Faz sentido um partido político socialista?

No momento em que a nova crise do capital faz Marx ser novamente a ser lembrado este artigo resgata análise da consciência de classes na obra marxiana.

Roberto Robaina 14 out 2017, 20:06

A questão das classes sociais e da consciência de classes

O marxismo é um movimento social, político e uma concepção do mundo. Durante muitos anos foi perseguido nas universidades. Nos anos 60 ganhou peso acadêmico em países como a França e retomou novamente alguma influencia na Alemanha, a mesma que tinha visto a emigração para os EUA da última leva de professores marxistas durante a ascensão do nazismo. Com o recuo das lutas sociais dos anos 70, e, sobretudo, depois da queda do muro de Berlim, isto é, o anúncio do colapso do socialismo real, o marxismo passou a ser considerado como totalmente fora do jogo universitário. Este evidentemente é também o quadro do Brasil, onde hoje a defesa do marxismo nas universidades não passa de um movimento de resistência, sendo a base teórica de poucos professores e restrito a poucos cursos. Muitos, aliás, argumentam que Marx é um autor antigo, ultrapassado pelos novos tempos. Não poucos deles, na área da filosofia política, vão beber em autores anteriores a Marx, em Kant, em Hume, em Hobbes…

Agora, a partir da nova crise do capital, a obra de Marx começa novamente a ser lembrada. Mas como sempre Marx é mais comentada do que lido. Neste trabalho apenas resgato um aspecto de seu texto: sua análise da consciência de classes. Quando me refiro à consciência a entendo como um fenômeno biológico, uma faceta especial, uma característica qualitativa especial das funções cerebrais, tal como definia Vigotski, ou, na mesma linha, desta vez seguindo Jonh Searle, como os estados de “conhecimento ou percepção que começam quando acordamos de manhã depois de um sono sem sonhos e continuam durante o dia até que adormeçamos novamente” (página 45 – Mente, Linguagem e Sociedade, Rocco, 2000 – Rio de Janeiro).

Marx marcou uma definição: as ideias dominantes de dada sociedade são da classe que controla o excedente econômico desta sociedade. O marxismo definiu que os pensamentos das classes dominantes são também, “em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual” (Ideologia Alemã, página 55, Editorial Presença).

O capital, isto é, o trabalho acumulado e apropriado privadamente era, então, segundo Marx, a base do poder dos capitalistas. A partir desta base criaram as leis, as instituições repressivas e ideológicas, crenças, moral, enfim, toda uma complexa superestrutura subjetiva e objetiva, ideológica, política, jurídica, militar, desenvolvida a partir da produção material dominada pelos grupos que controlavam o excedente econômico, com o objetivo principal de manter e reproduzir esta dominação. Ao mesmo tempo, pelas características do modo de produção capitalista, um modo de produção de mercadoria generalizado, pelas leis do seu funcionamento, esta dominação se reforça precisamente porque a exploração da força de trabalho fica oculta, isto é, o mais valor que os trabalhadores produzem em relação ao valor de sua força de trabalho está ocultado e é desconhecido pelos próprios trabalhadores que aceitam naturalmente o regime salarial como o único possível e eterno.

A consciência burguesa também se reproduz, todos os dias, defendida por instituições burguesas e/ou a serviço da burguesia, seja a mídia, a escola, a Igreja, os tribunais, e pela superestrutura burocrática do movimento operário, os partidos reformistas e sindicatos por ela controlados. Ou seja, a falsa consciência de que a sociedade é como é e não mudará, de que o sucesso ou fracasso de cada um depende de seus esforços no trabalho, e de que a produtividade do trabalho e o progresso material da sociedade estão determinados pelo espírito de iniciativa garantido pela propriedade privada dos meios de produção e de troca e pela intervenção das empresas na economia, enfim, esta consciência burguesa se reproduz com a ação cotidiana dos aparatos contrários a ideia da revolução. Tal falsa consciência, portanto, se objetiva em superestruturas e instituições.

É lógico que Marx não se deteve na análise dos processos de reprodução e defesa da ideologia dominante. Seu trabalho foi mais centrado na elucidação da estrutura econômica da sociedade. E dispensável dizer que Marx não pretendeu nem de longe esgotar a discussão sobre a alienação e a consciência de classes, embora a parte do capital sobre o fetichismo da mercadoria é insuperável como base deste debate. Mas apenas indico esta leitura.

É claro igualmente que a alienação e o domínio ideológicos assumiram determinações mais complexas. O desenvolvimento do capital desenvolveu também formas sofisticadas de dominação cultural. No plano da reprodução ideológica da formação de produção capitalista é preciso que se diga, seguindo as lições de Debord, que o excedente sob a forma de capital, quando atinge alto grau de acumulação, como nos nossos dias, se transforma em imagem, em espetáculo. Nas palavras de Debord. “O espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação concreta da alienação” (Página 24, Editora Contraponto, 2003, Ro de Janeiro). Numa vida social dominada pela mercadoria esta fabricação é desenvolvida ao máximo pela grande mídia e pela força da Televisão, quando as classes dominantes tentam impor que exista apenas aquilo que aparece e tentam fazer aparecer apenas aquilo que querem que exista. Marx não podia nem imaginar tal situação.

Tal tendência foi reforçada no atual período de domínio cultural do pós-modernismo em seus traços mais conservadores. Na leitura das características da consciência no período pós-moderno Harvey (56 – Condição Pós-Moderna) dá sinal verde a uma caracterização segundo o qual há fortes marcas de esquizofrenia na consciência social. Cita Lacan, para o qual na esquizofrenia temos “um agregado de significados distintos e não relacionados entre si”. Perde-se a capacidade de unificar passado, presente e futuro.

Assim a consciência se fragmenta, num mosaico de idéias, impressões, sentimentos, percepções, enquanto o presente, como antes mencionamos, se eterniza, sem balanços do passado e sem projetos coletivos de sociedade como vimos no período modernista, seja no modernismo conservador, fascista, no burguês progressista do iluminismo ou no modernismo socialista. Desta forma, “o caráter imediato dos eventos, o sensacionalismo do espetáculo (político, científico, militar, bem como de diversão) se tornam a matéria de que a consciência é forjada” (página 57 – idem – Harvey)

Se tudo isso é certo, então, como se desenvolve a consciência de classe das classes oprimidas? Concretamente, como os trabalhadores explorados adquirem consciência de seus interesses próprios?

Vejamos mais de perto como Marx analisa a evolução desta consciência. Na sua obra está posto claramente a importância da experiência das lutas na formação da consciência de classes. No princípio era a ação, disse Goethe. Marx se refere as fases desta luta. Como se expressam estas fases? O livro a “A miséria da Filosofia” antecipa o “Manifesto Comunista”.

“A grande indústria aglomera num mesmo local uma multidão de pessoas que não se conhecem. A concorrência divide os seus interesses. Mas a manutenção do salário, este interesse comum que têm contra o seu patrão, os reúne num mesmo pensamento de resistência: a coalizão” página 158, Miséria da Filosofia.

No manifesto Marx irá desenhar o cenário a partir da resistência individual, seguir com a coalizão dos operários de uma mesma fábrica, a associação de trabalhadores de vários fábricas, avançando a luta de classes na cidade enquanto um todo, no país, até finalmente os trabalhadores se organizarem em partido político para lutar pelo poder. A história real tem sido mais conturbada, nada linear, repleta de acidentes, de descontinuidades, contratempos, interrupções, retrocessos, acelerações e recomeços.

Marx apontava, por exemplo, a perspectiva da existência de um único partido operário. Esta era a necessidade do momento, quando o proletariado necessitava construir seu próprio partido, independente da democracia pequeno burguesa. Não tinha como prever que no futuro a heterogeneidade da classe trabalhadora – de renda, de localização geográfica, cultural – poderia dar lugar a distintos partidos representativos da luta política dos trabalhadores. Tampouco tinha como prever o poder que iria adquirir a aristocracia operária, base social do oportunismo como corrente particular surgida no seio do movimento operário, influência direta dos interesses burgueses no interior da classe trabalhadora. Não obstante sabemos que o esquema de Marx correspondeu a uma avaliação da experiência histórica até então vivenciada pelo movimento operário, somada a uma certa perspectiva por ele visualizada da dinâmica da luta de classes, com a crescente tomada de consciência dos trabalhadores acerca de seus interesses históricos de classe.
Apesar deste erro, isto é, de considerar que os operários teriam apenas um partido representativo, Marx estava certo no essencial: o proletariado, os trabalhadores assalariados necessitam de uma organização política independente para defender seus interesses e para desenvolver a consciência de classes. Em outras palavras, a consciência de classes necessitava se concretizar no partido operário independente. Os discípulos de Marx foram adiante e definiram a necessidade do chamado partido socialista.

Mas um marxismo aberto, não sua caricatura stalinista, jamais proclamou que o partido x ou y é o portador desta consciência. Um partido que reivindique representar a classe trabalhadora, seja ele qual for , necessita lutar por seu direito histórico de ser considerado o partido dos trabalhadores para evitar o espírito de seita. Adelmo Genro Filho definia com precisão e inteligência o chamado sectarismo ao dizer:

“Não é difícil perceber que é necessário fazer uma distinção entre o partido do “tipo leninista” por sua estrutura de organização e por seus propósitos, e aquele que consegue realizar-se como vanguarda política e teórica da classe operária. O primeiro é condição do segundo, como já o demonstrou Lênin, mas não se pode pensar que o primeiro já é o segundo. Esse equivoco leva ao que podemos chamar de sectarismo “ (1987, Fazendo Amanha, Editora Tchê! página 12).

Antes disso Adelmo ironizava com justiça uma ideia que encontra-se ainda em parcelas da esquerda. “Os stalinistas acreditam não só que a teoria leninista sobre o partido de vanguarda está absolutamente pronta há mais de 80 anos, devendo apenas ser “aplicada”, como também que o próprio partido organizado segundo esta teoria terá de ser – talvez porque a fé remove montanhas – imediatamente a vanguarda do proletário” (idem).

Mas antes de retomar a questão do partido, deve-se marcar que para Marx há uma base objetiva para a formação da consciência de classes.

Os limites do aporte de Thompson

Marx, ante de analisar a consciência, apreciava a estrutura social. Nas pistas deixadas por ele, ademais, temos o desenho das classes e da luta entre elas na própria estrutura econômica da produção e da circulação de mercadorias. Neste caso não haveria primeiro um agente no processo produtivo como se este agente fosse uma mera categoria econômica social sem sujeito, sem vontade, sem necessidades e lutas para satisfazê-las. Uma pura abstração. As classes sociais não podem ser vistas como um objeto separado do sujeito; têm experiências concretas desde suas origens, cujas primeiras revoltas, no caso da classe operária, foram ainda dos artesãos quebrando as máquinas que arruinavam suas antigas condições de trabalho. De lá para cá esta luta não cessaria como expressão social de crescentes contradições.

Já nos manuscritos econômicos e filosóficos de 1844, Marx definia não apenas o papel dos assalariados como também a luta de classes já presente na estrutura econômica da sociedade capitalista. E particularmente mostrava aí a importância da questão salarial na luta de classes, explicando também a debilidade estrutural inicial dos operários nesta disputa.

“O salário esta determinado pela luta aberta entre o capitalista e o operário. Necessariamente triunfa o capitalista. O capitalista pode viver mais tempo sem o operário que este sem o capitalista. A união entre os capitalistas é habitual e eficaz; a dos operários esta proibida e tem funestas conseqüências para eles. Ademais, os latifundiários e o capitalista podem agregar as suas rendas lucros industrias, o operário não pode agregar a sua renda industrial nem renda da terra nem juros do capital. Por isso é tão grande a concorrência entre os operários”. (página 51- Alianza Editorial).

Logo, no nível das relações sociais de produção, na chamada estrutura econômica mais básica, temos as funções determinadas na produção de cada classe e elas empreendendo uma luta pelo excedente econômico, expressa, por parte dos trabalhadores, na luta por melhores salários. Por isso Engels definia as greves como escaramuças, como a escola militar dos operários. Também vale destacar que a burguesia enfrenta sua concorrência interna através da organização do Estado como seu instrumento político unificador, mostrando que a luta de classes assume a natureza de uma luta política e pelo poder.

No livro “O Capital” a análise das classes desenhada na própria estrutura econômica da sociedade é reforçada. “O capital como valor que acresce implica relações de classe, determinado caráter social que se baseia na existência do trabalho como trabalho assalariado” escrevia Marx no livro II (página 107 – Difel). O conjunto da obra esta cruzada por estas definições. Daniel Bensaid em seu livro “Marx, o Intempestivo” é quem melhor explica a articulação entre “O Capital” e os conceitos das classes e suas lutas. O livro I do “Capital” tem como eixo a explicação do processo de produção, a mais valia e, portanto, a disputa pelo excedente econômico, a luta entre os trabalhadores e os capitalistas ao redor da divisão da jornada de trabalho entre o trabalho necessário e o trabalho excedente.

O livro II, cujo eixo é a circulação do capital, as metamorfoses do capital, a luta de classes aparece na sucessão de atos de compra e venda da força de trabalho, na relação de conflito estabelecida na negociação contratual. Esta questão é fundamental, porque os trabalhadores se viram forçados a vender sua força de trabalho apenas depois de terem sido separados dos meios de produção, desde então propriedade da classe dos capitalistas e garantia de seu papel social na exploração da força de trabalho, utilizada para produzir valor excedente, após reproduzir seu próprio valor na jornada de trabalho necessária para tanto, parte esta cada vez menor tanto pelo avanço da técnica quanto pelo aumento do ritmo do trabalho.

No livro II Marx ainda insiste que a circulação é tão necessária à produção de mercadorias quanto à própria produção em si mesma, e os agentes de circulação, portanto, tão necessários quantos os agentes de produção. Afinal, sem a circulação a produção não se realiza e se inutiliza. Assim, no livro III, quando Marx analisa o capital em seu conjunto, mostra os trabalhadores como uma força de trabalho coletiva necessária para a reprodução global do capital, incluindo os trabalhadores da esfera da circulação, como o comércio e os trabalhadores do transporte – estes incluídos no capital industrial – todos garantindo valor excedente para seus empregadores e vivendo em condições de exploração da mesma forma que os trabalhadores do setor diretamente industrial, sendo igualmente parte da mesma determinação de classe. Para Marx constituíam todos o proletariado.

Ter presente esta definição é fundamental para conhecer o sujeito social capaz de forjar a espinha dorsal de um projeto de classe alternativo, apreendendo suas características, descobrindo seus elementos de vida em comum e sua diversidade cultural, desdobrando deste conhecimento um discurso e uma ação política estimuladora de sua união de classe e traçando as necessárias alianças de classes interessadas num projeto de emancipação.

Assim, podemos repetir com Theador Adorno: “a classe é definida pela posição quanto aos meios de produção, e não pela consciência de seus membros” (Página 65, Coleção Grandes Cientistas Sociais). Esta é uma definição fundamental porque dá o lastro material para o comportamento classista, não obstante esta seja uma condição necessária, mas não suficiente. Definitivamente não se pode separar o modo como os homens produzem suas condições de existência, as relações sociais decorrentes do estágio determinado das forças produtivas deste modo de produzir, e a experiência concreta que os homens realizam nestas relações sociais, como eles vivem este modo de produzir, adquirem consciência desta existência.

Neste ponto tenho ressalvas aos aportes do historiador inglês E. Thompson. Justamente no que diz respeito a experiência concreta acerca da formação da classe trabalhadora é onde reside a força fundamental de sua posição. E sua obra insiste na definição de que não há a ação sem consciência, porque o ser e a consciência dos sujeitos que se objetivam no mundo do trabalho estão juntos, não separados. Corretamente nos diz que não faz sentido definir ação sem consciência, sem experiência, inclusive ligada a questão cultural e a construção de determinadas normas de sociabilidade.

Quando vamos pescar seu pensamento, porém, nos deparamos com algumas dificuldades. Tenho a impressão de que Thompson enveredou por uma posição demasiado subjetiva na avaliação acerca da formação da classe. Sustenta, por exemplo, a seguinte posição :“Para um historiador, e espero poder afirmar que isso vale para um historiador marxista, atribuir o termo “classe” a um grupo privado de consciência de classe, ou de cultura de classe, e que não age nessa direção é uma afirmação destituída de significado”.(Particularidades dos Ingleses e outros escritos – editora da Unicamp). E ainda, no mesmo texto insiste: “Conhecemos as classes porque, repetidamente, as pessoas se comportam de modo classista. Este andamento histórico gera regularidade de resposta em situações análogas e, em certo nível (o da formação “madura” das classes), permite-nos observar o nascer de instituições e de uma cultura com traços de classe passíveis de uma comparação internacional”. Mas Thompson não responde por que as pessoas se comportam de modo classista, desconsiderando justamente as bases objetivas deste comportamento. Em outras palavras, Thompson nega a existência de classe em si.

Para Marx a classe social, embora não seja apenas uma função no modo de produção, não pode ser entendida sem esta função, sendo o lugar que ocupa na produção, em particular por sua relação com os meios de produção, uma determinação essencial, objetiva. Para ser justo é preciso dizer que Thompson mesmo não aceitava ser acusado de culturalista e sustentava posições corretas segundo a qual as “formações de classe surgem no cruzamento da determinação e da auto-atividade” ( página 121, Teoria da Miséria, Zahar Editores).

Suas contribuições deixam no ar, contudo, uma certa idéia de que somente se pode definir a classe se a mesma tem consciência de sua existência, como se na definição de uma determinada classe valesse apenas o que os homens e mulheres fazem concretamente em sua luta, sem indicar com clareza os condicionamentos de determinados papéis na produção social que independem da vontade e da consciência do sujeito e que empurram numa ou noutra direção. Quando, finalmente, Thompson diz que não podemos “colocar classe aqui e consciência de classe ali como duas entidades separadas vindas uma depois da outra” – (Miséria da Teoria, página 121 – Zahar Editores) tampouco deixa claro a questão da consciência de classe e da falsa consciência, já que podemos sim definir uma classe social que ainda não tenha consciência de seus interesses históricos, de seu papel, das potencialidades que abrem seu lugar determinado na produção.

Assim, podemos nos apoiar em Thompson com ressalvas e, apesar delas, não reduzo a importância de seu aporte, de seu esforço em demonstrar a importância da ação concreta, da vinculação desta ação com um determinado nível de experiência e com determinada consciência de identidade e de antagonismo de classe. As classes se formam desde o início em sua luta com outras classes e não como meros agentes cegos da produção material. Há uma consciência imediata, marcada por alienações, avanços, construções de identidades e de relações de oposição, uma experiência concreta já na origem da formação da classe, colada no trabalho concreto – os primeiros artesãos, o que quebraram as máquinas depois da revolução industrial, por exemplo. Não perco de vista, porém, – que esta consciência não corresponde ainda a uma real consciência de classe, de seus interesses históricos, do seu papel na produção, do papel na produção de outras classes e sua relação com a sociedade enquanto um todo. É uma consciência parcial, em geral alienada, o que o marxismo chamou de falsa consciência, (conceito criticado por Thompson) razão pela qual o marxismo definia ainda que não se pode julgar nem uma época nem um individuo pelo que pensa de si mesmo.

Marx apontava o lastro objetivo da existência das classes, independente de sua consciência. Ao mesmo tempo percebia as classes como uma construção num processo histórico determinado, afirmando de modo claro que “os indivíduos isolados formam uma classe pelo fato de terem de encetar uma luta comum contra outra classe” (página 79 – Ideologia Alemã – Editorial Presença), o que quer dizer que as classes não podem ser encaradas como meros agentes de produção, mas sujeitos sociais vivendo as relações de produção antagônicas com outra classe, se reconhecendo enquanto tal na medida em que desenvolvem este enfrentamento coletivamente. Logo, a formação da classe é um processo de ação da própria classe, o que não pode ocorrer sem o estabelecimento de um lastro objetivo, uma base material. É o tal cruzamento entre determinação e auto-atividade definido por Thompson corretamente.

“As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns, Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de que já assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defendem se tornam interesses de classe. Mas a luta entre as classes é uma luta política”. (página 159 – Miséria Da Filosofia)

Posto isso fica claro que os trabalhadores são uma classe para os capitalistas, não para si mesmos, ou seja, não se formam completamente como classe para si enquanto não assumem esta consciência acerca de seus interesses comuns, num processo de desenvolvimento que começa na estrutura mesma da produção, com a resistência individual do operário, onde a classe em si, objeto da exploração e sujeito da experiência concreta, sendo realizada no mesmo tempo em que é explorado. É neste processo que os trabalhadores vão se transformando em classe para si, isto é, em sujeito com clareza do conteúdo antagônico da ordem social atual e da incompatibilidade dos interesses dos trabalhadores com o capital.

A necessidade da ação

Vimos que para Marx as condições objetivas elementares da produção e da circulação, as relações sociais aí estabelecidas, já trazem o desenvolvimento da consciência de classe como desdobramento lógico. É evidente que não é um desdobramento inevitável. Marx não pensava isso. No seu nível elementar, porém, a relação de exploração está grávida da consciência desta exploração via a experiência cotidiana daqueles que vivem do trabalho, realizando o trabalhando e agindo para melhor sua situação. A experiência, portanto, é a consciência embrionária que pode ou não se desenvolver conforme um conjunto mais amplo de fatores, o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, a força das ideologias em luta, dos partidos (a luta entre as superestruturas erguidas sobre as relações sociais), o nível de cultura e de informação da sociedade, etc.

Nas palavras de Nahuel Moreno, ação experiência e consciência são partes de uma totalidade que se da em todos os níveis, desde o partido até as massas. O elemento determinante desta totalidade são as ações do movimento de massas. Mas é evidente para todo mundo que muitas vezes – na maioria delas, aliás, os trabalhadores não agem ao sentir a exploração. Os trabalhadores em geral, na situação normal de exploração, fora de uma situação revolucionária, têm em sua grande maioria, uma consciência burguesa. Por isso é tão importante aproveitar as divisões nas classes dominantes, os grandes eventos, os acontecimentos inesperados, as brechas políticas na situação.

Moreno dizia: “Há milhares de intelectuais pequeno-burgueses que “amam” a luta e pensam – um tanto romanticamente, que com as massas sucede o mesmo. Desgraçadamente não é assim, e cada vez que um destes intelectuais vai falar com os operários para incitá-los por uma simples razão emotiva de que “tem que lutar” acaba tendo uma tremenda decepção: os trabalhadores não o entendem, crêem que esta louco, lhes dão as costas. O operário comum, o explorado em geral, não tem prazer em ir à luta. É um ser humano normal, que não tem nenhum interesse em perder uma parte de seu escasso salário entrando numa greve, nem em arriscar sua integridade física indo numa manifestação, nem em arriscar sua vida tomando em armas contra o capitalismo”. Em outras palavras, há situações em que as classes trabalhadoras somente saem à luta quando não suportam mais sua situação; e quando sua sobrevivência esta ameaçada são capazes de lutas ferozes.

Nahuel Moreno acrescentava outra questão: “Não basta que exista um problema objetivo para que, automaticamente, as massas saiam à luta. Os trabalhadores podem estar sofrendo baixíssimos salários, porém sua atitude frente a este problema depende de qual é a situação de suas lutas com a burguesia neste momento” Segue dizendo que se este momento é após uma derrota do movimento, quando o fascismo acabou de vencer e prendeu lideranças, etc, a tendência é que não ocorra mobilização alguma. Por outro lado, se a situação é revolucionária, se há uma ofensiva do movimento de massas, os trabalhadores são capazes de chegar beira da tomada do poder para conseguir salários melhores. Isso explica que a consigna de pão tenha sido uma das que levaram ao poder o proletariado russo, completa Nahuel Moreno. E o que acontece quando o partido que representou politicamente as ações dos trabalhadores durante mais de duas décadas chega ao poder e começa a governar em conciliação com a patronal e incorpora no aparato de estado boa parte das lideranças sindicais? Esta pergunta não é gratuita. Refere-se ao Brasil de hoje. Não resisto também em dar minha resposta: o regime burguês se fortalece e o capitalismo ganha novo fôlego para seu desenvolvimento.

Com o que temos dito está claro que para o marxismo, a prática, a atividade humana, além de critério da verdade – ver a II tese sobre Feuerbach escrita por Marx em 1845 – também é fonte primeira do conhecimento e transformadora da realidade. Neste sentido, Nahuel Moreno teve razão em reivindicar tanto o pensador Jean Piaget. Moreno definiu que o grande ponto de contato entre o pensamento de Piaget e o marxismo foi estabelecido quando o estudioso suíço definiu o conhecimento como uma atividade, uma relação especial entre o sujeito e o objeto, uma posição similar a de Marx. Para Piaget, mesmo o fato mais empírico deve passar pelo filtro de uma coordenação de ações. “ A inteligência nasceu da ação e, se se quiser, da ação polarizada nos sólidos organizados” (Piaget, Lógica y Conocimiento Científico, Tomo I Naturaleza Y Métodos De La Epistemologia, Proteo, Buenos Aires, página 38, citado por Moreno em lógica Marxista e Ciências Modernas, página 11).

É pela via da prática, da atividade concreta dos trabalhadores, em sua experiência de luta pelo atendimento de suas necessidades, que pode ir desenvolvendo-se a consciência capaz de uma alteração revolucionária da atual ordem das relações sociais. Esta é sua primeira e necessária ruptura com a consciência burguesa. É a partir desta consciência da necessidade da mudança e do seu caráter inevitável que se pode desenvolver a consciência de classes.

Consciência de acordo com seu ser

Uma das questões postas para a reflexão dos militantes marxistas de nossos dias é de como se deve encarar a relação entre os processos sociais e os processos políticos da classe trabalhadora e qual era o pensamento de Marx acerca desta relação. Este debate foi muito vivo na época da II Internacional e nas elaborações de Lênin. O marxismo da II Internacional compreendia a classe operária como uma classe com crescente força social e apontava a perspectiva de que esta força social assumiria cada vez mais peso político como decorrência de seu fortalecimento numérico. As estatísticas do final do século XIX e início do século XX corroboravam este otimismo e esta correspondência, diante do evidente crescimento social e a influência política sempre ascendente dos partidos socialdemocratas.

Sabemos, porém, que o desenvolvimento da consciência socialista e dos partidos representativos dos trabalhadores foi muito mais contraditório, não sendo uma curva ascendente. Ao mesmo tempo, ao longo do capitalismo, de modo mais ou menos intenso, sempre existiu a luta pela alteração da ordem estabelecida, um questionamento e enfrentamento contra o capitalismo, demonstração concreta da existência da classe trabalhadora e do antagonismo de classes.

Em outras palavras, não existiu total correspondência entre o social e o político ao mesmo tempo em que o lugar social dos trabalhadores os pressiona para ações de classe. Como fica a este respeito o pensamento de Marx? Na “Sagrada Família”, livro precursor da Ideologia Alemã, Marx definia: “Não se trata de saber qual a finalidade se configura no momento para este ou aquele proletário, ou nem mesmo para o proletariado em seu todo. Trata-se de saber o que o proletariado é e o que ele será obrigado a fazer, de acordo com este ser”. Para muitos tal definição mais confunde do que esclarece. Nos últimos anos, aliás, cresceu a ideia de que esta posição é determinista.

A crítica a tal posição de Marx é ainda mais dura entre aqueles que identificaram os regimes stalinistas com o socialismo. Segundo os mesmos, com o desmoronamento destes regimes o marxismo desmoronou junto. Muitos afirmaram então a conclusão de que Marx disse uma bobagem quando sustentou que o proletariado seria obrigado a agir de acordo com seu ser. Creio, porém, que o real tem mais determinações.

No século XX o chamado proletariado “foi obrigado” a agir de acordo com seu ser”. Não resolveu a propagada construção socialista, mas protagonizou inúmeras revoluções, impôs a expropriação da burguesia em 1/3 dos países no pós-Segunda Guerra Mundial, derrotou o fascismo, quebrou inúmeras ditaduras militares – basta lembrar as quedas mais próximas e recentes, a começar por Fujimori no Peru na década de 90, ou mesmo a queda da ditadura da Argentina em 1982, a derrota de Pinochet no Chile e de Marcos na Filipinas. A classe trabalhadora além disso construiu inúmeras associações, organizações, partidos, e impôs uma resistência tal ao capitalismo que obrigou o sistema a fazer as concessões sociais dos anos 50 na Europa, concessões estas que os capitalistas – também atuando de acordo com seu ser – tratam hoje de cortar em todo o mundo, sobretudo no velho mundo.

Acredito, entretanto, que a afirmação de Marx na verdade não implica a defesa da correspondência direta entre o social e o político. Embora a situação de classes esteja grávida da consciência de classes, este desdobramento não é inevitável. A consciência embrionária não é a consciência de classe plenamente desenvolvida. Karl Kautsky definiu que a ciência da qual surge o socialismo como teoria científica do movimento operário somente poderia vir do exterior da classe operária, via os intelectuais burgueses e pequeno-burgueses que aderissem à causa proletária. Esta era a posição de Marx e de Engels. A consciência, portanto, não esta pré-definida no ser da classe trabalhadora. Deve se encontrar uma mediação entre a ciência e a consciência socialista e o movimento operário, os trabalhadores. Esta mediação é justamente o partido político, o instrumento com o qual se concretiza a consciência de classe do proletariado. E é somente no partido político revolucionário que a classe para si se concretiza. Por isso justamente Marx se jogou na construção das organizações comunistas, cujo manifesto comunista é o programa mais famoso.

Assim, o chamado socialismo científico ( este era o nome dado por seus fundadores), não nasce espontaneamente porque é, como os clássicos descreveram, a síntese e a superação de conhecimentos acumulados pela humanidade – o socialismo utópico francês, a filosofia idealista alemã e a economia política inglesa. Este programa socialista encontra no partido seu vínculo com a classe social na qual aposta a realização de seu projeto. Isso foi dito por Marx, Engels e Kautsky desenvolveu.

Segundo esta compreensão, é apenas com o partido político revolucionário, superestrutura que sintetiza o conhecimento adquirido nas distintas experiências parciais, que acumula as lições das lutas nos seus momentos de fluxo e refluxo e garante uma apreciação universal das tarefas e desafios, que a consciência de classes realmente se concretiza. Sem ele, espontaneamente, a classe trabalhadora limita-se a uma consciência economicista, sem uma visão do conjunto das classes e do papel das mesmas na sociedade.

Por isso podemos dizer que a política sem partido não existe, ou representa a mera reprodução das relações sociais já estabelecidas, reprodução do poder burguês, sendo a defesa dos meros movimentos sociais como alternativa ao capitalismo um fetiche equivalente a posição dos economicistas na época de Lênin

A definição de que não existe política sem partido responde ao conceito da política como luta pelo poder. E a luta pelo poder é a luta entre partidos e seus programas. È claro que na situação concreta do mundo o próprio nome partido está desacreditado, já que a esmagadora maioria das superestruturas partidárias representam os interesses das classes dominantes e fazem da política um negócio para alimentar corruptos, privilegiados e carreiras individuais. Mas este repúdio e descrédito é parte de um processo inevitável, de uma crítica progressista à partidocracia. Trata-se de uma expressão dialética da necessidade da negação para superar o atual quadro partidário e construir uma alternativa. Não é garantia desta construção, mas sem o momento negativo e crítico não há possibilidade de uma nova política. Esta é a aposta dos marxistas revolucionários

Foi Lênin o principal teórico do partido revolucionário da classe trabalhadora. Hierarquizou o caráter determinante do partido, do moderno príncipe, para usar a expressão de Gramsci, para que se estabelecesse a correspondência entre o social e o político e assim a classe trabalhadora politicamente atuasse de acordo com os seus interesses sociais, de classe. A construção de um partido com capacidade de ligação com a classe, se construindo na classe trabalhadora com o critério dialético de que o educador é também o educado, aprendendo com a classe trabalhadora e dirigindo seus esforços para a realização de seus interesses históricos passava a ser uma tarefa encarada de modo profissional, sistemática e estratégica. Não era uma tarefa que poderia ser improvisada. Para Lênin o partido era o instrumento de união entre operários, estudantes e intelectuais no qual as especificidades de cada um estariam dissolvidas na formação de uma nova categoria de agente político: o militante revolucionário profissional.

Embora exista a base social de um enfrentamento permanente de classe, o partido político dos trabalhadores com caráter revolucionário não é uma derivação direta do social. Ao contrário, tenho insistido na tese de Lênin, que definira com clareza a necessidade estratégica de uma organização revolucionária dos trabalhadores para desenvolver a consciência de classe dos trabalhadores, hierarquizando desta forma a política como mediação determinante. E o partido é o mediador entre os diferentes segmentos sociais que querem superar o capitalismo, entre os trabalhadores e estudantes, camponeses e intelectuais. Na Rússia a própria fração diminuta do proletariado industrial na comparação com os milhões de camponeses, amplamente majoritários na população russa foi um incentivo para as reflexões de Lênin concentrarem-se mais na importância da política, assumindo que o peso social das classes tinha importância, já que constituem uma das bases objetivas da ação dos partidos, mas atribuindo a luta política o papel primordial.

Entre Lênin e Marx sempre houve um ponto decisivo de continuidade: nenhum deles assumiu uma posição passiva, evolucionista. Marx defendeu que “para superar a idéia da propriedade privada, o pensamento comunista é plenamente suficiente. Para superar a propriedade privada real, precisa-se de uma verdadeira ação comunista”. (Introdução à Crítica da Economia Política). Por isso Marx pensava na necessidade do partido operário independente. Na construção desta ação comunista se sabe que o gênio de Marx deu lugar ao de Lênin. Arma da crítica e crítica das armas.

Mas nem Lênin nem muito menos Marx deixaram de assinalar a base da possibilidade objetiva da consciência socialista no fato de que a classe trabalhadora tem sim a característica ontológica de lutar contra a exploração e a opressão do capital. A luta contra a exploração e a consciência da necessidade desta luta é inevitável porque sua efetivação esta determinada por sua existência de classe explorada pelo capitalismo e obrigada a lutar para viver. E esta definição de Marx foi confirmada no seu tempo, no século XX e nos dias atuais, quando vemos os trabalhadores resistirem. Incontáveis vezes, sem nenhuma direção política ou sindical organizada, os trabalhadores protagonizam lutas e rebeliões na defesa dos seus interesses.

Trocando em miúdos, embora a consciência socialista não seja inevitável, nem muito menos encontre um desenvolvimento automático na ação da classe trabalhadora (discordo de Ernest Mandel que sustentou que a longo prazo, mesmo sem as idéias marxistas, as posições socialistas triunfariam – página 26 – teoria leninista da organizaçao), de fato é inegável que as idéias socialistas apenas ganham formato, clareza e viabilidade com a industrialização e com a classe trabalhadora, encontrando aí sua base material e sua possibilidade objetiva de realização. E a classe trabalhadora, por sua vez, luta como pode, com maior ou menor intensidade, contra a exploração a que esta submetida, tendo o socialismo como única teoria que responde aos seus interesses e único caminho para romper as amarras que a escravizam como classe assalariada subordinada ao capital. O partido é precisamente este ponto de encontro e o apoio ao partido a expressão da realização desta fusão entre prática e teoria, classe trabalhadora e socialismo. E nisso Marx estava totalmente certo ao dizer que assim como a filosofia ( o socialismo revolucionário) encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. Com as redes sociais estas armas espirituais foram potencializadas.

Com as considerações tecidas acima não deixamos de reconhecer que a definição da “Sagrada Família” acerca do ser social e da consciência social ajudou a que os marxistas da II e da III Internacional, entre eles Gramsci, Lênin e Bukharin, a visualizar, pelo menos em alguns momentos, uma evolução positiva demasiado segura da consciência de classe dos trabalhadores. Tal visão esteve longe de um evolucionismo vulgar e muito menos da paralisia política. Não obstante, deu margem a prognósticos mais otimistas do que a realidade tem autorizado. Uma realidade mais cruzada por contradições e encruzilhadas do que o previsto.

O excesso de otimismo se percebe, por exemplo, em Bukharin e Preobrazhensky em seu clássico e combativo “ABC do Comunismo”. Ao abordarem o tema das cidades, que são os palcos principais da batalha social, afirmaram o seguinte: “Por fim, numa extensão relativamente pequena aglomeram-se grandes massas populares, cuja imensa maioria é formada pelo proletariado de fábricas”. A vida superou a definição. Se na época dos líderes da III Internacional as cidades eram ainda pequenos conglomerados humanos em sua maioria de operários fabris, com o desenvolvimento do capitalismo a cidade ultrapassou completamente o campo, fato considerado por Marx como um dos maiores méritos da burguesia, já os ares das cidades emancipam. A rápida expansão das cidades, entretanto, embora tenha significado um progresso, carregou – e agora ainda mais – graves contradições.

Os operários fabris foram se deslocando para as periferias das cidades, saindo dos grandes centros e pesando menos na vida urbana cotidiana. Ao mesmo tempo, “se a história da cidade é a história da liberdade, ela também foi a da tirania, da administração estatal que controla o campo e a própria cidade”. (Página 116 – Debord – Editora Contraponto). Carregando as contradições em seu movimento este espaço da história transformou-se num caos urbano bem maior do que o já apontado por Gramsci em sua época, quando assinalava o contraste entre a disciplina e o trabalho metódico das fábricas e a vida desordenada e caótica que tem lugar nas relações sociais fora dela, antecipando genialmente as perspectivas futuras.

Lênin também se mostrou excessivamente otimista quando dizia que “as condições específicas de seu trabalho e da sua vida ( dos proletários) fazem com que não receie a organização e que, antes pelo contrário, esta lhe pareça natural”. A visão de Lênin tem força, mas deveria ser apresentada como tendência, não como uma determinação quase natural. Pode ser defendida se tratamos dos operários industriais – mas é muito mais relativa se abordamos os assalariados em geral, atualmente cada vez mais numerosos. E mesmo na indústria os elementos de integração à lógica do capital têm peso relevante. Os escritos juvenis de Gramsci mostram posições ainda mais unilaterais e lineares no que dizem respeito a estabelecer as características da vida dos trabalhadores e o desenvolvimento da consciência socialista.

“A classe operária identificou-se com a fábrica, com a produção: o proletariado não pode viver sem trabalhar, e trabalhar de modo metódico e ordenado. A divisão de trabalho criou a unidade psicológica da classe proletária; criou, no mundo proletário, aquele corpo de sentimentos, de instintos, de pensamentos, de costumes, de hábitos, de afetos que se resume na expressão solidariedade de classe” Página 325, Escritos políticos, volume I).

Podemos visualizar a descrição de Gramsci em momentos especiais da realidade política, durante períodos de fortes greves operárias, de ascenso vigoroso da luta de classes. O dia a dia, porém, é muito diferente, mais contraditório do que o quadro apresentado pelo comunista italiano em sua juventude. Não é tão simples a construção de um partido revolucionário do proletariado. No mesmo texto ainda insiste no fato do operário sentir a necessidade da ordem, do método, da precisão, a necessidade de que todo mundo seja como uma enorme fábrica. É verdadeira a tendência do operariado fabril encontrar no trabalho os elementos constitutivos de uma educação que lhe transforma em vanguarda na construção de uma nova ordem econômica e social. Seu trabalho é o que melhor permite deduzir a inutilidade da patronal e a fonte real da produção material. É um fato que os trabalhadores apreendem, via a dura experiência do trabalho, que o mundo pode ser mudado apenas com a prática.

Também a disciplina do trabalho era um elemento do qual Marx corretamente partia para definir o papel concreto na produção exercido pelos trabalhadores como elemento decisivo em sua capacidade de oferecer uma alternativa. Trata-se de ir além de simplesmente sofrer a exploração, mas de determinadas características do proletariado, em particular do proletariado industrial, que conspiram contra o capital. Deste ponto de vista Gramsci estava coberto de razão.

Nada disso, porém, pode nos cegar para a outra fase do trabalho assalariado, sob pena de não escapar de uma concepção unilateral. Trata-se da fase degradante, desumana, que à medida que o capital se acumula aparece com mais vigor e visibilidade. A alienação do trabalho, segundo Marx, se expressa no fato de que

“no trabalho, o trabalhador não se afirma, sim que se nega; não se sente feliz, sim desgraçado; não desenvolve uma livre energia física e espiritual, sim que mortifica seu corpo e arruína seu espírito. Por isso o trabalhador somente se sente pleno de si fora do trabalho e no trabalho fora de si (…) Seu trabalho não é voluntário, sim forçado. Por isso não é a satisfação de uma necessidade, sim somente meio para satisfazer as necessidades fora do trabalho. Seu caráter estranho se evidencia claramente no fato de que tão logo não exista uma coação física ou de qualquer outro tipo, foge do trabalho como da peste” (página 109).

A força da denúncia é arrebatadora no texto dos manuscritos, clara com o dia. Se Gramsci tivesse tido a oportunidade de ler os manuscritos econômicos e filosóficos de Marx, com certeza traçaria um cenário marcado mais pelas disjuntivas, pelas possibilidades grávidas de incertezas. E tal leitura não deve ser atribuída apenas ao Marx jovem, como tentam alguns autores demonstrar. Na Teoria da Mais Valia, nos escritos econômicos de Marx de 1861-63, a essência das determinações expressa nos manuscritos está contida.

“De fato, a unidade na cooperação, a combinação na divisão do trabalho, o emprego, na maquinaria para fins produtivos, das forças naturais e da ciência junto com os produtos do trabalho, tudo isso se opõe aos próprios trabalhadores individuais como algo estranho e coisificado, como simples forma de existência dos meios de trabalho deles independentes e que os dominam, e do mesmo modo esses meios os enfrentam na forma visível, simples, de material, instrumento etc., nas funções de capital e, portanto de capitalista”.

Sem esta outra fase da realidade do trabalho não se pode entender a continuidade da dominação capitalista. É sabido que o sistema capitalista se preserva via os aparelhos estatais que exercem o poder pelo peso da força militar. Mas já foi dito que nenhum poder pode se manter sentado em cima das baionetas. A alienação dos súditos, dos escravos e dos escravos modernos, os assalariados, cumpre um papel determinante. Está embutida no dia a dia dos homens, no meio do caos urbano, no campo distante, no chão da fábrica. Os ritmos alucinantes do trabalho e a ameaça do desemprego atualmente agravam esta alienação porque o tempo do trabalhador se destina cada vez mais ao capital ou para lutar pela sobrevivência individual.

Esta falta de tempo livre para os trabalhadores tem sido um dos mais fortes componentes da reprodução do sistema de exploração, excluindo da vida dos trabalhadores a diversificação das atividades, em particular dificultando enormemente suas atividades políticas. Assim apenas uma minoria da sociedade detém o monopólio da participação e organiza esta participação para defender sua ideologia de que esta situação é natural e não pode mudar. É claro que num estudo mais profundo dos elementos de integração social deveríamos desenvolver o peso social das classes médias, em particular as classes medias de renda mais elevada, alem da aristocracia operária. Constituem-se nas parcelas da população que logram aproveitar a capacidade do capitalismo de adaptação, sua plasticidade de alterar-se mantendo-se no essencial. Ademais, diante do desemprego crônico, o assalariamento passou a ser considerado por parcelas expressivas do povo um privilégio e um fator de integração social.

Apontamos estas determinações do trabalho complicadoras da autoemancipaçao, sem perder de vista a outra cara, a possibilidade do aprendizado, da formação da consciência de classe via a experiência concreta deste processo de trabalho. O próprio caráter desumano do trabalho empurra para a crítica do trabalho no seu invólucro capitalista, com os trabalhadores se revoltando quando são relegados a objetos de menor importância que as coisas e constantemente ameaçados de substituição por uma outra “unidade de produção”, como se fossem o que de fato são para os capitalistas, peças descartáveis da engrenagem da produção para o lucro.

Ademais, a relação entre o capital e o trabalho se mantém tencionada no sentido de desenvolver sua negação, já que a experiência cotidiana vai indicando que o operário e os trabalhadores em geral são mais pobres quanto mais riquezas produzem. “O trabalhador se converte em uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadorias produz. A desvalorização do mundo humano cresce na razão direta da valorização do mundo das coisas” (página 105 – manuscritos).

Portanto, o proletariado tomado de modo geral, sobretudo os que não estão vinculados com o chão da fábrica, desenvolvem suas experiências mais importantes e progressistas na rejeição ao empobrecimento e a alienação do trabalho. Por isso há brechas de revoltas, fendas que podem ser escancaradas, oportunidades de construção de identidade coletiva e de solidariedade de classe, mesmo com os espaços da vida social tendo se reduzido, se restringindo mais a vida familiar, enquanto a cultura é adquirida entre os lixos da indústria do entretenimento televisivo. As novidades se apresentam nos momentos em que este mecanismo é quebrado, quando multidões irrompem na arena política ou pelo menos aumentam sua preocupação com a atividade política, acompanhando o movimento dos partidos ou atuando diretamente. È o caso atual das revoluções da primavera árabe e mais diretamente dos indignados espanhóis e gregos.

Estas experiências de revoltas dificilmente afirmariam a possibilidade de uma alternativa de organização social se não se combinassem com a experiência do trabalho em seu aspecto de prática capaz de desenvolver um espírito disciplinado e metódico. Aqui reside o papel determinante dos operários industriais. Nisso os dirigentes revolucionários do início do século passado estavam certos, embora não incorporassem, ou incorporassem com menos força ( Paul Lafargue com seu livro “ O direito à preguiça” prova de que o tema estava presente) a crítica do caráter bestial do trabalho assalariado e as conseqüências alienantes de um trabalho onde o produto domina o produtor, onde o trabalho morto domina o trabalho vivo e a máquina dita o ritmo dos homens. Tais dirigentes não conheciam os manuscritos de Marx, publicados apenas em 1932. Nós já o conhecemos.

Ainda assim, é certo dizer que se não existissem determinadas características do trabalho e das relações de produção particulares do capitalismo, os proletários atuais estariam na mesma condição dos escravos da antiga Roma, com tremendas dificuldades – ainda maiores do que as atuais – de construir uma alternativa econômica e social. E sabe-se que os escravos no início da era cristã sofreram a experiência da exploração de modo igual ao superior aos escravos assalariados modernos, o que não foi suficiente para seu triunfo político. Ou seja, não é condição suficiente sofrer a exploração. O lugar na produção é também fundamental. Assim, a rejeição ao trabalho alienado, ao empobrecimento, combinado com a experiência disciplinadora da indústria e da produção capitalista, com todas as contradições que estas experiências carregam são, em última instância, forças de negação do sistema e de afirmação de uma nova ordem.

Nos anos 60 tivemos enormes mudanças no mundo. Estamos agora vivenciando um novo giro histórico. É interessante lembrar que naqueles anos teóricos – mesmo os que reivindicam o marxismo – se impressionavam com o crescimento econômico do sistema e seus desdobramentos sociais nos países centrais. No monumental “Capitalismo Tardio”, por exemplo, Ernest Mandel (esta crítica faço a um autor do qual reivindico as ideais essenciais) afirmava que o exército industrial de reserva tinha uma tendência duradoura à diminuição nos países centrais (página 44, coleção Os economistas). Desde o momento em que Mandel fez esta afirmação o exército industrial de reserva não deixou de crescer na Europa. Hoje os trabalhadores desempregados na Europa aumentaram muito. Em muitos países as cifras ultrapassam os 10% da força ativa. E tudo indica que o capital necessita novas levas de desempregados em países como França e Alemanha. Na Espanha, entre os jovens, atinge 40%. Nos próximos anos estes podem ser os embates que decidam a sorte da Europa.

Vejam que Ernest Mandel polemizava com outros intelectuais como Herbert Marcuse que diziam que a classe trabalhadora havia se aburguesado, estava integrada no sistema e não era mais sujeito da luta contra o capital. Existia, como apontei antes, bases objetivas para estas afirmações, mas sua unilateralidade é evidente e as inúmeras mobilizações revolucionárias, a começar pela revolução portuguesa de 1974, cuja eclosão se deu um pouco depois destes posicionamentos de Marcuse, provam isso.

O que afirmo aqui então aqui é que a dinâmica social dos interesses de classes em choque contribui no desenvolvimento da consciência de classe. Trata-se, não obstante, de um processo aberto, repleto de idas e vindas, com saltos, com possibilidades cumulativas, mas também com descontinuidade e retrocessos. Atualmente, por exemplo, estamos longe da consciência socialista desenvolvida pelo movimento dos trabalhadores do início do século XX, em particular no período imediatamente posterior à revolução russa de 1917. As contradições sociais, por sua vez, estão se acumulando cada vez mais. Como sempre a situação dependerá dos desdobramentos da luta de classes. E a luta de classes em sua forma mais clara é a luta entre os partidos. Do resultado desta luta dependerá se a humanidade encontrará a defesa do bem comum, o autentico socialismo de Marx, a barbárie, cujo nazismo foi a expressão histórica mais próxima ou até mesmo a hipótese simples e pura da liquidação da espécie e da vida no planeta, cujo holocausto nuclear não pode nos fazer esquecer. Por tudo isso faz sentido lutar pela construção de um partido socialista. Por isso é fundamental insistir neste caminho e superar as desastrosas experiências do stalinismo e da socialdemocracia.


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Pedro Micussi