Os processos de Moscou
Trechos do livro do historiador francês sobre o deslanchamento do processo de prisões e execuções em massa dos bolcheviques entre 1937-38.
O golpe de teatro
Moscou, 1 de janeiro de 1936. Grandes cartazes reproduzem as declarações de Stalin: “A vida é melhor, a vida é mais bonita”. Os observadores ocidentais não pensam em desmenti-lo: os armazéns de Moscou oferecem ao consumidor uma extensa variedade de produtos industriais e agrícolas, as ruas fervilham, a circulação automobilística é intensa… O décimo nono ano da revolução poderia muito bem ser o início de uma nova era, marcando o fim de uma prolongada guerra civil.
De 1930 a 1934, a U.R.S.S. viveu quatro anos terríveis. No entanto, conseguiu sobreviver e, ao fim, parece sair do pesadelo. Relaxa-se a pressão sobre os camponeses; põe-se fim ao racionamento, a partir de janeiro de 1935. Consolidam-se os progressos da indústria pesada, e a ambição comunista de “transformação do mundo” parece encontrar sua justificação no início de uma mudança decisiva deste imenso espaço atrasado rumo a um país industrial. A partir de 1935, o plano quinquenal já não tem como principal objetivo a construção de altos fornos, fundições e barragens. Ao contrário, ele prevê também a produção de bens de consumo e o desenvolvimento da indústria leve. A grandiosa realização do metrô de Moscou, com seus mármores e esculturas oferecidas aos usuários, parece ser o símbolo desta mudança: o encarniçado trabalho realizado durante os anos negros encontra hoje sua recompensa e os comunicados de vitória se traduzem tanto na melhoria das condições de vida como nas estatísticas de produção industrial.
O Ocidente começa a levar a sério este país, onde milhões de jovens dominam a natureza, criam, constroem, edificam; onde o progresso da saúde, da educação, do emprego, não são os únicos signos espetaculares de uma transformação sem equivalente desde a grande expansão do capitalismo industrial do século XIX.
A estes índices impulso material é preciso acrescentar certas mostras de distensão. Algumas igrejas voltam a abrir suas portas, os sinos badalam novamente. Abolem-se medidas de exceção promulgadas contra pessoas de origem burguesa ou nobre, adotadas durante os anos de guerra civil. Os camponeses ricos, os kulaks deportados durante a época da coletivização são anistiados depois de anos de trabalho “corretivo”. O otimismo dos observadores ocidentais vê-se reforçado com o anúncio feito por Molotov em 6 de fevereiro a respeito de uma nova Constituição cujo objetivo seria colocar fim às medidas de discriminação em matéria eleitoral, instaurando-se o sufrágio universal, indiscriminado, direto e secreto. Tal Constituição, “a mais democrática do mundo”, “monumento da sabedoria stalinista”, é adota pelo Executivo dos Sovietes em 5 de maio e publicada em 12 de junho: seu texto, traduzido para todos os idiomas, será difundido no estrangeiro com o título de “O povo feliz”. Jornalistas e comentaristas ocidentais destacam o papel dirigente do Partido Comunista afirmado pelo artigo 126 da mesma, mas ao mesmo tempo se comprazem em sublinhar o caráter democrático-parlamentar de suas instituições e de seu funcionamento, a afirmação do princípio de liberdade de consciência, de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de inviolabilidade de domicílio e da correspondência, a supressão de sanções e da repressão administrativa.
Com efeito, os aspectos ‘revolucionários’ desaparecem da constituição da U.R.S.S., que já não tem nada de propriamente ‘soviética’, ainda que conserve a palavra ‘soviet’ para designar as assembleias de tipo parlamentar. Precisamente este traço contribui para que numerosos especialistas e uma parte da opinião pública mundial acreditem numa distensão real da luta pós-revolucionária, no início de uma fase de desenvolvimento harmonioso. A U.R.S.S. teria passado por uma espécie de loucura de juventude revolucionária; a partir daquele momento, dispõe-se a somar ao concerto de potências cujo respeito tenta obter através de relações diplomáticas, nas quais se presta a ‘fazer o jogo’.
Entretanto, logo irá se impor uma imagem muito distinta: em 14 de agosto, um comunicado oficial anuncia o começo do que será a era dos “processos de Moscou”. Em agosto de 1936, em janeiro de 1937, em março de 1938, vão ter lugar em público idênticas cenas ante o colégio militar da Corte Suprema da U.R.S.S.; acusados que haviam sido companheiros e colaboradores de Lenin, fundador do Estado e do Partido, dirigentes revolucionários mundialmente conhecidos, cujos simples nomes evocam ainda, para certas pessoas, a epopeia revolucionária de 1917, são acusados dos piores crimes, são proclamados assassinos, sabotadores, traidores e espiões; todos afirmam seu ódio a Trotsky, vencido na luta aberta no partido depois da morte de Lenin; todos cantam louvores a seu vencedor, Stalin, o ‘chefe genial’, que ‘guia o país com mãos firmes’.
Pouco da execução dos condenados do primeiro processo, o socialista austríaco Otto Bauer escreve: “É uma enorme desgraça para o movimento operário internacional”. Outros, ao contrário, alegram-se. Charles Maurras,em L’Action Française, proclama que o governo francês já não pode ignorar que os trotskistas estão ‘a soldo da Alemanha’. O fascista italiano Messaggero afirma: “Stalin tinha razão. O que seus adversários consideravam como traições não eram mais que concessões, tão inevitáveis como necessárias, à lógica”. Elogiava-o por ter restaurado “uma economia que leva em conta o indivíduo, uma escala de valores, uma tradição nacional”. A imprensa dos emigrados russos brancos mostra-se satisfeita, enquanto o fascista belga Léon Degrelle ataca ao “judeu Trotsky” nos seguintes termos: “Não veria nenhum inconveniente em que se alguém cravasse entre as suas omoplatas um punhal de trinta centímetros neste hebreu com as patas manchadas de sangue de milhares de operários russos”. Todos os partidos comunistas do mundo, todas as seções da Internacional Comunista, seguem o exemplo do fiscal e da imprensa russa. Na imprensa comunista e simpatizante, os intelectuais companheiros de viagem tomam também posição a favor de uma verdadeira campanha de terrorismo intelectual contra os que duvidam; todos os que defendem Trotsky e seus cúmplices são acusados de converter-se em ‘advogados de Hitler e da Gestapo’.
A causa aberta ante o tribunal de Moscou transcende rapidamente o movimento operário e socialista. As vozes dos defensores dos acusados, militantes socialistas, escritores independentes, as de Trotsky, Modigliani, Victor Serge, Carlo Tresca, Rosmer, Dewey, logo serão afogadas. De um processo a outro, as pessoas parecem acostumar-se ao inverossímil e inclusive ao sórdido, renunciando a fazer perguntas e às vezes a compreender. Os processos não provocam nenhuma crise de consciência no movimento operário que, poucos anos antes, levantara-se em defesa de Sacco e Vanzetti: os dirigentes comunistas dedicam-se a evitá-lo, e os socialistas que não seguem o exemplo servem-se dos processos para tentar justificar o que, sem dúvida, sua própria política tem de mais criticável. Trotsky, refugiado no México depois de errar de um país a outro, envia a imprensa perguntas, declarações, testemunhos, uma autêntica pilha de escritos, da qual só será publicada uma pequena parte. No entanto, o mundo coloca sua atenção em outros lugares. Há anos, os operários europeus estão pendentes da Alemanha, onde o triunfo do movimento nazi de Adolf Hitler conduz à destruição do movimento socialista e sindical, ao reinado de uma barbárie que algumas ilusões reformistas tinham acreditado desterrada para sempre nos ‘países civilizados”. Enquanto se desenvolvem os dois primeiros processos, os olhares estão fixos, há semanas e meses, no cerco de Madri.
O que importa a muitos homens de boa fé e escassa visão que alguns acusados que se admitem culpados publicamente –“Se são inocentes, quem os impede de dizer isso”- sejam fuzilados em Moscou?
Stalin fornece à República espanhola as armas que lhe fazem falta. O que importa que sua GPU persiga ali os revolucionários, estrangeiros ou espanhóis, trotskistas, libertários ou comunistas independentes? A frente está na Espanha. Georges Dimitrov, dirigente da Internacional Comunista, resume em linguagem de promotor os lugares-comuns postos em circulação pelos que sabem ou duvidam, mas se calam ou gritam em vão.
O que importa quão pronto se faça evidente que a empresa stalinista é a contrapartida de toda ajuda e o reverso da medalha. O que importa que Stalin conceda sua ajuda a conta-gotas e abandone a própria sorte os combatentes espanhóis. O que importa que os homens que encarnaram na Espanha o apoio da U.R.S.S., os Koltsov, Rosenberg, Stachevski, Antonov-Ovseenko, Goriev, sejam chamados e fuzilados em silêncio, como se a ‘ajuda’ a Espanha tivesse sido um mal empreendimento que é preciso dissimular. Poucos são os que o sabem. Menos ainda os que o dizem; e a estes, por outro lado, não lhes é feito o menor caso. A guerra oculta o autêntico conhecimento de todos os atos que a precipitaram e a fizeram inevitável. Ela destrói tudo. Os velhos bolcheviques de Moscou estão bem mortos.
O próprio desenvolvimento da guerra confirma este juízo. A heroica resistência do povo russo é atribuída ao chefe que organizou os processos, e “fez abortar a 5.ª coluna”: “Stalin foi lúcido, reagiu a tempo”, proclamam os observadores ocidentais, que comprovam que o povo russo não teve seus Quisling e quer a Stalin porque luta até a morte contra Hitler… “Stalin ganhou a guerra: logo tinha razão”, concluem estes mesmos observadores para os quais a história se reduz a registrar fatos consumados.
Será necessária a crise do mundo stalinista do pós-guerra, o conflito com a Iugoslávia, os grandes processos de Budapeste, Sofia e Praga, para sacudir de novo as consciências, colocar dolorosas interrogações, desenterrar o cadáver dos processos de Moscou. A propaganda comunista contribui para isso apesar de si mesma. “O Processo Rajk – escreve um enviado especial a Budapeste – parece-se com os processos de Moscou como um processo de traição a outro processo de traição frente a um Tribunal do Povo”. Muitos espíritos inquietos pela fragilidade das teses da acusação haviam admitido o “sacrifício do velho bolchevique” ou o sentimento de culpabilidade inerente à “alma eslava” como explicação de acusações que exigiam levar em conta a ‘Razão do Estado’ e a ‘História’.
Estas hipóteses revelam-se agora insuficientes. Em Sofia, Traitcho Kostov nega ante a audiência pública e não torna a aparecer. Mindszenty, que é um grande proprietário, húngaro e, por consequência, prelado, confessa complacente. Nestes casos, o contexto internacional é distinto.
Os dirigentes comunistas iugoslavos, postos em evidência pelo processo de Rajk, veem-se obrigados a apresentar novamente o significado dos processos de Moscou. No marco da guerra fria, os processos de Moscou – cujo mito começa a ser gestado – tornam-se uma arma. Denuncia-se o estado de opressão, sem vergonha alguma, tanto à direita quanto à esquerda. Quando, após a morte de Stalin, restabelecem-se as relações entre Moscou e o que a até a véspera era a “camarilha de Tito”, “continuadora da obra dos provocadores trotskistas”, aparece a primeira brecha e se entreabrem os sumários.
Cremos que já é possível finalizar. Os documentos são suficientemente numerosos e explícitos por si mesmos e pelas relações que permitam estabelecer a fim de que sejam objeto de estudo e não de polêmica. Era necessário igualmente fazê-los reviver: no que concerne a nosso trabalho, nos esforçamos para apresentar ao leitor os fragmentos mais amplos das atas estenográficas das audiências públicas, evitando, porém, as repetições fastidiosas, e também em dar comentários o bastante completos para esclarecer, na medida do possível, os debates, sem que por isso tenhamos tentado situar-nos a cada momento no lugar dos protagonistas do drama. Omitiu-se em parte, e deliberadamente, o processo Zinoviev, muito mais conhecido, e brilhantemente analisado, não faz muito tempo, por Gérard Rosenthal. Preferimos utilizar textos e exemplos dos processos posteriores de Piatakov e Bukharin. Teremos alcançado nossa finalidade se o leitor tem a sensação de que lhe foi oferecida a possibilidade de formar uma opinião pessoal. No nosso entendimento, os processos de Moscou constituem um dos acontecimentos mais importantes da primeira metade do século XX, e seu interesse ultrapassa amplamente o marco das preocupações do especialista em história russa.
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Capítulo II – Homens que confessam
O espetáculo do dócil grupo no banco dos acusados como uma espécie de rebanho resignado a sua própria sorte não surpreende a ninguém. Desde agosto de 1936, a opinião mundial familiarizou-se com este tipo de cenas tão similares umas a outras. Veteranos revolucionários, companheiros de Lenin, velhos bolcheviques, confessaram publicamente ter cometido os piores crimes, e reclamaram dos juízes uma estrita severidade, ao mesmo tempo em que proclamavam seu ódio a Trotsky e louvavam Stalin, o chefe tão amado, a quem, no entanto, a maioria deles havia ora combatido ora servido.
Em 1917, estes homens eram, há anos, revolucionários profissionais, organizadores de círculos operários, de sindicatos, dirigentes de greves e manifestações, teóricos do marxismo revolucionário.
Nos anos pós-revolucionários, durante a guerra civil, foram considerados pelo público russo e estrangeiro como figuras destacadas do regime, o coração do partido, o núcleo dirigente da Internacional.
O primeiro processo tem lugar de 19 a 24 de agosto de 1936. Grigori Zinoviev é, indiscutivelmente, seu personagem central. Nascido em 1883, militante desde os 17 anos, é um bolchevique de primeira hora. Organizador da fração bolchevique de São Petersburgo, publica o órgão de imprensa da fração e é eleito membro do Comitê Central clandestino em 1908. Nesta época, é o braço direito de Lenin, com quem compartilha as responsabilidades do partido na emigração. Sua estrela começa a empalidecer durante a revolução, quando dirige seu grupo de oposição à política de Lenin e combate a decisão deste de passar à insurreição, ainda que continue sendo membro do Comitê Central, e mais tarde, desde sua criação, do Comitê Executivo. Zinoviev foi também presidente do soviete de Petrogrado, “a Comuna do Norte”, e presidente do Executivo da Internacional Comunista, o partido comunista mundial.
Seu companheiro Kamenev pertence à mesma geração. Membro do partido em 1901, dirige, ainda estudante, a organização bolchevique no Cáucaso, e colabora com Lenin durante a emigração, sendo diretor do Pravda legal de 1913 a 1914. Detido e deportado, posto em liberdade pela Revolução, é também membro do Comitê Central e do Comitê Executivo, vice-presidente do Conselho e presidente do soviete de Moscou durante a guerra civil. Segundo a opinião pública russa na época da morte de Lenin, ambos os homens seguem a Lenin e Trotsky na hierarquia de dirigentes.
Junto a eles há outros curtidos revolucionários, dirigentes de primeiro plano: Ivan N. Smirnov, nascido em 1881, operário e membro do partido de 1899, membro do Comitê Central nos tempos de Lenin, e mais tarde membro do Comitê militar revolucionário, comissário político do V Exército Vermelho que sovietizou a Sibéria e mais tarde comissário do povo: em 1922, está a ponto de se tornar secretário do Comitê Central e somente no último momento – por Lenin considerá-lo indispensável na Sibéria – elege-se Stalin.
Evdokimov, nascido em 1884, operário, lenhador, marinheiro e revolucionário profissional bolchevique desde 1903, foi comissário do exército, dirigente dos sindicatos de Petrogrado e membro da comissão central do partido. Um pouco mais jovem -nascido em 1887- Bakaiev, sublevado em 1905, passou seis anos na prisão durante a dominação czarista. Comissário político da frente de Petrogrado, dirigiu a Cheka durante a guerra civil e foi também membro da Comissão central de controle.
O segundo processo tem lugar de 23 a 30 de janeiro de 1937. O primeiro acusado é Iuri Piatakov, de quarenta e sete anos. Filho de um rico industrial, recebeu uma sólida educação, fala diversos idiomas e possui uma vasta cultura. Anarquista desde os dezoito anos, bolchevique aos vinte, distingui-se por seus escritos teóricos durante a emigração, e foi um destacado ativista na etapa revolucionária: presidente do conselho de comissários do povo da Ucrânia em 1917, organiza a luta clandestina contra os russos brancos, é detido, condenado a morto, e posto em liberdade pelos guardas vermelhos nas vésperas de sua execução. Dirige a expedição da Crimeia de maneira ‘tão genial como intrépida’, como dirá mais tarde Clara Zetkin. Depois do triunfo da Revolução, converte-se num dos mais importantes técnicos da economia soviética, e num dos principais dirigentes da luta pela reconstrução. É um dos seis bolcheviques citados por Lenin em seu ‘Testamento’, o único, além de Bukharin, da geração jovem. Foi vice-presidente do conselho de economia nacional, presidente do Tribunal Supremo e membro do Comitê Central a partir de 1921.
Karl Radek tem cinquenta e dois anos. Veterano do movimento social-democrata polonês e alemão, foi neste último o principal organizador de uma oposição de esquerda. Durante a guerra, aproxima-se de Lenin e, a partir de abril de 1917, assegura os laços internacionais dos bolcheviques. Em 1919, durante sua estadia na Alemanha para assistir a fundação do Partido Comunista, é detido depois das jornadas de janeiro e permanece vários meses na prisão. Embora não pertença formalmente ao partido até 1917, foi membro do Comitê Central – de 1919 a 1924- e do Comitê Executivo da Internacional, como “mentor” do partido alemão.
Grigori Sokolnikov, quarenta e nove anos. Um autêntico velho bolchevique: filho de um médico, membro do partido aos dezessete anos, emigra a Paris, onde realiza brilhantes estudos de direito e economia política. Companheiro de Lenin na Suíça, regressa com ele a Rússia e pouco depois dirige o Pravda, em união com Stalin. Durante a guerra civil é comissário político em diversas frentes e destaca-se como especialista em questões financeiras – é comissário do povo da Fazenda em 1918, e de 1922 a 1927 dirige a nacionalização da banca e leva a cabo a reforma financeira. Pertence ao Comitê Central desde agosto de 1917.
Leonid Serebriakov também é, aos quarenta e nove anos, um veterano. Operário aos nove anos, bolchevique aos dezessete, junto com Ordhonikidze, emissário de Lenin, põe-se em contato com os diversos grupos clandestinos, com o fim de organizar a famosa conferência de Praga, de onde surge o partido bolchevique que irá triunfar em 1917. Detido em seu regresso, possui tantos anos de prisão como de atividade clandestina. Destacado combatente durante a guerra civil, suas qualidades humanas contribuem para sua designação como secretário do Comitê Central, função delicada, que assume de 1920 a 1921.
Parece que o desfile de personagens da velha guarda bolchevique pelo banco da infâmia tinha terminado depois do terceiro processo, de 2 a 13 de março de 1938, e da aparição ante o Tribunal de Nikolai Bukharin, a quem Lenin chamou de “o menino mimado do partido”. Nascido em 1888, filho de professores, é um estudante brilhante e um militante precoce: bolchevique desde 1906, é preso em diversas ocasiões, mas consegue escapar, e finalmente, emigra em 1910. Convertido em revolucionário profissional, vive na Polônia e mais tarde na Áustria, de onde é expulso quando a guerra é declarada; refugia-se na Suíça e posteriormente na Noruega e, em outubro de 1916, passa aos Estados Unidos, onde edita Novy Mir e entra em contato com Trotsky, que colaboração em tal publicação. Depois de fevereiro de 1917, traslada-se para a Rússia passando pelo Japão e pela Sibéria. Desde sua volta, é um dos dirigentes bolcheviques. Em agosto de 1917 é eleito membro do Comitê Central e em dezembro passa a desempenhar o cargo de redator-chefe do Pravda. A partir de 1919, é membro do Comitê Executivo. Durante os anos 20, o partido o considera seu principal teórico.
Alexei Rykov: cinquenta e sete anos. Filhos de camponeses, estudante, é detido pela primeira vez aos dezenove anos por ter organizado uma manifestação em 1 de maio. É dos primeiros militantes profissionais do Iskra, partidário de Lenin e bolchevique de primeira hora, depois da cisão de 1903. Organizador de comitês clandestinos, em 1905 participa do Congresso de Londres; aos vinte e quatro anos é eleito membro do Comitê Central. Mais tarde, retorna à Rússia onde leva a cabo um infatigável trabalho organizativo que precipita sua detenção; libertado pela Revolução de 1905, é deputado do soviete de São Petersburgo; detido de novo em várias ocasiões, consegue em fim evadir-se. Em agosto de 1917, é membro do Comitê Central e, ao eclodir a revolução, comissário do povo no ministério do Interior; em 1918, passa a ocupar o cargo de presidente do conselho de Economia Nacional e, em 1923, é designado membro do Comitê Executivo.
Nikolai Krestinski: cinquenta e três anos. Começa a militar aos dezoito anos, durante sua época de estudante; velho bolchevique desde 1903 sofre também os efeitos da repressão: permanece vários anos encarcerado e vive no exílio. Em 1914, milita na organização comunista da fábrica Putilov. Em 1917, dirige os bolcheviques do Ural e em agosto do mesmo ano é eleito membro do Comitê Central. De 1919 a 1921 é secretário do Comitê Central e membro do Comitê Executivo.
Christian Rakovsky, setenta anos, destaca-se mais como revolucionário europeu que russo. Nascido na Bulgária, militante socialista aos dezesseis, realiza brilhantes estudos de medicina na França. É uma conhecida figura da II Internacional; desde 1893, está pessoalmente ligado a Jules Guesde e a Rosa Luxemburgo e, a partir de 1913, a Trotsky. Deputado na Romênia, redator-chefe do jornal socialista romeno, polemiza contra os socialistas franceses durante a guerra. A Revolução o tira do cárcere: em 1919, é designado membro do Comitê Central e, até 1923, desempenha o cargo de presidente do Conselho de Comissários do Povo da República Soviética da Ucrânia.
Junto a estes personagens de primeiro plano, os demais acusados não representam, no entanto, o papel de meros comparsas: ao lado de Zinoviev e Kamenev sentam-se, em 1936, homens como Mrachkovski, nascido na prisão, bolchevique desde 1905, dirigente de um grupo de ativistas durante a guerra civil, e mais tarde comandante da região militar do Volga; Dreitser, oficial durante a guerra civil e um dos chefes do Exército Vermelho que lutou contra Kolchak. Em 1937 comparecem, junto com Piatakov, Muralov, agrônomo convertido em revolucionário profissional, antigo combatente de 1905, chefe dos guardas vermelhos que ocuparam o Kremlin em 1917; Boguslavski, velho bolchevique, destacado ativista durante a guerra civil e mais tarde presidente do Conselho restrito da R.S.F.S.R.; e Drobnis, sapateiro, militante aos quinze anos, com seis anos de cárcere, duas condenações a morte e… uma execução por parte dos russos brancos durante a guerra civil, execução a qual sobreviveu depois de haver sido alvejado por balas.
Em 1938, durante o terceiro processo, comparece junto a Bukharin um grupo de homens com uma história similar: Rosengoltz, quarenta e nove anos, militante desde os onze, detido aos dezesseis, delegado no congresso do partido aos dezessete, organizador do Exército Vermelho, membro do Comitê Militar Revolucionário e comissário do povo; Iagoda, membro do partido aos dezessete anos, deportados aos vinte e um, um dos responsáveis pela organização militar do partido em 1917, um dos fundadores e mais tarde dirigentes da Cheka, que se tornará GPU e depois NKVD; Fayzulla Jodiaev, um dos primeiros comunistas em terras muçulmanas; Zelenski, responsável do partido na capital imediatamente depois da insurreição vitoriosa, e os antigos comissários do povo Grinko e Chernov.
Ao lado deste núcleo de réus, comparecem também outros comunistas mais jovens, os verdadeiros comparsas: Ter Vaganian, armênio, vinte e quatro anos em 1917, considerado por Lenin um teórico; os operários bolcheviques Chestov e Livchitz, militantes clandestinos convertidos em engenheiros nas universidades operárias depois da guerra. Finalmente, outros homens dos quais unicamente se conhece o que dizem de si mesmos, simples desconhecidos que adquirem, no entanto, certa importância durante o processo: um tal Arnold, que disse ter recebido a “marca vexatória do bastardo” e que foi, sucessivamente, vagabundo, desertor do Exército russo e depois do americano, condenado por roubo, e que, ao voltar para a URSS em 1923, filia-se ao partido, ao mesmo tempo em que se declara franco-maçom e protestante; ou um tal Hrasche, austríaco ou tcheco, comunista em 1917, que desaparece para regressar mais tarde num comboio de prisioneiros russos.
Personalidades diversas
Somente a pátina originada com o passar do tempo, que dá uniformidade às matizes e atenua os contrastes, permite mostrar aos homens da velha guarda bolchevique como gloriosos veteranso com idênticas biografias, homens cortados pelos mesmo padrão e estreitamente unidos. Na realidade, o partido bolchevique era, em tempos de Lenin, um organismo vivo, agitado por conflitos ideológicos, por desacordos sobre a estratégia, a análise da situação e as tarefas da organização. Cada um destes homens participava sem reservas na luta política, tomava partido por teses opostas: enfrentavam-se entre si com violência, nenhum se submetia facilmente. Suas relações pessoais eram o resultado de um longo passado de discussões e polêmicas, de lutas e compromissos, de acordos e antagonismos, de rancores e fraternidade na vitória ou na derrota.
Em 1905, Rykov está a frente do grupo de militantes profissionais vindos da Rússia aos quais Lenin batiza com o nome de “camitards’: opõe-se a este e em diversas ocasiões consegue que esteja em minoria no congresso. A partir de 1908, o partido e a fração bolchevique entram em crise: Bukharin simpatiza com os ‘esquerdistas’ da fração ‘otzovista’, que pretendem boicotar eleições e sindicatos, enquanto Rykov e Sokolnikov, entre outros, são as cabeças da tendência ‘conciliadora’ dos ‘bolcheviques do partido’, próximos às posições de Trotsky, que imporá a Lenin uma efêmera unificação. Quando eclode a guerra, Zinoviev apoia a postura ‘derrotista’ de Lenin, mas Kamenev, durante seu processo público na Rússia, discorda disso. Piakatov e Bukharin polemizam com Lenin sobre a questão nacional e o problema do Estado. Lenin tem palavras muito duras para eles e igualmente para Racovski e Radek, já muito próximos dele, mas separados ainda por algumas divergências. Em abril de 1917, Lenin, apoiado por Zinoviev e Bukharin, mostra-se contrário à linha ‘conciliadora’ aplicada pelo partido em sua ausência; suas ‘teses de abril’ serão duramente combatidas por Kamenev e Rykov. Em outubro, Zinoviev e Kamenev atacam a decisão inspirada por Lenin de preparar a insurreição e a tomada do poder. O Comitê Central rechaça sua expulsão, reclamada por Lenin: Stalin advoga pela conciliação. No ano seguinte, em 1918, Bukharin, Piatakov e Radek, entre outros, formam a opisção chamada dos ‘comunistas de esquerda’, em relação ao tratado de paz separada com a Alemanha, que levará ao partido à beira da cisão. Os homens que em 1917 opuseram-se a Lenin estão com ele desta vez. Em 1920, durante a discussão sobre os sindicatos, os velhos bolcheviques voltam a dividir-se:Zinoviev, Kamenev,
Sokolnikov e Rykov apoiam as teses de Lenin, enquanto que N. Smirnov, Krestinski e Piatakov, entre outros, mostram-se partidários das teses apresentadas conjuntamente por Trotsky e Bukharin.
Estas discussões produziam-se diariamente na vida interna do partido, onde a crítica dos dirigente era considerada o primeiro deve: Lenin estimava que a principal virtude de um militante consistia no fato de “não poder dizer nenhuma palavra que fosse contrária a sua consciência”. A vida política resolvia os desacordos. Rykov e Sokolnikov, depois de combater para conseguir a unidade com os mencheviques, algo que logo se mostra impraticável, estão junto com Lenin para organizar a cisão de 1912. Zinoviev e Kamenev opõem-se primeiro à insurreição, porque temem uma combate prematuro. Mais tarde, quando se torna patente que ninguém quer se aliar com os bolcheviques, abdicam de reclamar um governo de coalizão. No final de 1918, Bukharin reconhece que seus temores de um abandono da revolução mundial eram injustificados e une-se à revolução. Ninguém lhes jogará na cara sua oposição no passado: nestas querelas circunstanciais, as contradições desaparecem por si mesmas quando o partido soluciona os problemas que estas mesmas contradições foram colocadas.
Entretanto, este modo de vida não se prolongará para além de 1923. Durante a guerra civil e os duros anos de crise que seguem à vitória do Exército Vermelho, o partido, lentamente e de modo quase imperceptível no início, muda de natureza: agora está dominado por um aparato de funcionários nomeados desde acima e que gere a seu capricho a massa dócil e passiva dos novos adeptos. O X Congresso parece tomar consciência dessa evolução: adota uma resolução em relação à “democracia operária” que só será letra morta, tanto que a proibição das frações, proposta por Lenin por temor a uma fatal cisão num momento de extremo perigo, torna-se o argumento esgrimido pelos secretários para afogar todo o tipo de discussão e condenar qualquer tendência como ‘fracional’. O aparato controla os votos e impõe os seus homens. Contudo, deverão transcorrer muitos anos para que seu triunfo seja definitivamente assegurado pela autoridade um homem no qual encarnam ao mesmo tempo suas virtudes e seus vícios: Joseph Stalin, velho bolchevique, secretário-geral desde 1922. Em 1923, quando Lenin se vê afetado pela enfermidade que o manterá afastado da política e finalmente lhe ocasionará a morte, trama-se uma aliança em torno do controle do aparato: a troika dos velhos bolcheviques Zinoviev, Kamenev e Stalin consegue dominar o partido e torna-se o alvo dos ataques encabeçados por Trotsky e o grupo chamado ‘dos 46’. No debate sobre o Novo Curso, no final de 1923, Ter-Vaganian, Rosengoltz, Mrachkovski, Krestinski, Muralov, Serebriakov, Piatakov,Radek e Racovski apoiam Trotsky em suas teses sobre a restauração da democracia no partido. Bukharin, Rykov, Sokolnikov, Bakaiev e Evdokimov apoiam Zinoviev, Kamenev e Stalin, para os quais não existe nenhum perigo de burocratização do aparto, e que acusam os dissidentes de por em perigo a unidade do partido. Finalmente, vence a troika, e Zinoviev parece ser o verdadeiro sucessor de Lenin, apesar de que Rykov lhe sucede na presidência do Conselho de Comissários do Povo. De fato, é o secretário-geral quem, na realidade, controla o poder. Zinoviev e Kamenev dão-se conta disso em 1925, quando constituem a Nova Oposição, para qual arrastam Sokolnikov, Bakaiev e Evdokimov. No XIV Congresso somente obterão os votos da organização do Partido que controlam diretamente – a de Leningrado – e serão eliminados de todos os postos-chave. As distintas oposições reagrupam-se: Zinoviev, Kamenev e Trotsky serão os porta-vozes da Oposição Unificada, em luta contra o que chamam ‘fração Stalin-Bukharin’. Resultam derrotados no verão de 1927, e Zinoviev e Trotsky são expulsos, inclusive antes de se celebrar o congresso. A última discussão aberta havia terminado. Nos meses seguintes, inicia-se a última batalha, desta vez semi-secreta, dirigida por Bukharin e Rykov, contra a coletivização forçada da agricultura e os planos de industrialização excessiva – quando, em dezembro de 1929, capitulam os dirigentes da Oposição de Direita, abre-se uma nova era no partido, desde este momento domesticado e burocratizado, inteiramente submetido a Stalin.
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(Texto originalmente publicado em Communistes contre Staline – Massacre d’une génération, Fayard, 2003. Tradução da Equipe Movimento da versão em espanhol publicada pela Ediciones digitales Izquierda Revolucionaria – Versión 26 de mayo del 2008)