Supremacia branca em Charlottesville como subproduto de uma crise mundial

Em contribuição individual, Gilvandro Antunes compartilha suas reflexões sobre as manifestações racistas de Charlottesville apoiado em noções da Psicologia.

Gilvandro Antunes 19 ago 2017, 23:00

A questão histórico-sociológica

As mobilizações racistas ocorridas no dia 12 de agosto em Charlottesville, Estado da Virgínia (EUA), organizadas por grupos de supremacia branca, apresentam aspectos que devem ser analisados sob um ponto de vista histórico, sociológico e psicológico. Para além da repulsa, o que é diferente de ódio, que nos causa, este tipo de manifestação deve ser entendida, estudada e profundamente compreendida dentro dos critérios das ciências humanas. Para que, a partir disso, nossa ação política possa ter a totalidade do processo em questão.

Manifestações de ódio étnico-raciais têm-se espalhado com grande velocidade em todo mundo. Aliás, não é exclusividade da Europa e dos Estados Unidos. Os países afetados pelas guerras no Oriente Médio têm demonstrado forte intolerância étnica nas áreas ocupadas pelo Estado Islâmico. Todavia, as demonstrações de ódio étnico-raciais advindas da Europa e dos Estados Unidos apresentam um componente diferente das da região do Estado Islâmico, embora o conteúdo violento das divisões étnicas de áreas como no Iraque e na Síria tem apresentado atos de barbárie. Mas isso é devido ao componente altamente anômico dessas regiões. Onde se vê a total desintegração da legitimidade institucional e a total decomposição dos laços sociais formais.

Mas por que há diferença entre o ódio étnico racial do Estado Islâmico e dos grupos de extrema direita da Europa dos Estados Unidos? A questão principal está alicerçada na diferença do discurso que fundamenta tais relações de ódio nas distintas regiões. Nos territórios dominados pelo Estado Islâmico, o discurso, em síntese, é de origem religiosa, política, de clã, às vezes tribal. Ao passo que o que ocorre no Ocidente economicamente desenvolvido tem como origem a superioridade racial. Assim, trata-se de um ódio mais racional, que se edifica em conclusões pseudocientíficas, que obtiveram ao logo do século XIX e meados do século XX ampla aceitação acadêmica, governamental e, devido a isso, social. Ou seja, é um discurso que busca a eliminação (física ou social) do diferente alicerçada em uma pretensa legitimação.

O racismo enquanto elemento de dominação se consolidou mundialmente com o estabelecimento do modo de produção escravista no século XVI. A conquista violenta do continente por espanhóis, ingleses, portugueses, franceses e holandeses serviu fundamentalmente para que a Europa assumisse a frente do desenvolvimento econômico da época. Nesse sentido, a implantação do trabalho escravo alicerçado na grande propriedade privada voltada para a produção às metrópoles europeias foi o elemento crucial para tal desenvolvimento. Marx caracterizou a escravidão negra e indígena na América como parte da acumulação primitiva. Assim, vejamos:

“As descobertas das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva”

(…) O sistema colonial amadureceu o comércio e a navegação como plantas num hibernáculo. As sociedades monopolia (Lutero) foram alavancas poderosas da concentração de capital. Às manufaturas em expansão as colônias garantiam um mercado de escoamento e uma acumulação potenciada pelo monopólio de marcado. Os tesouros espoliados fora da Europa, diretamente pelo saqueio, escravidão e o latrocínio refluíam para a metrópole onde se transformavam em capital” (Karl Marx, O Capital, Editora Boitempo, Livro 1, páginas 821 e 823).

Foi através do regime de escravidão e da dominação colonial que a Europa toma a dianteira e estabelece o capitalismo como modo de produção vigente. Neste aspecto, a escravidão significa a máxima extração de mais-valia absoluta que se pode tirar de um ser humano. É no monopólio do comércio com a América e na máxima extração de mais-valia que o capitalismo deu seu salto de qualidade. Como cita Otavio Ianni em seu livro Racismo e Escravidão,

“(…) na essência do funcionamento do capitalismo e dos movimentos do escravismo, enquanto formação social, está um singular processo: a violência e a repressão abertas são as exigências políticas, sociais e culturais de relação de produção organizadas para produzir a extração de mais-valia absoluta” (Octavio Ianni, Capitalismo e Escravidão, editora HUCITEC, página 39).

Na mesma brochura, Ianni calcula que, em três longos séculos de escravidão, 9 milhões de negros foram traficados para a América. Isso, por seu lado, demonstra que, para além da extração da mais-valia absoluta em sua máxima potência, o comércio de escravos foi extremamente lucrativo para as potências europeias. Para que a escravidão possa ser expandida como uma relação de produção dominante para toda a América, ela precisa se legitimar de alguma forma. Estudos sociológicos sobre o Holocausto focados na análise do campo de concentração de Auschwitz demonstram que a legitimação para a crueldade em massa e de forma racionalizada passa pela desumanização do outro. É na condição de não humano que o outro pode ser escravizado e exterminado. É conhecida a posição da igreja católica de Roma que afirmou que os negros não possuíam alma. Ora, se só os seres humanos possuem alma no catolicismo, logo, aqueles que não a possuem não são humanos. Com o avanço das ciências no século XIX esse discurso da desumanização ganha outros contornos mais racionais. Desta vez, não mais para legitimar a escravidão já decadente, mas para legitimar a expansão territorial imperialista de países como Inglaterra e França. Bem, aí já temos duas peças importantes do tabuleiro do ódio racial ocorrido em Charlottesville, a desumanização e o discurso de superioridade racial.

Autores como Octávio Ianni e Florestan Fernandes dedicaram parte significativa de suas obras para abordar a questão do negro na transição da escravidão para o trabalho livre. Estes sociólogos em diversas passagens comparam este processo realizado no Brasil e nos Estados Unidos. Dois países de significativa presença negra, grandes áreas territoriais, mas com diferença também significativa de desenvolvimento econômico e social. Não caberá aqui desenvolver as diferenças e similaridades entre o racismo brasileiro e o norte-americano, pois a tese superficial de que um é mais velado e outro é mais aberto basta por agora. O fundamental aqui é analisar que o tipo de colonização de um e de outro foram fundamentais para tal diferenciação. O Brasil teve colonização meramente de exploração, baseada na vinda aventureira, como cita Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil, caracterizada pela vinda de homens e pela ausência de mulheres brancas. Ao passo que a colonização americana dos Estados Unidos se deu pela imigração de famílias inglesas fruto do excesso de mão-de-obra e da política de cerceamento do uso da terra na ilha britânica. Com uma população portuguesa, no início da colonização do Brasil, majoritariamente composta por homens brancos escravizando e dominando mulheres negras e indígenas, por meio de conhecidas atrocidades, ocorreu a miscigenação no Brasil. Além disso, como observou Sérgio Buarque de Hollanda, o discurso de superioridade racial portuguesa no contexto da escravidão não era fundamentada na noção de pureza racial. Não porque os portugueses eram melhores, mas porque estes passaram por oitocentos anos de dominação moura na península ibérica. Já para os ingleses superioridade racial e pureza racial eram basicamente a mesma coisa. Desse modo, essas duas noções distintas de superioridade racial exercerão formas de racismo distintas. Octávio Ianni fala em Racismo e Escravidão que tanto na escravidão brasileira como na escravidão estadunidense havia um sistema de castas. Todavia, a versão brasileira se baseava pela rígida hierarquia social estabelecida pela raça. Já a norte-americana se baseava na rígida hierarquia social estabelecida pela raça com o componente da “pureza”. Soma-se a isso, as feridas deixadas pela guerra civil americana de 1861 a 1865 onde a vitória dos Estados do norte sobre o sul acabou com a escravidão. Ou seja, as raízes de Charlotteville podem ser analisadas no âmbito da dominação escravocrata estadunidense tonificada pela pureza racial e pelos desdobramentos de uma guerra civil que resolveu o problema da escravidão por uma questão de desenvolvimento econômico do país, deixando assim, a questão da integração do negro na sociedade de classes pós-escravidão em segundo plano. Outro importante fato histórico que não pode faltar em qualquer análise sobre o caso de Charlottesville são as mobilizações negras das décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos lideradas por Martin Luther King Júnior, Malcon X e Angela Davis, onde também há o extraordinário exército revolucionário dos Panteras Negras. A gigantesca mobilização negra que contagiou o mundo colocou em xeque a democracia americana como um todo, desnudando a condição de inferioridade com que eram tratados os negros dos Estados Unidos. Essa lutas foram fundamentais para os avanços subsequentes na sociedade norte-americana, uma vez que a manutenção da organização dos cidadãos negros se fortaleceu e teve impacto direto na mobilidade social dos afrodescendentes daquele país. Mas os reflexos revanchistas racistas que são a expressão dos desdobramentos da mobilizações negras dos anos 60 e 70 serão abordados na parte psicanalítica deste artigo.

A questão psicológica: Charlotteville como sintoma de uma angústia e de um mal-estar social

As cenas de pessoas em passeatas alusivas à Klu Klux Klan, inclusive “fantasiando” crianças da mais tenra idade, demonstram que a mobilização da supremacia branca no Estado da Virgínia é um exemplo de uma manifestação de ódio dentro de uma situação de anomia social. Ali, estavam contidas a crise de legitimação das instituições, a crise de crença na modernidade e os efeitos de destemporalidades contidos em tal situação anômica. De modo que a passeata pró-racismo é fruto ao mesmo tempo da crise e do avanço. Crise econômica e social e avanço no que diz respeito à intenção da retirada de uma estátua de um general da guerra da secessão que defendia a manutenção da escravidão. Nesse sentido, não era a estátua que estava em jogo, mas o que ela representa. Sabe-se que a rigidez da mobilidade social hierarquizada cria zonas de conforto não só econômicas para determinados grupos localizados na parte de cima dessa hierarquia, mas também zonas de conforto psíquicas através da satisfação da segurança do controle do outro. A distribuição do excedente, a religião, as leis, a cultura são controladas na parte superior, e isso, inevitavelmente, cria zonas de conforto. Ocorre que com o desenvolvimento da luta de classes e com o avanço da modernidade essa zona de conforto é posta em xeque através do aumento da concorrência entre os indivíduos. O que era uma “direito natural do branco”, como um emprego bem remunerado ou uma vaga em uma universidade conceituada, passam a ser objetos de disputa dentro da sociedade aberta, Florestan Fernandes no seu livro A Integração do Negro na Sociedade de Classes já aponta para estes aspectos. Ocorre que quando há uma mudança na rigidez social em uma sociedade permeada pela tradição ou há um processo de crise econômica há convulsão social. Na década de 1960, nos Estados Unidos, tínhamos o primeiro caso. Ainda que os EUA fossem plenamente urbanos e industriais nessa época, ainda havia fortes resquícios da tradição histórico escravocrata que impingiam ao negro situações de grande dificuldade de mobilidade social. Agora, o elemento da crise social tonificada pela eleição de Donald Trump, que também é explicada pela crise, é o ponto preponderante das manifestações racistas nos Estados Unidos.

Baseado em Darwin, Freud nos explica que os sentimentos de afeto têm sua origem em algum sentimento original. O ódio, o amor e o medo, sobretudo, são sentimentos originais. Assim, o que se depreende disso é que o ódio racial de hoje, volta como um sentimento original da formação da sociedade norte-americana. Ou seja, de forma patológica, as pessoas saem às ruas com tochas (em plena era de iluminação de LED), fantasiadas de Klu Klux Klan, mas misturado com o fenômeno recente do neonazismo. Isso, por sua vez, é um sintoma de um mal-estar maior que vê na crise econômica e no avanço dos direitos civis a implosão da zona de conforto. Aliás, zona de conforto que só existem no imaginário, uma vez que as passeatas racistas são compostas de pessoas da classe média, muitas delas atingidas em cheio pela crise hipotecária de 2007. O que mudou também é que depois de um presidente negro (que foi extremamente tímido no combate ao racismo nos EUA) o ódio latente pode ser expressado na “redenção branca” através da eleição de Trump. Em seu livro Inibição, Sintoma e Angústia, Sigmund Freud diz que o sintoma pode ser a defesa contra alguma fonte de desprazer, vejamos:

“O sintoma do vômito nos é conhecido como defesa histérica contra a alimentação. A recusa de comer, em consequência da angústia, é própria de estados psicóticos (delírio de envenenamento)” (Sigmund Freud, Inibição, Sintoma e Angústia, Obras Completas, Companhia das Letras, volume 17, página 17).

Dessa maneira, note-se que as manifestações racistas da Virgínia se apresentam como um sintoma que representa uma defesa de algo desprazeroso, nesse caso as mudanças sociais advindas da ampliação dos direitos civis, como o casamento homoafetivo ou a união inter-racial, por exemplo, e da crise que degrada posições sociais garantidas em momentos de bonança.

Ainda na mesma obra de Freud, o sintoma pode aparecer como consequência de uma satisfação instintual que não aconteceu, ou seja reprimida:

“As principais características da formação de sintomas foram estudas há muito tempo e – assim – esperamos – enunciadas de forma inatacável. O sintoma é indício e substituto de uma ação instintual que não aconteceu, é consequência do processo de repressão. Esta procede do Eu, que – por solicitação do Super-eu, eventualmente – não deseja colaborar num investimento despertado no Id. Através da repressão, o Eu obtém que a ideia portadora do impulso desagradável seja mantida fora da consciência. A análise demonstra, com frequência, que ideia foi conservada como formação inconsciente. Até esse ponto tudo estaria claro, mas logo têm início as dificuldades não solucionadas” (Idem, página 20).

Ora, qual a ação instintual que não aconteceu? A saber, a eliminação do outro, ou seja, a erradicação do negro e do imigrante enquanto elementos constitutivos da nação estadunidense. E qual a solicitação do super-eu que causou repressão? A ideia de convivência pacífica e de alteridade para a construção de uma nação americana sem preconceitos. Porém, a não resolução dos problemas sociais e raciais de forma definitiva, traduzidas como dificuldades não solucionadas, manifestam-se através do sintoma da passeata racista pró-confederalista. Assim, podemos classificar a erupção de mobilizações racistas a um adoecimento anômico, a um mal-estar social manifesto em uma ação patológica coletiva traduzida pelo ódio. Esse ódio, por seu lado, contém um forte elemento narcísico, onde a afirmação do Eu se dá pela negação do outro. Vejamos como Freud nos dá as tintas para tal afirmação:

“Nas antipatias e aversões francas por estranhos próximos podemos reconhecer a expressão de um amor-próprio, de um narcisismo, que aspira sua autoafirmação e se comporta como se a existência de uma divergência em relação a seus desenvolvimentos individuais implicasse uma crítica a tais desenvolvimentos e um desafio a transformá-los. Não sabemos por que se formou uma sensibilidade tão grande precisamente quanto a esses pormenores da diferenciação; porém, é inequívoco que nesse comportamento dos seres humanos se manifesta uma disposição ao ódio, uma agressividade, cuja origem é desconhecida e à qual se poderia atribuir um caráter elementar” (Sigmund Freud, Psicologia das Massas e Análise do Eu, L&PM Editores, páginas 89-90).

Dessa forma, é no estranhamento aos próximos que se desenvolve a autoafirmação narcísica e, como disse Freud, se manifesta uma disposição ao ódio. Ao perceberem que o mundo não é mais como antes e não o será jamais, abre-se uma ferida narcísica naqueles que por diversas razões, muitas delas sem uma explicação imediata, manifestada sob a forma de ódio. Em suma, a culpa é do outro. O ódio é parte do enfraquecimento do Eu que, para cicatrizar a ferida narcísica, parte para a ação agressiva, muitas vezes calcada no apego ao objeto no caso ao general confederado corporificado por sua estátua. Vejamos, pois, o que Freud nos indica sobre a afirmação acima citada:

“A tendência que falsifica o juízo nesse caso é da idealização. Mas isso facilita nossa orientação; reconhecemos que o objeto é tratado como o próprio Eu, ou seja, que no enamoramento recai sobre o objeto uma medida maior de libido narcísica. Em algumas formas de escolha amorosa se torna inclusive evidente que o objeto serve para substituir um ideal do eu, próprio e não alcançado. Ama-se o objeto devido às perfeições que se aspirou para o próprio Eu e que agora se gostaria de alcançar por este rodeio a fim de satisfazer o próprio narcisismo” (Idem, página 106)

Ainda que Freud tenha dirigido tal observação para a escolha objetal sexual do Eu para com o outro. Sabe-se, pois, que a mente humana repete certos “rituais de ação” para diferentes processos. Aliás, Freud recorre ao Ramo de Ouro, James de Frazer, para identificar o mesmo processo para diferentes situações em Totem e Tabu. Ao entrar em decadência, certo número de indivíduos se apega a um objeto de afeto libidinal que representa aquilo que deveria ser para o Eu, para o grupo e para a sociedade. Da mesma forma que o ódio é voltado para o outro (o negro, o imigrante, o homossexual) que é o oposto do ideal do Eu para o Eu, para o grupo e para a sociedade. A psicanalista Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi ao identificar os efeitos psicanalíticos do racismo no Brasil identifica o amor e o ódio como elementos narcísicos embutidos no sentimento do preconceito racial:

“O fenômeno da violência não estaria restrito à manifestação da agressividade, mas consistiria numa formação que envolve o enlaçamento da disposição agressiva com exigências narcísicas de eliminar o outro.

Apoiados no argumento de Freud, podemos ir além e afirmar que a violência social não é um dado natural, é uma construção a serviço das necessidades de autoconservação dos grupos. Volto a afirmar: os grupos, com sua escala de valores, sua definição do que é ser bom ou ser mau, geram suas com-paixões amorosas odiosas, ou seja, criam vias para a expressão do amor, mas também da agressividade, a fim de fortalecer seus laços internos” (Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi A Violência Nossa de Cada Dia: o racismo à brasileira, in: o Racismo no Brasil, Questões para a Psicanálise, editora Perspectiva, página 61).

Assim, podemos concluir que a sobrevivência do grupo é o que desencadeia o pendor à agressividade e ao ódio. Isso, por sua vez, como um distúrbio sintomático e, portanto, patológico; a exaltação de supremacia branca em um mundo onde a ciência não só discute que não há superioridade racial, bem como já questiona a própria existência de raças. Em verdade, o ódio é permeado, nesse caso, pelo sentimento de angústia. Freud nos diz:

“Angústia tem uma inconfundível relação com a expectativa: é angústia diante de algo.(…) Além de estar relacionada ao perigo, a angústia tem também relação com a neurose… (…) A angústia neurótica é a angústia ante a um perigo que não conhecemos ” (Sigmund Freud, Inibição, Sintoma e Angústia, Obras Completas, Companhia das Letras, volume 17, página 114).

Aqui, angústia diante da expectativa de que os privilégios da sociedade hierarquizada rigidamente voltem um dia. A angústia neurótica vem da iminência de um perigo que não conhecemos, às vezes que não existe, uma vez que para o neurótico a realidade psíquica é mais forte que a realidade externa ou concreta. No caso, ainda que o perigo de um mundo sem a certeza de para onde vamos, muito menos de que mundo nossos descendentes encontrarão em um futuro nem tão distante assim seja real. Os sentimentos de ódio racista, xenofóbico, homofóbico se estabelecem enquanto angústia neurótica, pois o perigo não está nos negros ou nos imigrantes ou nos gays ou nos ateus, sendo assim, o ódio racial se configura como um caso de angústia neurótica que causa mal-estar e se manifesta numa passeata de apologia ao ódio como um sintoma da própria angústia neurótica.

Em síntese, não quero aqui propor que os racistas que foram a Charlottesville sejam encaminhados para o divã, onde poderão falar de suas relações traumáticas advindas da repressão sexual dos pais devido a percepção do complexo de édipo. Tampouco que, como elemento psíquico, fique confinado a uma discussão de erudição pretensamente acadêmica. A intenção aqui é demonstrar, ainda que de forma insuficiente, que a crise econômica aumenta os processos indecisão para um setor considerável dos seres humanos ao mesmo tempo em que gera debates sobre alternativas. Essas alternativas, por sua vez, nem sempre são as melhores, algumas se traduzem em atrocidades. Ocorre que no mundo em que vivemos o mal-estar será cada vez mais presente, isso porque a angústia será da mesma forma cada vez mais presente. Dessa maneira, desdobramentos sintomáticos característicos da anomia social também aparecerão com maior frequência.

Caberá aos socialistas combater o mal-estar e a angústia com esperança e programa concreto para a sair da crise. Com relação às manifestações sintomáticas, cerrando fileiras contra os racista, os homofóbicos, os fascistas e os neonazistas. Afinal, o sintoma pode ser contagioso. Se depender de nós eles e seus sintomas NÃO PASSARÃO!

Referências Bibliográficas

FERNANDES, Florestan – A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Globo Editora.

FREUD, Sigmund – Inibição, Sintoma e Angústia, Obras Completas Volume 17. Companhia das Letras.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de – Raízes do Brasil. Companhia das Letras.

______________- Psicologia das Massas e Análise do Eu, Obras Completas. Volume 15.

IANNI, Octávio – Racismo e Escravidão. Editora HUCITEC.

MARX, Karl – Ocapital, livro I. editora Boitempo.

VANUCCI – Maria Beatriz Costa Carvalho – A Violência Nossa de Cada Dia: o racismo à brasileira, in: o Racismo no Brasil, Questões para a Psicanálise, editora Perspectiva.


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