Eu poderia ter sido uma vítima da “cura gay”

Precisamos combater o retrocesso medieval que é tratar LGBTs como doentes e autorizar a “cura gay”.

Samir Oliveira 21 set 2017, 18:58

O ano era 2003. Eu ainda não conhecia o termo “cura gay”. Acho que ninguém conhecia. Não era um assunto tratado pela mídia ou com trânsito na esfera política

Eu tinha apenas 15 anos quando fui arrastado à força para fora do armário. Não pude optar por permanecer dentro dele até me sentir fortalecido o bastante para sair.

De cara, fui levado a um médico. Não a um psiquiatra, mas a um neurologista. Sim, gente: um neurologista. É evidente que o plano traçado para mim era o de alguma espécie de “cura”. Lembro até hoje das palavras daquele médico, com um livro da OMS em mãos: “Desde os anos 1990 a homossexualidade não é considerada uma doença”.

Nunca mais vi esse médico. Não lembro seu nome. Mas, nos últimos dias, tenho lembrado constantemente de suas palavras e do que elas significaram para mim naquele momento. Minha vontade é de ligar para ele e agradecer: “Você não sabe, mas me salvou”.

Imaginem se eu caísse nas mãos de um charlatão? Ou se existisse em 2003 uma liminar judicial abrindo brechas para supostas terapias de “reversão sexual”?

Tenho pensado muito nisso na última semana. Não apenas no que aconteceu ou poderia ter acontecido comigo. Mas no que pode estar acontecendo neste momento com um menino gay ou uma menina lésbica de 15 anos. Será que eles terão a sorte de ouvir de um profissional da saúde que “homossexualidade não é doença”? Ou será que irão ouvir que a Justiça agora autoriza a “cura gay”?

O Samir de 2003 pensaria que estamos vivendo em uma distopia.

A aclamada série “The Handmaid’s Tale” nos alerta que os sinais do retrocesso sempre estiveram presentes, mas que nunca demos importância. Fico me perguntando se em 2003 os sinais de que algum tipo de “cura gay” seria possível em 2017 pairavam no ar. Realmente não sei, estava preocupado demais em sobreviver ao inferno naquela época para notar.

Hoje eu sei. Sei que a ação que resultou no precedente para a “cura gay” foi aberta por uma psicóloga lotada no gabinete de um deputado federal evangélico do DEM. Rozangela Alves Justino trabalha com Sóstenes Cavalcante, que além de parlamentar é pastor da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia – ele mesmo.

O deputado Sóstenes, chefe da psicóloga-missionária que reivindica a “cura gay” na Justiça, diz em seu próprio site pessoal falar diretamente com Deus: “Comigo Deus tem tratos específicos de tempos em tempos para cumprir determinadas missões”.

Hoje eu sei que a seita de Silas Malafaia investe na abertura de centros de reabilitação para dependentes químicos. O que o impediria de inaugurar centros de reabilitação para homossexuais? Se tais tratamentos passarem a ser considerados legais, nada.

O perfil @nadanovonofront no Twitter faz um alerta interessante. Estes centros de reabilitação que pipocam em todo o país possuem convênios com os governos. Ou seja, recebem recursos públicos para tratar de dependentes químicos – já que não há vagas para todos na rede hospitalar ou nos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS).

Imaginem o mercado lucrativo que a “cura gay” pode representar para os rentistas da fé. Nada mais pragmático para setores que aprenderam a ganhar dinheiro a partir do sofrimento.

Um relatório do Conselho Federal de Psicologia aponta as condições degradantes em que os pacientes são tratados nestes centros. O órgão avaliou 68 comunidades terapêuticas em 25 estados e constatou violações graves: “Interceptação e violação de correspondência, violência física, castigos, tortura, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência prévia de exames clínicos como teste de HIV, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências encontradas em todos os lugares visitados”, disse Cláudio Garcia Capitão, que representava o CFP no Conselho Nacional de Saúde em 2015, quando apresentou o estudo.

Aqueles que desejam a “cura gay” já perderam diversas vezes no Congresso. Não conseguiram fazer avançar seus projetos, mesmo em um Congresso absolutamente conservador como o nosso – o que revela o nível de regressão medieval da medida. Por isso apelam à Justiça, onde em algum momento acabariam encontrando um juiz conservador que lhes desse razão.

Eu acredito que podemos mudar essa história. A disputa segue na Justiça e no Congresso, mas a saída não virá das instituições. Virá da nossa organização coletiva e da força da nossa luta. Só assim poderemos deixar de viver neste presente distópico.

Publicado por Vos.


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