promoveu reformas no FIES que multiplicaram os lucros e o valor de mercado das universidades privadas.

O “Minha Casa, Minha Vida” foi o principal programa habitacional do lulismo. Milhões tiveram acesso à casa própria. Entretanto, as unidades reservadas à população de baixa renda (faixa 1) ficaram sob responsabilidade da empresa Bairro Novo, braço da Odebrecht. Criada em 2007, a Odebrecht Realizações Imobiliárias desenvolve projetos residenciais, empresariais, comerciais, hoteleiros e tornou-se pioneira em utilizar casas pré-moldadas para atender à demanda do Minha Casa Minha Vida faixa 1, por meio da venda de debêntures à Caixa Econômica Federal (quase com exclusividade por monopolizar a tecnologia no país) abriu um novo mercado atendendo à demanda da população de baixa renda, compartilhando novamente a margem de risco do investimento com os cofres públicos. Não há nada valioso a um capitalista que novos mercados sem risco.

Por fim, a chamada política externa saudada por muitos como progressista, propalava a falácia da integração regional, mas foi de fato uma expansão internacional de capitais brasileiros. Foi uma política de governo, incrementada por vultosos financiamentos públicos do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No lulismo, o BNDES aprofundou um padrão de acumulação do capitalismo brasileiro iniciado com as privatizações na era FHC, baseado essencialmente na formação e fortalecimento de conglomerados privados fomentados com recursos públicos. Os contatos públicos tornaram-se catalisadores para novos negócios de empresas multinacionais brasileiras. Encabeçaram a lista desta expansão a JBS-Friboi (Agronegócio), a Odebrecht (Construção), Coteminas (Têxtil), a Gerdau (Siderurgia). Difícil pensar em casualidade no fato de que as mesmas estão entre as empresas que mais doaram recursos para a campanha de Dilma em 2014.

A hegemonia lulista caracterizou-se por um bloco de poder destas frações burguesas aliadas a uma “financeirização da burocracia sindical”, nas palavras de Ruy Braga (2016):

“(…) o sindicalismo lulista transformou-se não apenas em um ativo administrador do Estado burguês, mas em ator-chave da arbitragem do próprio investimento capitalista no país. Por meio da ocupação de postos nos conselhos dos fundos de pensão e dos bancos públicos a alta burocracia sindical ‘financeirizou-se’, isto é, fundiu seus interesses de camada social privilegiada ao ciclo de acumulação do capital financeiro” (BRAGA, O fim do lulismo e o retorno da luta de classes, 2016, p.88).

Por meio de concessões aos de baixo e o “consentimento ativo das direções sindicais”obteve “o consentimento passivo das massas”. A corrupção e a cooptação foram as principais mediações da acumulação pós-fordista e da dominação política capitalista. O projeto garantiu até a explosão de protestos em junho de 2013 e o advento da crise econômica, também o consentimento e o lucro dos de cima, além do transformismo do próprio PT.

Evidentemente, toda estratégia está subordinada a uma determinada correlação de forças, não somos ingênuos de achar que se pode brigar com toda burguesia ao mesmo tempo. Neste marco, é possível admitir acordos ou concessões a determinadas frações da classe dominante, pois, afinal de contas, não estamos falando de um governo produto de uma revolução social. Mas o que caracterizou o governo petista não foi uma estratégia dos de baixo com algumas concessões à burguesia, mas um projeto hegemonizado por frações da burguesia e da burocracia sindical, com algumas concessões aos trabalhadores. Como se vê, não se trata de uma ausência de programa ou de estratégia, sim, de uma estratégia de conciliação de classes, sob um programa social-liberal. Uma espécie de neoliberalismo descafeinado.

Que Lula reivindique esta estratégia não pode nos surpreender, o que realmente surpreende é que frente à crise do lulismo militantes que estiveram na oposição de esquerda ao governo aceitem alguns de seus pressupostos. As novas vanguardas surgidas após as Jornadas de Junho, a Primavera Feminista, a onda de ocupações de escolas, a luta por moradia nas cidades, vidas negras importam, entre outras, não devem confundir-se sobre as lições do governo petista. O fim deste ciclo também é a abertura de um novo e todas as unidades de ação com setores do lulismo que a conjuntura pós-Temer nos impõem, não pode trazer ilusões com o passado.

O programa de fundação do PSOL, ainda que não seja uma fórmula pronta e acabada como ele mesmo alerta, aponta de forma nítida o princípio irrenunciável de um projeto realmente transformador no Brasil:

“Nossa base programática não pode deixar de se pautar num principio: o resgate da independência política dos trabalhadores e excluídos. Não estamos formando um novo partido para estimular a conciliação de classes. Nossas alianças para construir um projeto alternativo têm que ser as que busquem soldar a unidade entre todos os setores do povo trabalhador – todos os trabalhadores, os que estão desempregados, com os movimentos populares, com os trabalhadores do campo, sem-terra, pequenos agricultores, com as classes médias urbanas, nas profissões liberais, na academia, nos setores formadores de opinião, cada vez mais dilapidadas pelo capital financeiro, (…). São estas alianças que vão permitir a construção da auto-organização independente e do poder alternativo popular, para além dos limites da ordem capitalista. Por isso, nosso partido rejeita os governos comuns com a classe dominante” (Programa aprovado no Encontro Nacional de fundação do PSOL, realizado nos dias 05 e 06 de junho de 2004).

Me parece que perder esta bússola pode nos levar ao naufrágio, junto àqueles que apontavam o norte para o caminho oposto e já começaram a afundar.


Nota do autor

1 BRAGA, Ruy. O fim do lulismo e o retorno da luta de classes, 2016, p.88 in: SINGER, André e LOUREIRO, Isabel (org,) As contradições do lulismo: a que ponto chegamos?, São Paulo, Boitempo, 2016.


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