A Revolução de Outubro e a sobrevivência do capitalismo

Os acertos e insuficiências teóricas que ajudam a compreender tanto a vitória da Revolução de Outubro como a posterior derrota da experiência soviética.

Prabhat Patnaik 5 set 2017, 00:22

A Revolução de Outubro foi a primeira revolução na história humana teoricamente concebida e executada de acordo com um plano. Enquanto a revolução de Fevereiro, como as revoluções burguesas anteriores na Inglaterra e França, havia ocorrido espontaneamente, o mesmo não se pode dizer da de Outubro. Ao mesmo tempo, ela certamente não foi o que seus detratores muitas vezes sugerem, isto é, uma mera revolta Blanquista. Ela não foi uma revolta do tipo “a revolução é uma coisa maravilhosa, então vamos tentar isto”. Pelo contrário, foi baseada numa análise teórica precisa da conjuntura, e no desenvolvimento desta teoria a um nível onde, para tomar emprestado as palavras de Georg Lukács, “a teoria irrompe na práxis”.[i] É esta compreensão teórica da conjuntura que sublinha a revolução e que explica a sua amplitude, a enorme energia que gerou, as mudanças profundas que operou no mundo, e a extensão em que ameaçou a própria existência do capitalismo. Que esta ameaça se tenha esmaecido resulta do fato de que a própria conjuntura se alterou de maneira que não pôde ser antecipada dentro do estágio de conhecimento teórico que então havia.

A aliança Operário-Camponesa

Esta compreensão teórica da conjuntura se desenvolveu em estágios. Dois passos foram de particular importância. O primeiro, datando do começo do século XX, e expresso na polémica de V. I. Lenin contra a corrente representada pelo “Novo Iskra” de Alexander Martynov e outros dentro do Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Russos, ao qual todos eles pertenciam, foi a compreensão de que em países de desenvolvimento capitalista tardio a nova burguesia emergente não era mais capaz de completar a revolução burguesa contra a ordem feudal, da maneira que a burguesia francesa havia feito durante a revolução de 1789.[ii] Isto acontecia porque, nesta nova situação que enfrentava, esta burguesia tinha medo de que um ataque à propriedade feudal pudesse resvalar em um ataque contra a própria propriedade burguesa.

Para isto era necessário uma aliança operário-camponesa sob a liderança da classe trabalhadora. Mas tal aliança, tendo avançado a revolução burguesa contra a ordem feudal, não poderia apenas parar ali, com a classe trabalhadora meramente revertida ao papel de classe explorada dentro da recém-desencadeada ordem capitalista, cujo próprio desencadeamento ela havia ajudado a operar. A classe trabalhadora, tendo levado à frente a revolução burguesa, iria obviamente continuar a marcha ao socialismo em um processo revolucionário ininterrupto, dentro do qual, obviamente, os constituintes precisos da aliança operário-camponesa permaneceriam mudando. Como Lenin coloca em seu Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática (1905):

“O proletariado deve levar a termo a revolução democrática, atraindo para si a massa dos camponeses, para esmagar pela força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve fazer a revolução socialista, atraindo para si a massa dos elementos semi-proletários da população, para quebrar pela força a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade dos camponeses e da pequena burguesia”.[iii]

Essa concepção de uma aliança operário-camponesa liderada pelo proletariado com uma composição de classes mutável ao longo do tempo, carregando a revolução democrática até sua completude e além até o socialismo, não foi apenas um grande passo na compreensão da conjuntura. Ela representou um avanço fundamental dentro da própria teoria marxista de diversas formas: em primeiro lugar, foi uma mudança de atitude em relação ao campesinato, uma inclusão do mesmo dentro das fileiras das forças revolucionárias que a classe trabalhadora poderia liderar. A habilidade da burguesia de conseguir o apoio do campesinato na revolução francesa servira-lhe bem não apenas naquele momento mas também depois, para derrotar a Comuna de Paris (com Adolphe Thiers instilando o medo entre o campesinato francês, beneficiário da revolução de 1789, de que um ataque à propriedade burguesa acarretasse também um ataque à pequena propriedade). No entanto, na nova conjuntura o campesinato se tornaria parte do campo proletário. Em segundo lugar, esta mudança de atitude em relação aos camponeses também fez do marxismo, até então confinado à Europa, uma doutrina revolucionária de relevância para todo o mundo, não importando quão limitado tivesse sido o grau de desenvolvimento capitalista. Em terceiro, a transição entre estágios do socialismo era agora o curso que todos os países no mundo deviam seguir para a libertação do povo. O socialismo não era mais apenas um assunto que dizia respeito a países de capitalismo avançado; ele poderia também ser inscrito na agenda revolucionária dos países capitalistas subdesenvolvidos, o que significava uma total rejeição de qualquer tentativa de reduzir o marxismo a uma teoria etapista onde diferentes modos de produção haviam de se suceder em uma maneira predeterminada por uma questão de inevitabilidade histórica. De fato, a jornada dos países de capitalismo avançado poderia ser direta, enquanto a de países de capitalismo subdesenvolvido deveria ser uma prolongada transição histórica passando por diferentes fases; mas o socialismo poderia ser o objetivo final de todas as lutas revolucionárias, em todos os lugares.

Imperialismo

O segundo passo teórico importante para compreender a conjuntura veio com a teoria Leninista do imperialismo, desenvolvida no contexto da Primeira Guerra Mundial. O fato de o capital se centralizar nos campos da finança e da indústria, uma tendência imanente sob o capitalismo de acordo com Karl Marx, havia levado à formação de monopólios nestas esferas e de uma pequena oligarquia financeira que oscilava entre as duas esferas e controlava vastas quantidades de “capital financeiro”, e o fato de que desenvolvia uma união pessoal com empregados do Estado, exercendo controle sobre este e alterando seu caráter, constituiu a essência desta nova fase do capitalismo. Nesta fase, a competição entre capitais tomou a forma de rivalidades entre diferentes monopólios associados, pertencente aos diferentes países de capitalismo avançado, para adquirir “território económico” através do mundo às custas uns dos outros; e num mundo já particionado entre eles, tais rivalidades necessariamente tomavam a forma de tentativas de reparticioná-lo entre os mesmos através de guerras.[iv] Estas guerras, das quais a Primeira Guerra Mundial foi um exemplo, forçavam trabalhadores de diferentes países a se matarem uns aos outros nas trincheiras; elas também arrastavam os povos oprimidos das colónias, semi-colônias e territórios a serem carne de canhão para promover os interesses das diferentes oligarquias financeiras. O capitalismo, em outras palavras, havia chegado a um estágio onde se promoviam guerras periódicas para redividir um mundo já dividido, no intuito de refletir as mudanças de forças relativas entre as diferentes potências (o que necessariamente ocorria por conta da ubiquidade do “desenvolvimento desigual” sob o capitalismo), havia se tornado inevitável.

A compreensão de que o estágio superior do capitalismo que Lenin, seguindo J.A. Hobson, chamou de “imperialismo”, possuía muitas implicações. Primeiro, um importante elemento da teoria marxista havia sido o reconhecimento de que nenhum modo de produção foi superado até que se tornasse historicamente obsoleto. Tipicamente, no entanto, esta “obsolescência histórica” havia sido definida em termos estritamente económicos, em termos do mergulho numa crise prolongada. Eduard Bernstein havia advogado por uma “revisão” do marxismo, para substituir uma derrubada revolucionária do sistema capitalista por uma agenda de reformas dentro deste sistema, sob o argumento de que nenhuma crise prolongada ou “colapso” estaria no horizonte; e Rosa Luxemburgo havia afirmado a visão revolucionária ao desenvolver uma teoria de acumulação de capital que apontava para um eventual colapso do sistema. O argumento Leninista alterou completamente as bases deste debate.[v] O capitalismo havia-se tornado historicamente obsoleto, ou “moribundo”, como ele o chamava, porque seu estágio imperialista havia englobado a humanidade em guerras periódicas e devastadoras. A única escolha que este oferecia aos trabalhadores nos países avançados era entre matar companheiros trabalhadores do outro lado das trincheiras ou voltar suas armas contra o próprio sistema, entre “socialismo e barbárie” (para usar as palavras de Luxemburgo). Em segundo lugar, não eram apenas os trabalhadores nos países capitalistas avançados que eram vítimas da exploração imperialista e utilizados como carne de canhão nessas guerras, mas também as pessoas trabalhadoras dos países oprimidos que passaram por uma mudança por conta destas guerras. Sua consciência assim como seu treino (incluindo treino militar) desenvolveu-se a largos passos por conta destas guerras, e eles também se levantaram contra o jugo do capital porque também estavam diante da mesma escolha entre libertação e barbárie.

Em terceiro lugar, não apenas havia o sistema se tornado historicamente obsoleto neste sentido geral, mas havia trazido a revolução mundial para a agenda histórica como um fenómeno iminente. A escolha entre socialismo e barbárie havia de ser feita ali mesmo, uma escolha prática que havia sido empurrada à humanidade por conta do imperialismo e suas guerras concomitantes.

Se o primeiro passo na compreensão da conjuntura era ver que todos os países inseridos na mesma haviam de proceder por diversas rotas até o socialismo como uma condição para a libertação de seus povos, então o segundo passo foi perceber que suas jornadas eram interconectadas, que o imperialismo os havia ligado numa corrente, cuja quebra no “elo mais fraco” haveria de iniciar um colapso da corrente como um todo. E tal quebra na corrente era iminente na conjuntura. A consequência desta compreensão era a construção de uma internacional, a Internacional Comunista, de maneira que o mundo nunca havia visto, onde delegados da França, Alemanha e Inglaterra ombreavam-se com seus camaradas da China, índia, México, Egito e Vietname.

A compreensão da conjuntura

A visão subjacente à Revolução de Outubro de que o capitalismo havia alcançado um ponto crítico, de que simplesmente não poderia continuar como anteriormente, era partilhada por muitos pensadores desta época, incluindo até mesmo anticomunistas ardentes, o que sugere que era uma compreensão bastante precisa da conjuntura. Desse modo, John Maynard Keynes, escrevendo em 1933, tinha isto a dizer: “O capitalismo – internacional porém individualista – decadente, em cujas mãos nos encontramos após a guerra, não é um sucesso. Ele não é inteligente, ele não é bonito, ele não é justo, não é virtuoso – e nem mesmo entrega o que promete. Sucintamente, não gostamos dele, e estamos começando a desprezá-lo. Mas quando nos questionamos sobre o que colocar em seu lugar, estamos extremamente perplexos.” Até Keynes havia começado a “desprezar” o capitalismo da época.[vi]

Anteriormente, no seu livro As Consequências Econômicas da Paz, Keynes havia dado uma descrição vívida da desintegração do capitalismo mundial, que Lenin havia citado amplamente no Segundo Congresso da Internacional Comunista em 1920 para argumentar que o momento para a revolução mundial havia chegado. Como disse Lenin: “Se por um lado a posição económica das massas se tornou intolerável, e, por outro lado, a desintegração descrita por Keynes se instalou e está crescendo entre a minoria insignificante dos todo-poderosos países vencedores, então estamos na presença da maturação de duas condições para a revolução mundial”.[vii] A perceção de Lenin e dos bolcheviques a respeito do estado do capitalismo mundial, do qual eles consideravam a Revolução de Outubro o primeiro produto significativo, era então compartilhada por muitos; e representava uma compreensão válida da conjuntura.

Esta conjuntura duraria do período preparatório da Primeira Guerra Mundial até os anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial quando a descolonização começou. Dentre suas muitas características, a principal se relacionava à rivalidade interimperialista. A Primeira Guerra Mundial, o implacável Tratado de Versalhes (cuja dura crítica de Keynes foi destacada por Lenin), a Grande Depressão, a ascensão do fascismo, o massivo avanço anexionista dos países fascistas e a Segunda Guerra Mundial, todos eram expressões de uma forma ou de outra, de um estado de aguda rivalidade interimperialista.

Até mesmo a sobrevivência da União Soviética foi atribuída por Lenin à existência da disputa interimperialista. Em um de seus últimos artigos, “Melhor Menos, mas Melhor”, ele atribuiu a falência da intervenção militar conjunta de diversos países imperialistas em apoio à contrarrevolução russa durante a guerra civil aos conflitos entre os países imperialistas do Ocidente e Oriente, e perguntou-se se estes conflitos poderiam “nos dar um segundo descanso”.[viii] Os conflitos entre os países imperialistas do Oriente e do Ocidente, e aqueles entre os vitoriosos e os derrotados da Primeira Guerra Mundial, que o Tratado de Versalhes havia exacerbado, atingiram seu clímax na Segunda Guerra Mundial. No entanto, este clímax também marcou o fim da mesma conjuntura histórica que Lenin e os bolcheviques haviam se deparado, cuja compreensão teórica foi desenvolvida por eles a um nível onde havia “irrompido” na práxis revolucionária de Outubro e as subsequentes lutas por uma revolução mundial.

O fim da Guerra viu um grande avanço da ordem comunista; uma maior assertividade da classe trabalhadora nos países de capitalismo avançado, da qual a derrota de Winston Churchill pelo Partido Trabalhista nas eleições britânicas e a enorme força adquirida pelos Partidos Comunistas Italiano e Francês eram manifestações óbvias; e uma inquietação sem precedentes entre os povos das colónias, semi-colônias e países dependentes. O capital metropolitano, enfraquecido e desorientado pela guerra, foi forçado a fazer diversas concessões, das quais as três mais significativas foram: descolonização, intervenção estatal para regular a demanda com o objetivo de manter altos níveis de emprego, a qual o capital financeiro, sempre oposto a este tipo de intervenção direta e responsável por preveni-la nos anos pré-guerra, foi todavia forçado a aceitar; e a instituição de governos democráticos formados por através do sufrágio adulto universal (que, mesmo na França, ocorreu apenas em 1945).

Estas concessões criaram a impressão de que o capitalismo havia “mudado”, de que o velho capitalismo havia dado lugar a um novo “capitalismo de bem-estar”. Esta ideia persistiu a despeito do fato de que a intervenção estatal para atingir altos níveis de emprego nos Estados Unidos, a principal potência capitalista, tomou a forma de gastos militares de larga escala, e também a despeito do fato de que não obstante a descolonização formal (que era ela mesma muitas vezes incompleta), as potências metropolitanas estavam por toda parte relutantes em ceder controle sobre recursos do terceiro mundo para os novos estados pós-coloniais.[ix] Todavia, a percepção permaneceu de que o capitalismo havia fundamentalmente se alterado, porque alguns dos ganhos obtidos pelos trabalhadores nas metrópoles, e pelas pessoas no terceiro mundo, eram de fato reais e substanciais.

Mas junto com essas mudanças, a conjuntura do pós-guerra era também marcada por algo que ia além do que o Leninismo havia visualizado, isto é, uma substituição da intensa disputa interimperialista por uma abrangente dominação de uma potência (o que alguns chamavam de “superimperialismo”). A perceção fundamental do movimento Comunista sobre o estágio imperialista do capitalismo, sobre a qual a proposição sobre a iminência da revolução mundial havia sido argumentada, ou seja, de que seria caracterizada pela rivalidade interimperialista e guerras, deixou de ser válida na conjuntura do pós-guerra. Sem dúvida as revoluções Cubana e Vietnamita aconteceram durante esta conjuntura, mas elas eram mais um produto atrasado da conjuntura anterior do que um produto específico da conjuntura do pós-guerra.

Mesmo assim, essa conjuntura do pós-guerra provou-se ser apenas um interregno. A concentração do capital, a tendência ressaltada por Marx, levou à formação não apenas de corporações multinacionais, mas de enormes blocos financeiros. Esses blocos eram alimentados por diversas fontes: através de contínuos défices fiscais estadunidenses durante os anos do Bretton Woods, quando o dólar era considerado “tão bom quanto ouro”, e US$35 podiam ser trocados por uma onça de ouro; através de enormes depósitos de petrodólares após o aumento de preços da OPEP; e através de poupanças entrando como depósitos no sistema financeiro durante o “boom” prolongado do pós-guerra que foi construído através da intervenção estatal na administração da demanda. O capital financeiro nesta nova situação, ansioso para possuir liberdade irrestrita para se mover pelo globo, procurou quebrar as barreiras nacionais. Ele foi bem-sucedido neste empenho e instituiu um regime de “globalização” que, em contraste com o regime pós-guerra anterior, implicou numa maior mobilidade de bens, serviços e fluxos de capital, incluindo fluxos financeiros, através de barreiras nacionais.

O regime da globalização

A rivalidade interimperialista permanece silenciada no regime de globalização por uma razão mais importante, não apenas por conta da força avassaladora de uma potência imperialista, como era o caso da conjuntura do pós-guerra, mas também porque o próprio capital financeiro se torna globalizado e consequentemente oposto a qualquer particionamento do globo em esferas de influência de potências particulares que possam entravar sua livre movimentação global.

Conquanto este fato da rivalidade interimperialista silenciada tenha sido percebida por muitos, eles a interpretaram como significando uma confirmação da posição de Karl Kautsky, que havia visualizado a possibilidade de um “ultraimperialismo” contra Lenin, que enfatizou a existência de um perene estado de rivalidade interimperialista. Entretanto, isto é falso. Tanto Lenin quanto Kautsky tinham em mente um contexto de capitais financeiros nacionais, onde o capital financeiro que ocupava o proscénio possuía bases nacionais e era auxiliado pelo Estado nacional. Este não é o caso hoje, onde o próprio capital financeiro é internacional, e é uma entidade inteiramente diferente do capital financeiro que tanto Lenin quanto Kautsky falavam. O silenciamento da rivalidade interimperialista na era da globalização não é por conta de uma “exploração conjunta do mundo por capitais financeiros internacionalmente unidos”, como Kautsky havia sugerido, mas por conta da emergência de um capital financeiro internacional.

Este fato é negligenciado em boa parte da discussão sobre a “multipolaridade”. Aqui, é comumente sugerido que, em um mundo onde a “multipolaridade” parece estar a emergir, podemos testemunhar uma volta da rivalidade interimperialista. Mas o que tal prognóstico deixa escapar é que não são apenas os fatores políticos que devem ser levados em conta neste contexto mas também, acima de tudo, os fenómenos económicos subjacentes a esses fatores; e um elemento-chave destes elementos económicos é a hegemonia do capital financeiro internacional. O fato de que temos um capital financeiro internacional num mundo de estados nacionais, ao contrário da prescrição de Keynes no ensaio de 1933 de que “as finanças devem acima de tudo ser nacionais”, constitui uma característica definidora da globalização contemporânea. Isto implica no fato de que o estado-nação, por bem ou por mal, tem de consentir às exigências das finanças, pois de outra forma estas simplesmente deixariam suas fronteiras en masse para se mover para outro lugar, precipitando uma crise. O fato de que, independentemente do aspeto do governo eleito pelo povo, ele deve seguir as mesmas políticas econômicas, isto é, aquelas que o capital financeiro internacional prefere, de maneira a prevenir tal acontecimento, implica numa debilitação da democracia. Além disso, ser apanhado no vórtice das finanças globalizadas acarreta várias implicações económicas importantes. Primeiro, implica numa mudança da natureza do Estado. Em vez de se posicionar, independente de seu caráter de classe, como uma entidade acima da sociedade e aparentemente cuidando dos interesses de todos, o Estado agora se torna mais preocupado com promover exclusivamente os interesses do capital financeiro globalizado, sob o argumento de que os interesses da nação coincidem com os interesses de tal capital (o fato de a Moody’s melhorar a nota de crédito de um país se torna motivo de orgulho nacional). Uma grande consequência disto, especialmente no contexto do terceiro mundo, é a retirada do apoio e proteção estatais sobre o setor de pequenos produtores, incluindo a agricultura familiar, expondo a vasta massa de pequenos produtores à usurpação pelo grande capital, incluindo corporações multinacionais.

A luta anticolonial sobre grande parte do terceiro mundo havia alistado o apoio do campesinato sob a promessa de que o regime pós-colonial protegeria a agricultura familiar da usurpação do grande capital, e também das flutuações de preços do mercado mundial; e a maioria dos regimes pós-coloniais tinham em graus variados protegido e promovido a agricultura camponesa e a pequena produção, em geral. Os beneficiários de tais medidas, sem dúvida, haviam sido em um grau muito maior os prósperos segmentos entre tais produtores; mas o setor como um todo, apesar de sujeito a tendências direcionadas a um desenvolvimento capitalista de dentro, havia sido protegido da incursão do grande capital de fora. O estado neoliberal retira o apoio e a proteção, jogando este vasto setor numa crise. Grandes números de pequenos produtores e trabalhadores dependentes de tal produção, ou continuam na mesma, afundando mais profundamente na miséria, ou migram para as cidades em busca de empregos não existentes, ou (como vem acontecendo na índia) recorrem a suicídios em massa.

Em segundo lugar, há um aumento no tamanho relativo das reservas de trabalho porque o aumento da procura laboral, mesmo com altas taxas de crescimento do PIB, não é grande o suficiente para absorver o aumento natural na força de trabalho, muito menos os pequenos produtores deslocados. Consequentemente, os salários reais dos trabalhadores, mesmo os trabalhadores organizados, aumentam escassamente, apesar de aumentos na produtividade do trabalho. Isto aumenta a quota do excedente no terceiro mundo, que é dominada por grandes reservas de trabalhadores, e por consequência aumenta a desigualdade de rendimento.

Contudo, o mesmo não é verdadeiro apenas no terceiro mundo. Já que o capital adquire mobilidade entre os países avançados e subdesenvolvidos, mesmo os trabalhadores dos países avançados se tornam sujeitos a competição com os trabalhadores de baixos salários do terceiro mundo, e portanto aos efeitos maléficos das reservas de trabalho terceiro-mundistas que mantém estes salários baixos. Isto significa que os salários reais dos trabalhadores de países avançados também não aumentam (apesar de obviamente não caírem aos níveis registados no terceiro mundo), mesmo quando a produtividade do trabalho aumenta nestas economias. Há um aumento da parte do excedente e portanto, como resultado, na desigualdade de rendimento destes países também. (Nos Estados Unidos, de acordo com Joseph Stiglitz, o salário médio real de um trabalhador masculino não apenas não aumentou entre 1968 e 2011, mas até mesmo diminuiu ligeiramente).[x] Em resumo, o que ocorre é uma elevação da parte do excedente no produto mundial.

Em terceiro lugar, já que a propensão marginal para consumir a partir de rendimentos salariais é maior do que aquela de rendimentos derivados de excedentes económicos (que tipicamente pertence aos ricos), o aumento na parte do excedente dá origem a uma tendência em direção à superprodução na economia mundial, exatamente da maneira que Baran e Sweezy haviam argumentado no contexto da economia estadunidense nos anos 50 e 60.[xi]

Quarto: a capacidade de qualquer estado-nação de intervir contra esta tendência ex ante à superprodução (que, de acordo com Baran e Sweezy, foi o que os Estados Unidos fizeram através de maiores gastos militares nos anos 50 e 60) é frustrada no regime da globalização. Para a intervenção estatal contrabalançar esta tendência à superprodução, ela deve ser financiada ou por um défice fiscal, ou por impostos que recaem maioritariamente sobre as poupanças, o que significa impostos sobre os capitalistas (quer sobre lucros ou ações) já que a propensão destes a poupar é alta. Mas nenhum estado-nação em uma economia apanhada no vórtice das finanças globalizadas pode produzir um défice fiscal (além dos 3% do PIB permitidos pela lei na maioria dos países) ou tributar os capitalistas, por medo de causar um êxodo de capital. E os Estados Unidos, que não possuem nem “leis de responsabilidade fiscal” (limitando o défice fiscal a 3% do PIB), nem precisa se preocupar com fugas de capitais, já que sua moeda, mesmo no mundo pós-Bretton Woods, ainda é considerada “tão boa quanto ouro”, é relutante em executar défices fiscais. Isto é porque no regime da globalização, no qual as corporações americanas vêm instalando fábricas no exterior para se aproveitar dos baixos salários, um estímulo fiscal implicaria a geração de empregos no exterior para exportar bens para os Estados Unidos, o que aumentaria a dívida externa deste último país.[xii]

A tendência a uma superprodução ex ante portanto cria a crise estrutural que pode, na melhor das hipóteses, ser contida por ocasionais “bolhas” de preços de ativos, mas se manifesta quando tais “bolhas” colapsam.[xiii] Assim, o regime da globalização ocasiona aumento da desigualdade, estagnação de salários, a dizimação da pequena produção causando absoluta miséria para grandes segmentos da população trabalhadora do terceiro mundo, e uma tendência a uma crise estrutural que pode, no melhor dos casos, ser mantida a distância pelas “bolhas” ocasionais, cujo colapso agrava as condições das camadas trabalhadoras do mundo através de mais desemprego. O conservadorismo fiscal age na direção não apenas de acentuar a crise (já que possui um assim chamado efeito “pró-cíclico”), mas também efetuando cortes nos gastos e nos benefícios sociais.

Em contraste com a conjuntura do dirigismo do pós-guerra, que havia presenciado um silenciamento das disputas interimperialistas junto a concessões que o capital havia sido forçado a fazer, criando então a impressão de que o “capitalismo havia mudado”, o regime da globalização, apesar de continuar a testemunhar um silenciamento das disputas interimperialistas, ocasiona uma “volta atrás ao relógio” quando se refere ao estado de bem-estar social, o pretenso “capitalismo de face humana”, tanto nos países de economia capitalista avançada quanto nos subdesenvolvidos. A ascendência do capital financeiro internacional, enquanto silencia as disputas interimperialistas, traz à tona mais uma vez a natureza extremamente predatória do capitalismo, o fato de que este, para usar as palavras de Keynes, “não é justo”, “não é virtuoso”, “não entrega o que promete” e é capaz apenas de ser “desprezado”.

Transcendendo a conjuntura

Superar as dificuldades das camadas trabalhadoras na conjuntura atual requer a intervenção estatal nesse sentido. Isto por sua vez requer não apenas que o estado seja sensível aos apuros do povo trabalhador mas também que possua autonomia quanto à escravidão aos caprichos do capital financeiro internacional de modo a ser capaz de buscar uma agenda que beneficie os trabalhadores. Esta autonomia pode ser alcançada apenas em uma de duas maneiras. Uma delas é através da união dos principais estados-nações (criando, por assim dizer, um “estado-mundo”) que poderia superar a oposição do capital financeiro internacional à implementação de uma agenda favorecendo os trabalhadores; a outra é através de países, sozinhos ou agrupados, rompendo com o vórtice das finanças globalizadas, e colocando em prática controles de capitais que lhes dariam a autonomia para perseguir uma agenda alternativa.

Deixe-me elaborar. Um aumento no nível da procura agregada é essencial para reduzir o desemprego na economia mundial; na ausência de tal aumento, qualquer país em particular tentando aumentar o emprego através de mero protecionismo, tal como Trump está fazendo, equivale a uma política de empobrecimento de países vizinhos, isto é, exportar o desemprego, o que necessariamente provocaria a retaliação de outros países, minando ainda mais a “confiança” dos capitalistas, e portanto acentuando o desemprego no geral e a crise.

Mas numa situação onde, não surpreendentemente, a política monetária se provou incapaz de aumentar a procura, um aumento na procura agregada mundial pode ocorrer apenas através de meios fiscais, sobre os quais existem apenas duas possibilidades.[xiv] Uma delas é através de um estímulo fiscal coordenado por diversos estados-nações importantes em desafio aos desejos do capital financeiro internacional. Mas tal movimento (que incidentalmente foi debatido por um grupo de sindicalistas alemães nos anos 30, e também por Keynes) pode apenas ocorrer como resultado da pressão exercida pelas lutas coordenadas dos trabalhadores destes países, da qual não há sinal no presente.[xv] A segunda maneira de aumentar a procura agregada (além de políticas de “empobrecimento do vizinho”) seriam países individualmente se desligarem do vórtice dos fluxos de capital globalizado pela imposição de controles de capitais e provendo estímulos fiscais expansionistas a suas respetivas economias através de maiores gastos governamentais financiados por um défice orçamental ou impostos sobre os capitalistas. Já que a possibilidade de forjar uma aliança operário-camponesa que possa sustentar tal estado é muito maior dentro de um país em particular do que através de vários países, transcender a conjuntura atual requer desligar-se do regime existente da globalização (a extensão exata de tal desligamento deverá ser determinado pelas circunstâncias).

É claro, transcender a conjuntura atual através da construção de uma aliança operário-camponesa dentro de um país particular (que deveria ser tipicamente um grande país de terceiro mundo com presença considerável da pequena produção) não pode ser o fim da história. Assim como, na análise de Lenin, levar adiante a revolução democrática até sua completude pelas mãos da aliança operário-camponesa não era o fim da história, já que se tornou parte do processo de transição ao socialismo, da mesma forma desligar-se da globalização, para reverter suas consequências maléficas para os trabalhadores e pequenos produtores, pois um estado baseado numa aliança operário-camponesa vai ser parte de uma transição, por estágios, até o socialismo.

Transcender a conjuntura, em outras palavras, se torna parte do processo de transcender o sistema em si mesmo. Mesmo que por acaso as forças revolucionárias constituintes da aliança operário-camponesa se tornem alheias a esta necessidade, a oposição do capital financeiro internacional a seu (aparentemente modesto) esforço para transcender a conjuntura em si mesma faria (nas palavras de Marx) com que a “dialética fosse martelada” nelas, lembrando-os da necessidade de ir além do sistema mesmo que tentassem ir apenas além da conjuntura.

Em resumo, a conjuntura atual revive novamente a relevância da agenda Leninista que informou a Revolução de Outubro, ainda que por razões não idênticas às anteriores. Ao desejo dos camponeses de liberdade do jugo feudal agora é adicionado o desejo camponês (e de outros pequenos produtores do terceiro mundo também) por liberdade da opressão do regime neoliberal imposto pelo capital financeiro internacional sob a globalização. A revolução democrática deve agora envolver o desligamento do regime da globalização para que o estado-nação adquira uma autonomia vis-à-vis o capital financeiro internacional, que em seu lugar é uma condição para que qualquer intervenção política feita por uma aliança operário-camponesa seja bem-sucedida. A globalização criou tanto a necessidade quanto a possibilidade de uma aliança operário-camponesa e trouxe o mundo a uma passagem cuja escolha colocada é entre seguir em frente através do forjamento de tal aliança ou permanecer atolado numa crise onde o capital financeiro vai confiar cada vez mais no apoio do fascismo para sustentar sua hegemonia.

No entanto, uma questão importante é levantada aqui. Enquanto o capitalismo mais uma vez assumiu uma forma onde ele merece apenas ser “desprezado”, o silenciamento das disputas interimperialistas faz com que sustentar qualquer esforço para escapar a hegemonia do capital financeiro internacional se torne muito mais difícil, diferentemente até mesmo da época de Lenin. Transcender a própria conjuntura se torna difícil na ausência de desunião das principais potências capitalistas. Ou, colocando-se de outra forma, o silenciamento das disputas interimperialistas parece criar uma situação “sem saída”, onde apesar da opressividade da conjuntura atual qualquer escapatória dela parece impossível.

Enquanto a resposta a esta questão deve ser encontrada na práxis, o que ela de fato sugere é que a preservação de uma forte aliança operário-camponesa se torna muito mais importante para transcender a conjuntura atual, mesmo que ela possa fazer a transição para o socialismo muito mais morosa. A maior causa para a debilidade da União Soviética, que a Revolução de Outubro havia criado, era a dificuldade de manter esta aliança; de fato seu rompimento através da coletivização forçada foi o que deixou uma permanente cicatriz no novo sistema. Essa fraqueza deve ser evitada.[xvi] A necessidade de desligar-se do atual regime de globalização é comumente não apreciada pela esquerda, o que faz com que segmentos significativos da esquerda, sem dúvida involuntariamente, sujeitem-se à hegemonia do neoliberalismo. Libertar-se desta hegemonia é sem dúvida a primeira prioridade para transcender a conjuntura.

Julho/2017


[i] Georg Lukács, Lenin (London: New Left, 1970).
[ii] V. I. Lenin, Two Tactics of Social Democracy in the Democratic Revolution, in Selected Works, vol. 1 (Moscow: Progress Publishers, 1977).
[iii] Lenin, Two Tactics of Social Democracy, 494.
[iv] V. I. Lenin, Imperialism: The Highest Stage of Capitalism, in Selected Works, vol. 1.
[v] Sobre isto, ver Paul M. Sweezy, The Theory of Capitalist Development (New York: Monthly Review Press, 1956).
[vi] J. M. Keynes, “National Self-Sufficiency,” Yale Review 22, no. 4 (1933): 755–69.
[vii] V. I. Lenin, Selected Works, vol. 3 (Moscow: Progress Publishers, 1975), 397.
[viii] Lenin, Selected Works, vol. 3, 724.
[ix] Ver Harry Magdoff, “Militarism and Imperialism”, Monthly Review 21, no. 9 (February 1970): 1–14.
[x] Joseph Stiglitz, “Inequality Is Holding Back the Recovery”, New York Times, January 13, 2013.
[xi] Paul A. Baran and Paul M. Sweezy, Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 1966).
[xii] Nota Tradutor: Aqui há, evidentemente, um erro. Os EUA não precisam se endividar no exterior para pagar pelas próprias importações, uma vez que o dólar estadunidense é a moeda de referência no comércio internacional, sendo aceito por qualquer país como pagamento de suas exportações. Os EUA nunca ficam, por definição, “sem dólares” para pagar suas despesas.
[xiii] Esta argumentação foi apresentada com maior detalhe em Prabhat Patnaik, “Capitalism and Its Current Crisis”, Monthly Review 67, no. 8 (January 2016): 1–13.
[xiv] Michal Kalecki percebeu a inadequação da politica monetária para estimular a atividade econômica em seu artigo clássico “Political Aspects of Full Employment,” reimpresso em Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy 1933–1970 (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1971).
[xv] C. P. Kindleberger, The World in Depression 1929–1939 (Berkeley, CA: University of California Press, 1986).
[xvi] Uma visão, amplamente difundida na esquerda, que contribui para esta fraqueza é a de que qualquer pequena produção para o mercado é progenitora do capitalismo. Isto é incorreto, tanto teórica quanto historicamente. Ver Prabhat Patnaik, “Defining the Concept of Commodity Production,” Studies in People’s History 2, no. 1 (2015): 117–25.

(Artigo originalmente publicado na Monthly Review. Tradução de Rafael Ruggiero.)


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