Tolstói, poeta e rebelde
No dia que marca os 189 anos do nascimento do escritor russo Leon Tolstói, recuperamos o artigo escrito por ocasião do aniversário de 80 anos do autor de Guerra e Paz.
Tolstói passou o seu octogésimo aniversário e agora está diante de nós como um enorme penhasco irregular, coberto de musgo e de um mundo histórico diferente.
Uma coisa notável! Não só Karl Marx, mas – para citar um nome de um campo mais próximo de Tolstói – Heinrich Heine também parecem ser nossos contemporâneos. Porém, do nosso grande contemporâneo de Yasnaya Polyana já estamos separados pelo fluxo irreversível do tempo que diferencia todas as coisas.
Esse homem tinha 33 anos quando se aboliu a servidão na Rússia. Como descendente de “dez gerações intocadas pelo trabalho”, ele amadureceu e foi moldado numa atmosfera da velha nobreza; entre hectares herdados, em uma espaçosa casa senhorial e na sombra de vielas de tília, tão tranquilo e patrício.
As tradições do domínio senhorial, seu romantismo, sua poesia, todo seu estilo de vida foram irresistivelmente absorvidos por Tolstói e tornaram-se uma parte orgânica de sua composição espiritual. Desde os primeiros anos de sua consciência, ele era, e permanece até hoje, um aristocrata nas mais profundas e mais secretas reentrâncias de sua criatividade; e isso, apesar de todas as suas subsequentes crises espirituais.
Na casa ancestral dos príncipes Volkonsky, herdada pela família Tolstói, o autor de Guerra e Paz ocupa uma sala simples e mobiliada de modo simples, na qual pendura um serrote, mantem uma foice e repousa um machado. Mas no andar superior dessa mesma residência, como guardiões petrificados de suas tradições, os ilustres ancestrais de um grande número de gerações vigiam os muros. Nisto há um símbolo. Nós encontramos ambos os andares também no coração do senhor da casa, mas em ordem invertida. Enquanto que, nas regiões superiores da consciência, a filosofia da simplicidade e da submersão no povo fiou um ninho, embaixo, onde as raízes dos sentimentos, das paixões e da vontade ficam mergulhadas, nos saúda uma longa galeria de antepassados.
Na ira do arrependimento, Tolstói se apartou da arte mentirosa e vã das classes dominantes que glorifica suas simpatias cultivadas artificialmente e envolve seus preconceitos de casta com a adulação da falsa beleza. Mas o que aconteceu? Em sua última grande obra, Ressurreição, Tolstói ainda situa no centro da atenção artística o mesmo rico e bem nascido latifundiário russo, rodeando-o cuidadosamente com o tecido de ouro das relações, hábitos e recordações aristocráticas, como se fora desse “vão-mundano” e “falso” universo não houvesse nada belo ou importante.
Desde o domínio senhorial há um caminho curto e estreito até a cabana do camponês. Tolstói, o poeta, estava acostumado a fazer essa passagem frequentemente e amorosamente, mesmo antes que Tolstói, o moralista, convertesse isso em um caminho de salvação. Mesmo depois do fim da servidão, considera o camponês como pertencente a ele – uma parte inalienável do seu inventário material e espiritual. Por trás de seu inquestionável “amor físico pelo genuíno povo trabalhando” sobre o que ele mesmo nos contou, olha para nós, tão inquestionável quanto, seu antepassado aristocrático coletivo – apenas iluminado pelo gênio do artista.
O latifundiário e o camponês, esses são no final das contas os únicos tipos que Tolstói recebeu no santuário de seu trabalho criador. Nunca, nem antes nem depois da crise, se libertou nem tratou de libertar-se do desprezo autenticamente feudal por todos os personagens que se interpõem entre o latifundiário e o camponês ou ocupam um lugar qualquer fora desses dois polos sagrados da antiga ordem de coisas: o intendente alemão, o comerciante, o preceptor francês, o médico, o “intelectual” e, por último, o operário da fábrica com seu relógio e sua corrente. Não experimenta jamais a necessidade de estudar estes tipos, de olhar no fundo de sua alma, de interrogá-los sobre suas crenças, e passam ante seus olhos de artista como personagens sem importância alguma e cômicos a maior parte do tempo. Quando lhe ocorre representar os revolucionários dos anos 70 ou 80, como em Ressureição, se contenta com variar no novo meio seus velhos tipos de nobres e de camponeses, ou nos dá esquemas superficiais e cômicos. Seu Novodvorof pode pretender representar o tipo de revolucionário russo tanto como o Riccaut de la Marlinière de Lassin, o oficial francês.
A hostilidade de Tolstói à nova vida
No começo dos anos 60, quando a Rússia foi submergida sob a onda de novas ideias e – o mais importante – das novas condições sociais, Tolstói tinha deixado pra trás, como já vimos, um terço de século. Do ponto de vista psicológico e moral, estava, pois, completamente formado. Não é necessário dizer aqui que Tolstói não foi nunca um defensor da servidão como o era seu amigo íntimo, Fet (Shenshin), o aristocrata e o fino lírico em cuja alma o amor à natureza sabia esfregar os ombros com a adoração pelo chicote. O certo é que Tolstói experimentava um ódio profundo pelas condições novas que estavam a ponto de substituir as antigas. Pessoalmente – escrevia em 1861 – não vejo ao meu redor nenhum adoçamento dos costumes, e não estimo necessário acreditar na palavra de quem afirma o contrário. Por exemplo, não me parece que as relações entre os industriais e os operários sejam mais humanas que as relações entre os nobres e os servos.
A desordem e o caos por todos os lados e em tudo, a decadência da velha nobreza, a do campesinato, a confusão geral, as cinzas e a poeira da destruição, a confusão e a desordem da vida citadina, o cabaré e o cigarro na aldeia, a canção trivial do operário fabril em lugar do nobre canto popular, tudo isso o desencorajava como aristocrata e como artista ao mesmo tempo. Por isto, se distanciou moralmente desse processo formidável e lhe privou de uma vez por todas de sua aprovação de artista. Não tinha necessidade de converter-se em defensor da servidão para ser com toda a sua alma partidário do retorno a essas condições sociais nas quais via a prudente simplicidade e a perfeição artística. Lá, a vida se reproduz de geração em geração, de século em século, numa constante imobilidade, e reina todo-poderosa a santa necessidade. Todos os atos da vida estão determinados pelo sol, a chuva, o vento, o crescimento das ervas. Nesta ordem de coisas não há lugar para a razão ou a vontade pessoal. Tudo esta regulado, justificado, santificado de antemão. Sem nenhuma responsabilidade nem vontade próprias, o homem vive simplesmente na obediência, diz o notável poeta de O Poder da Terra, Gleb Uspenski, e é precisamente nesta obediência constante, transformada em esforços constantes, o que constitui a vida, a qual em aparência não leva a resultado algum, mas que, no entanto, contém em si mesma o seu resultado… E oh, milagre! Esta dependência servil, sem reflexões e sem escolha, sem erros e, portanto, sem remorsos, é precisamente a que criou a “facilidade” moral da existência sob a dura tutela da “espiga de centeio”. Micula Selianinovitch, o herói camponês da velha lenda popular, disse de si mesmo: “A Mãe Terra me ama”.
Esta aí o mito religioso do “narodnitchestvo” russo, do “populista”, que dominou durantes largos decênios a alma da intelligentsia russa. Completamente adversário destas tendências radicais, Tolstói permaneceu sempre fiel a si mesmo, e no meio do “narodnitchestvo” representou a ala aristocrática, conservadora. Para poder pintar como artista a vida russa, tal qual a conhecia, compreendia e amava, Tolstói devia refugiar-se no passado, no início do século XIX. Guerra e Paz (1867-1869) é, neste sentido, sua melhor obra, ainda inigualada.
Este caráter de massa, impessoal, da vida e sua santa irresponsabilidade, o encarnou Tolstói na persona de Karataiev, o tipo menos compreensível para o leitor europeu e, em qualquer caso, o que mais estranho lhe resulta. A vida de Karataiev, como ele mesmo percebia, não tinha significado algum como vida individual. Tinha-o como parte de um todo, que ele sentia sempre como tal. As inclinações, as amizades, o amor, tal como Pierre os compreende, eram ignorados por Karataiev totalmente, mas amava e vivia no amor de tudo o que encontrava na vida e em particular nos homens… Pierre (o conde Bezukhov) sentia que Karataiev, em que pese toda sua ternura amistosa para com ele, não se afligiria um só minuto se tivesse tido que separar-se dele. É este o estado em que o espírito, para empregar a linguagem de Hegel, não adquiriu, todavia, a natureza íntima e em que aparece, por consequência, só como espiritualidade natural. Em que pese o caráter episódico de suas aparições, Karataiev constitui o pivô filosófico, senão artístico, de todo o livro. Kutuzov, a quem Tolstói faz um herói nacional, é Karataev no papel de general em chefe. Contrariamente a Napoleão, não tem nem planos nem ambições próprias. Em sua tática semiconsciente, e por consequência salvadora, não se deixa guiar pela razão, senão por algo que está por cima da razão, o surdo instinto das condições físicas e as inspirações do espírito popular. O czar Alexandre, em seus melhores momentos, igual o último de seus soldados, obedece indistintamente e da mesma forma a profunda influência da terra. É nesta unidade moral onde precisamente reside todo o pathos da obra.
Tolstói, pintor da velha Rússia
Como esta Velha Rússia é miserável no fundo, com sua nobreza tão rudemente tratada pela história, sem orgulho passado de casta, sem cruzadas, sem amor cavalheiresco, sem torneios, e inclusive sem expedições de banditismo romântico pelas estradas. Que pobre é em beleza interior, que profundamente degradada está a existência tímida e semi-animal de suas massas camponesas!
Mas que milagres de transformação não criam o gênio! Da forma bruta desta vida apagada e sem cor, ele traz à luz do dia toda sua beleza oculta. Com uma calma olímpica, com um verdadeiro amor homérico pelos filhos de seu espírito, consagra a todos e a tudo sua atenção: o general em chefe, os servidores do terreno senhorial, o cavalo do simples soldado, a filha pequena do conde, o mujique, o czar, a pulga na camisa do soldado, o velho maçom, ninguém tem privilégio ante ele e cada um recebe sua parte. Passo a passo, traço a traço, pinta um imenso afresco, cujas partes todas estão vinculadas por um laço interior, indissolúvel. Tolstói cria, sem se apressar, como a vida mesma que desenvolve ante nossos olhos. Refaz o livro inteiramente sete vezes. O que assombra mais neste trabalho de criação titânica é, quiçá, o feito de que o artista não se outorga a si mesmo, e não permite tampouco ao leitor conceder sua simpatia a tal ou qual personagem. Jamais nos mostra, como faz Turgueniev, os seus heróis – aos que, por outro lado, não ama – iluminados por luzes de vela ou pelo resplendor do magnésio, jamais busca para eles uma posse vantajosa. Não oculta nada e nada passa em silêncio. O inquieto buscador da verdade, Pierre, nos é mostrado ao final da obra sob o aspecto de um pai de família tranquilo e satisfeito. A pequena Natacha Rostov, tão comovedora em sua delicadeza quase infantil, se transforma, com uma ausência de piedade completa, numa mulherzinha limitada com as mãos cheias de fraldas sujas. É precisamente esta atenção apaixonada por todas as partes isoladas o que cria o poderoso pathos do conjunto. Pode dizer-se desta obra que toda ela está penetrada de panteísmo estético, que não conhece nem beleza, nem feiura, nem grandeza, nem pequenez, porque para ele só a vida em geral é grande e bela, na eterna sucessão de suas diversas manifestações. É a verdadeira estética rural, impiedosamente conservadora, segundo sua natureza, e o que aproxima a obra épica de Tolstói ao Pentateuco e à Ilíada.
Duas tentativas feitas com posteridade por Tolstói com vistas a situar seus tipos psicológicos preferidos no marco do passado, e especialmente na época de Pedro I e dos dezembristas, fracassaram por causa da hostilidade do poeta frente aos influxos estrangeiros que influenciam estas duas épocas tão fortemente. Inclusive ali aonde Tolstói se aproxima mais a nossa época, como em Ana Karenina (1873), permanece completamente estranho à perturbação introduzida na sociedade e implacavelmente fiel ao seu conservadorismo artístico, restringe a amplitude de seu voo e não distingue da massa da vida russa mais que os oásis feudais que permaneceram intactos, com o seu velho castelo senhorial, os retratos dos antepassados e as belas alamedas de tílias a cuja sombra se desenvolve, de geração em geração, o ciclo eterno do nascimento, da vida e da morte.
Tolstói descreve a vida moral de seus heróis igual o seu mundo de existência: tranquilamente, sem pressa, sem precipitar o curso interior de seus sentimentos, de seus pensamentos e de suas conversações. Não se apressa jamais e nunca chega muito tarde. Têm em suas mãos os fios a que está vinculada a sorte de um grande número de personagens e não perde de vista nenhum. Como um amo vigilante e infatigável, tem em sua cabeça a conta completa de todas as partes de seus imensos bens. Diria que se contenta só com observar e que é a natureza que faz todo o trabalho. Joga a semente no solo e espera, como um prudente cultivador, que mediante um processo natural o caule e a espiga brotem fora da terra. Poderia quase dizer-se que é um Karatiev de gênio, com sua resignação muda ante as leis da natureza. Não porá nunca as mãos sobre a gema para arrancar violentamente as folhas. Espera até que a própria gema as arranque sob a ação do calor do sol. Porque odeia profundamente a estética das grandes cidades, que por sua ambição se devora a si mesma, violenta e martiriza a natureza, ao não pedir-lhe mais que extratos e essências e ao buscar na paleta, com dedo convulso, cores que não contem o espectro solar.
A língua de Tolstói é como o seu gênio mesmo, calma, possuída, concisa, ainda que sem excesso, musculosa, às vezes algo pesada e rude, mas sempre simples e de uma efetividade incomparável. Distingue-se a um tempo do estilo lírico, cômico, brilhante e consciente de sua beleza de Turgueniev, e do estilo retumbante, precipitado e áspero de Dostoievski.
Em uma de suas novelas, o urbano Dostoievsky, esse gênio de coração incuravelmente ferido, o poeta voluptuoso da crueldade e da piedade, se opõe a si mesmo de forma muito profunda e muito surpreendente, como o artista das “novelas familiares russas”, ao conde Tolstói, o poeta das reformas caducas do passado nobre: “Se eu fora um novelista russo e tivesse talento – disse por boca de um de seus personagens – escolheria sempre meus heróis entre a nobreza russa, porque só nesse meio cultivado encontramos ao menos a aparência exterior de uma bonita disciplina e de nobres motivos… Digo-o muito seriamente ainda que não seja nobre, como sabes… Porque, acredite em mim, é nesse meio onde se encontra tudo quanto entre nós existe de beleza, ao menos tudo o que é, de certo modo, beleza acabada, completa. Não digo isto porque esteja completamente convencido da perfeição e da justificação desta beleza, se não porque nos foi dado, por exemplo, formas fixas de honra e de dever que não se encontram em nenhuma parte da Rússia, salvo entre a nobreza… A via pela qual esse novelista deveria adentrar-se – prossegue Dostoievski, que pensa irrefutavelmente em Tolstói sem nomeá-lo – é claramente nítida: não poderia escolher mais que o gênero histórico, porque não há em nossa época bela e nobre silhuetas, e as que ainda persistem em nossos dia perderam já, segunda a opinião atual, sua antiga beleza”.
A crise moral de Tolstói
Ao tempo que desapareciam as “belas silhuetas” do passado, não desapareciam só o objeto imediato da criação artística, se não também as bases mesmas do fatalismo moral de Tolstói e de seu panteísmo estético começavam a oscilar: o santo “karataievismo” da alma de Tolstói se derrubava. Tudo o que até então havia constituído uma parte integrante de um todo completo e indissolúvel se transformou em um fragmento isolado e, por conseguinte, em uma questão. A razão se converteu em absurdo. E como sempre, precisamente no momento em que a vida perdia seu velho sentido, Tolstói de interrogou sobre o sentido da vida em geral. É então (na segunda metade dos anos 70) quando começa a grande crise moral, não na vida de um Tolstói adolescente, senão de um Tolstói de 50 anos! Volta a Deus, aceita os ensinamentos de Cristo, rechaça a divisão do trabalho, a civilização e advoga pelo trabalho agrícola, a simplicidade e o principio da “não existência do mal”.
Quando mais profunda era a crise interior – se sabe que, por confissão própria, o poeta cinquentenário esteve às voltas durante muito tempo com a ideia do suicídio – tanto mais surpreendente deve resultar que Tolstói voltasse a final de contas a seu ponto de partida. O trabalho agrícola não é a base sobre a que se desenvolve a epopeia de Guerra e Paz? O retorno à simplicidade, ao princípio da fusão intima com a alma popular, não consiste nisso toda a força de Kutuzov? O princípio da não resistência ao mal não é o que está na base da resignação fatalista de Karatiev? Se isto é assim em que consiste então a crise de Tolstói? Nisto: em que tudo o que até então havia permanecido secreto e oculto sob a terra aparece diante da luz do dia e passa ao campo da consciência. Havendo desaparecido a espiritualidade natural com a “natureza”, a que se havia incorporado, o espírito se esforça agora por conseguir a natureza íntima. À harmonia automática, contra a que se rebelou o automatismo da vida mesma, tinha que defendê-la e conserva-la com ajuda da força consciente da Ideia. Na sua luta por sua própria conservação moral e estética, o artista chama em sua ajuda ao moralista.
Qual dos dois Tolstói – o poeta ou o moralista – obteve maior popularidade na Europa? Esta questão não é fácil de sanar. O que resulta incontestável em qualquer caso é que o sorriso de condescendência benévola do público burguês frente à santa simplicidade do velho de Yasnaya-Polyana oculta um sentimento de satisfação moral particular. Há aí um poeta célebre, um milionário, um dos “nossos”, e mais, a um aristocrata que por motivos de ordem moral leva uma blusa e sapatilhas de palha trançada e um serrote de madeira. Nele se vê em certo modo um ato mediante o qual o poeta toma sobre ele os pecados de toda uma classe, de toda uma cultura. Naturalmente, isto não impede em modo algum ao filisteu olhar a Tolstói desde a altura de sua grandeza e inclusive expressar algumas dúvidas sobre a integridade de suas faculdades intelectuais. Assim é, por exemplo, como um homem que não é nenhum desconhecido, Max Nordau, um desses senhores que adotaram a filosofia do bom e velho Smile, temperada com um pouco de cinismo, com traje de arlequim de folhetim de domingo, fez, com a ajuda de seu Lombroso de bolso, este descobrimento notável: que León Tolstói levava nele todos os estigmas da degeneração. Porque para esses mendigos a loucura começa onde cessa o benefício.
A filosofia social de Tolstói
Qualquer que seja o modo em que seus admiradores burgueses o julguem, com suspeita, com ironia ou com benevolência, sempre ficará para eles um enigma psicológico. Se excetuarmos o curto número de seus discípulos – um deles, Menchikov, joga agora o papel de uma Hammerstein russo – pode comprovar-se que o moralista Tolstói, durante os trinta últimos anos de sua vida, permaneceu sempre completamente isolado. É na realidade a situação trágica de um profeta que fala sozinho no deserto. Desde a influência de suas simpatias rurais conservadoras, Tolstói defende incansável e vitoriosamente seu mundo moral contra os perigos que o ameaçam por toda parte. De uma vez para sempre traça uma demarcação profunda entre ele e todas as variantes do liberalismo burguês e rechaça em primeiro lugar a crença, geral em nossa época, no progresso. Por suposto – exclama – a luz elétrica, o telefone, as exposições, os concertos, os teatros, os maços de cigarros e as caixas de fósforo, os suspensórios e os motores, tudo isso é admirável. Mas malditos sejam por toda a eternidade não só eles, senão também as ferrovias e os tecidos de algodão em todo o mundo, porque para sua fabricação é preciso que 99 de cada 100 pessoas vivam na escravidão e morram aos milhares nas fábricas.
A divisão do trabalho nos enriquece e embeleza nossa vida. Porém, mutila a alma viva do homem. Abaixo a divisão do trabalho!
A arte! A arte verdadeira deve agrupar a todos os homens no amor de Deus e não dividi-los. Vossa arte, pelo contrário, está destinada não só a um pequeno número de iniciados. Divides aos homens, porque a mentira está nela, e Tolstói rechaça virilmente a arte “mentirosa”. Shakespeare, Goethe mesmo, Wagner, Böcklin.
Distancia de si toda preocupação de enriquecimento e se veste os hábitos do camponês, o que para ele simboliza sua renúncia à cultura. O que se oculta atrás deste símbolo? O que opões à “mentira”, ou seja, ao processo histórico?
Podemos resumir nas seguintes teses a filosofia social de Tolstói:
1. Não é um tipo de leis sociológicas de ferro que determinam a escravidão dos homens, senão os regulamentos jurídicos estabelecidos arbitrariamente por eles.
2. A escravidão moderna é a consequência de três regulamentações jurídicas que concernem à terra, aos impostos e à propriedade.
3. Não só o governo russo, senão qualquer governo, seja o que for, é uma instituição que tem por objetivo cometer impunemente os crimes mais espantosos, com a ajuda do poder de Estado.
4. O verdadeiro melhoramento social se obterá unicamente mediante o aperfeiçoamento moral e religioso dos indivíduos.
5. Para livrar-se dos governos não é necessário combate-los com meios exteriores, basta com não participar neles e não apoia-los. Especialmente não há que:
a) aceitar as obrigações de um soldado, de um general, de um ministro, de um estadista, de um deputado;
b) fornecer voluntariamente ao governos impostos diretos e indiretos;
c) utilizar as instituições governamentais ou solicitar uma ajuda financeira qualquer do governo;
d) fazer proteger sua propriedade privada por alguma medida do poder de Estado.
Se deixarmos de lado deste esquema o ponto relativo à necessidade do aperfeiçoamento moral e religioso dos indivíduos, que segundo toda aparência ocupa um lugar à parte, obtemos um programa anarquista bastante completo. Em primeiro lugar, temos uma concepção puramente mecânica da sociedade como produto de uma má regulamentação jurídica. Logo, a negação formal do Estado e da política; em geral, por último, como método de luta, a greve geral, o boicote, a revolta de braços cruzados.
Se excluirmos as teses moral e religiosa, excluímos de vez o único nervo que religa todo este edifício nacionalista com seu criador, ou seja, a alma de Tolstói. Para ele, conforme todas as condições de seu desenvolvimento e de sua situação próprias, o dever não consiste em substituir a anarquia “comunista” pelo regime capitalista, senão defender o regime da comunidade camponesa frente a qualquer influência “exterior” perturbadora. Em seu “narodnitschestvo”, como em seu anarquismo, Tolstói representa o princípio rural conservador. Igual a maçonaria primitiva, que se propunha reestabelecer e reforçar por meio ideológicos a velha moral corporativa de ajuda mútua, arruinada sob os golpes do desenvolvimento econômico, Tolstói queria ressuscitar pela força da ideia moral e religiosa o modo de vida primitivo baseado nas condições da economia natural. Assim é como se converte em um anarquista conservador, porque o que lhe importa, antes de tudo, é que o Estado não alcance, com os chicotes de seu militarismo e os escorpiões do seu fisco, a comunidade salvadora de Karataiev. A luta universal entre os dois mundos antagonistas: o mundo burguês e o mundo socialista, de cujo resultado depende o destino da Humanidade mesma, não existe para Tolstói. O socialismo foi sempre para ele uma simples variante, de pouco interesse em sua opinião, do liberalismo. Aos seus olhos, Marx e Bastiat são representantes de um só e mesmo “princípio mentiroso”: da cultura capitalista, do operário sem terra, da pressão do Estado. A humanidade, uma vez cercada por uma vida falsa, pouco importa que vá mais ali ou mais aqui. A salvação não pode vir mais que de um retorno completo para trás.
Tolstói não encontra termos suficientemente depreciativos para fustigar a ciência, a qual disse que se continuamos vivendo durante largo tempo de forma pecadora, segundo as leis do progresso histórico, sociológico, etc., nossa vida terminará por melhorar consideravelmente.
O mal – disse Tolstói – deve ser imediatamente exterminado, e para isso basta reconhece-lo como mal. Todos os sentimentos morais que vinculam aos homens historicamente uns com os outros, assim como todas as ficções religiosas e morais a que estes vínculos deram nascimento se convertem em Tolstói nos mandamentos mais abstratos do amor, do êxtase e da não resistência ao mal, e como seus mandamentos estão despojados por ele de todo conteúdo histórico e, por consequência, de todo conteúdo seja qual for, lhe parecem apropriados a todo tempo e a todos os povos.
Tolstói não reconhece a história. É a base de todo o seu pensamento. A liberdade mecânica de sua negação, assim como a ineficácia prática da sua pregação, repousa aí. O único gênero de vida que aceita o modo de vida primitivo dos cossacos cultivadores de vastas estepes do Ural transcorre precisamente fora da história. Reproduziu-se sem transformação alguma, como a vida dos enxames de abelhas ou dos formigueiros. O que os homens chamam história lhe parece como o produto da loucura, do erro, da crueldade, que desfiguram a alma verdadeira da humanidade. Com uma lógica implacável, ao tempo que rechaça a história, rechaça igualmente todas as consequências. Odeia os jornais como documentos da época atual. Todas as ondas do oceano mundial pensa detê-las opondo-lhes seu velho peito.
Esta incompreensão total que Tolstói demonstra com respeito à história explica sua impotência infantil no terreno das questões sociais. Sua filosofia é uma autêntica pintura chinesa. As ideias das épocas mais diversas não estão classificadas por ele segundo a perspectiva histórica: todas aparecem à mesma distância do espectador. Alça-se contra a guerra com ajuda de argumentos sacados da lógica pura, e para dar-lhes maior força cita ao mesmo tempo a Epiteto e a Molinari, a Lao-Tze e a Frederico II, ao profeta Isaías e ao folhetinista Hardouin, o oráculo dos tendeiros parisienses. Os escritores, os filósofos e os profetas não representam aos seus olhos épocas determinadas, senão categorias eternas da moral. Confúcio é colocado por ele no mesmo patamar que Harnack e Schopenhauer se vê emparelhado não só com Cristo, senão inclusive com Moisés.
Nesta luta isolada e trágica contra a dialética da história a qual não sabe opor mais que seus sins ou seus nãos, Tolstói cai a cada instante nas contradições mais insolúveis. E extrai a seguinte conclusão, digna a todas as luzes da sua teimosia genial: a contradição fundamental que existe entre a situação dos homens e sua atividade moral é o sinal mais seguro da verdade.
A revanche da história
Mas este orgulho idealista leva em si mesmo seu castigo. Com efeito, seria difícil nomear um escritor que contra sua vontade haja sido tão cruelmente explorado pela história como Tolstói.
Ele, o moralista místico, o inimigo da política e da revolução nutriu durante largos anos a consciência revolucionária letárgica de numerosos grupos do sectarismo popular. Ele, que renega de tudo a cultura capitalista, encontra uma acolhida benevolente na burguesia europeia e americana, que encontra em sua pregação, ao mesmo tempo, a expressão de seu humanitarismo vazio e uma defesa contra a filosofia da revolução.
Ele, o anarquista conservador, o inimigo mortal do liberalismo, se vê transformado, em ocasião dos 80 anos do seu nascimento, em uma bandeira e um instrumento de uma manifestação politica ruidosa e tendenciosa do liberalismo russo.
A história triunfou sobre ele, mas não o quebrou. Todavia hoje, chegado ao término de sua vida, conservou em todo seu frescor sua capacidade de indignação moral.
Na noite da mais miserável e mais criminosa reação, que se propõe ofuscar para sempre o sol de nosso país sob a rede apertada de suas cordas de patíbulo, na atmosfera irrespirável da covardia desencorajada da opinião pública oficial, este último apóstolo da caridade cristã, em quem revive o profeta da cólera do Antigo Testamento, lança seu grito obstinado: “Não posso me calar”. Como uma maldição para o rosto tanto daqueles que penduram quanto daqueles que se calam ante as forcas.
E se não simpatiza com as nossas metas revolucionárias, sabemos que é porque a história lhe negou toda a compreensão de suas vias.
Não o condenaremos por ele. E admiraremos sempre nele não só o gênio, que viverá tanto tempo como a arte em si, senão também o valor moral indomável que não lhe permite permanecer no seio de sua Igreja hipócrita, de sua sociedade, de seu Estado, e que o condenou a permanecer isolado entre seus inumeráveis admiradores.