O Estado penal frente ao 1-O, as liberdades e a democracia
Em artigo integrante de dossiê preparado pelo Portal de la Izquierda, autor espanhol discute a polarização por trás da independência catalã.
Estamos entrando na reta final da prova de forças em torno à celebração do referendo convocado pelo Parlament no próximo 1 de outubro e ninguém sabe qual vai ser o cenário com o qual nos podemos despertar esse dia, mas o choque de legitimidades e legalidades se anuncia inevitável.
Num lado, encontra-se o bloco de forças dispostas a montar as urnas e votar majoritariamente “Sim” para a República catalã, depois da recente reafirmação rotunda dessa vontade na Diada e da incorporação ao 1-O, ainda que seja sob a fórmula ambígua de ‘mobilização’, de Catalunya En Comú. A essa aspiração legítima, confirmada em algumas pesquisas recentes (como a publicada neste 18 de setembro em eldiario.es, que dá cerca de 60% a favor da participação), se somam a multitudinária manifestação em Bilbao em 16 (depois da suspensão, na véspera, de uma conferência de Ana Gabriel em Vitoria-Gasteiz), o massivo ato solidário em Madri em 17 – gralas à publicidade gratuita da proibição por um juiz para realizá-lo num recinto municipal-, o ato de debate e a concentração nos dias 16 e 17 em Xixón, e novos manifestos e iniciativas de apoio em distintos lugares do Estado, minoritárias mas crescentes, algumas das quais podem ser vistas nesta mesma web. Um blobo que, como estamos vendo, amplia-se dia a dia devido à percepção crescente de que o que está em jogo não já somente o referendo do 1-O mas a defesa das liberdades e a democracia em todo o Estado frente ao giro cada vez mais autoritário do governo.
No outro lado encontra-se a trama de poderes econômicos e dos três partidos do regime, apoiados em sua brigada judicial, midiática e intelectual 1. Um cerrar de fileiras em torno do aberrante “o que não é legal não é democrático” de Rajoy, com o firme propósito de usar todo o arsenal legislativo, penal e policial destinado a impédir a celebração do referendo. É um bloco sem dúvida poderoso, mas que é encabeçado pelo partido mais corrupto e mais servil ao poder financeiro (aí está o escândalo dos 40 000 milhões de euros ‘perdidos’ pelo ‘resgate bancário’) da UE, com riscos crescentes de perder a batalha da opinião pública nas próximas semanas para além da Catalunha.
Essa ação já está sendo levada à prática mediante o registro de imprensa e meios de comunicação, a confiscação de cartazes, a proibição de atos, a decisão de um Procurador-Geral do Estado de obrigar a declarar como imputados aos mais de 700 prefeitos dispostos a facilitar a votação do 1-O e, sobretudo, o ‘controle’ direto dos gastos da Generalitat pelo ministro Montoro. Instaurou-se assim um estado de exceção de fato que está supondo uma prática vulnerabilização de liberdades, direitos e competências autonômicas, nunca vista desde a instauração do regime de 1978.
Por isso não pode surpreender que estes dias, para quem somos já um tanto velhos, nos recordem umas práticas que vivemos e sofremos em nossa luta contra a ditadura franquista. As ameaças esgrimidas por Rajoy em Barcelona (“Nos vão obrigar a chegar ao que não queremos”) confirmam, ademais, uma vez assegurado já definitivamente o vergonhoso beneplácito de Pedro Sánchez 2, que o Estado não renuncia a dar novos passos rumo à aplicação do artigo 155 – em realidade, já está fazendo isso – ou mais ainda se é necessário, com o objetivo de impedir que se repita um novo e aumentado 9-N de 2014.
Cem anos depois, há ‘terceira via’?
A encruzilhada está aí e o alcance histórico deste choque anuncia que, seja qual for o cenário do próximo 1 de outubro, no dia seguinte entraremos numa nova fase de uma crise de regime e de Estado que está indo já muito além da que afeta um ‘modelo’ autonômico cujo esgotamento há tempos era evidente.
Em meio a este contexto a recente proposta de Unidos Podemos – En Comú Podem – En Marea de uma Assembleia Extraordinária, composta por parlamentares autonômicos, estatais e europeus e vereadores de ajuntamentos de mais de 50 000 habitantes, que exorte ao governo de Rajoy a dialogar com a Generalitat e ‘buscar soluções políticas democráticas’, como um referendo pactuado, parece uma iniciativa tardia. Em todo o caso, oxalá possa realizar-se antes do 1 de outubro e possa supor um freio a Rajoy e os seus ante o choque que se avizinha. Com tudo, parece já que não vai contar com o PSOE para esse trabalho e que PP e Ciudadanos não estão dispostos a prestar atenção alguma ao que possa sair desse encontro.
Esta iniciativa, como já se mencionou em alguns meios, veio a recordar a ‘rebelião constituinte’ da Assembleia de Parlamentares, celebrada no Palácio do Governador do Parque da Cidadela de Barcelona em 19 de julho de 1917. Nela 55 deputados e 13 senadores (entre eles 46 catalães), antes de ser detidos, exigiram ‘uma profunda renovação da vida pública espanhola’ e propuseram eleições às Cortes constituintes convocadas por um governo não estivera a serviço do ‘turnismo’ bipartidarista de então e que ‘encarne e represente a vontade soberana do país’. Depois de seu fracasso, entretanto, Cambó, líder de um catalanismo conservador e autonomista, acabaria pactuando com a Coroa – como depois faria com Franco – e um dos membros de seu partido, a Liga Regionalista, chegaria a fazer parte do novo governo do regime da Restauração.
No entanto, os cem anos transcorridos desde então não passaram em vão. Agora, uma vez esgotada a experiência autonomista e frustrada a via federalizante do Estatut, é um movimento soberanista majoritariamente independentistas o que reclama seu direito a decidir se quer separar-se do Estado espanhol frente a um regime cujo ‘turnismo’ entrou em crise. Este já não pode contar com um novo Cambó como o que em certo modo representou o também corrupto Jordi Pujol para assegurar a governabilidade bipartidária durante as décadas passadas. Agora inclusive um PDeCat em declive está a favor da independência e já não se contentaria com um ‘pacto fiscal’, ou inclusive promessas federalistas, ante um regime que, ademais, nem sequer está disposto a reformar uma Constituição que perdeu toda sua legitimidade na Catalunha na esteira precisamente da sentença do Tribunal Constitucional sobre o Estatut.
Nesse marco de polarização crescente não parece ter espaço para uma ‘terceira via’ sem, ao menos, o passo anterior, pelo momento, da verdade do 1 de outubro. Nos encontramos, portanto, ante dois relatos antagônicos: um é do fundamentalismo constitucional que juízes como o que proibiu a celebração do ato de madrilenhos pelo direito de decidir – o já famoso José Yustsy Basterreche, de longo histórico neofranquista-, igual ao Procurador-geral do Estado reprovado pelo parlamento espanhol, José Maza, não duvidam em aplicar a tábula rasa em nome da ‘unidade da Espanha’.
O outro é o do “direito a decidir”, um relato que inclusive os detratores do referendo reconhecem que é hegemônico na Catalunha. Recordemos que o mesmo Tribunal Constitucional que agora suspendeu a Lei de Referendo do Parlamento assumia em sua sentença de 25 de março de 2014 que essa fórmula “expressa uma aspiração política suscetível a ser defendida no marco da constituição” e que poderia servir para abordar os problemas “derivados da vontade de uma parte do Estado de alterar seu status jurídico”.
Que fizeram desde então o PP e o PSOE para fazer caso a essa porta aberta para chegar a um acordo com a maioria do parlamento catalão? Nada e o pior é que seguem sem estar dispostos a buscar uma via legal para um referendo pactuado. Por isso, ante essa porta fechada o referendo do 1-O tem toda a legitimidade necessária para celebrar-se à vista da jurisprudência internacional ante casos semelhantes. O reconhecimento internacional de seu resultado dependerá do grau de participação que possa dar-se nesse dia e esse é sem dúvida o desafio das próximas semanas frente às travas do Estado.
Um direito de decidir, enfim, que, como podemos escutar neste domingo 17 de setembro em Madri na boca de porta-vozes de forças partidárias do referendo, muitas delas estão firmemente dispostas a estendê-lo a todas as questões que afetam suas vidas e seu futuro, e não só a proclamação de uma República. Um direito, em suma, que pode chegar a expressar a vontade de converter-se em povo soberano não só frente ao Estado espanhol mas também frente à UE de Merkel e Macron e da oligarquia financeira.
Para além das reticências rumo ao ‘roteiro’ desenvolvido pela maioria do Parlament, ou das insuficientes plenas garantias com que pode contar a celebração deste referendo ante as travas do governo, alguém pode duvidar de uma vitória de Rajoy, do ‘tripartido’ e do bloco de poder que o apoia suporia uma regressão autoritária e ultracentralista que estaria dirigida contra todos os povos do Estado e faria mais fácil o caminho para o desmantelamento definitivo de nossas liberdades e direitos sociais? Pelo contrário, um passo adiante na desobediência social e institucional ao Estado espanhol desde a Catalunha iria se abrir a porta para uma impugnação não só deste governo mas também do regime.
Por isso, não há tempo para dar de ombros ou dizer, como argumenta um setor da esquerda espanhola: ‘este conflito não nos afeta’. Porque a derrota dos que querem exercer seu direito ao voto em 1-O seria nossa derrota. Melhor então cantar de novo, como em Bilbao e Madri no domingo passado, L’Estaca de Lluis Llach 3 : “Si jol’estirofort per aquí/ i tu l’estiresfort per allà/segur que tomba, tomba, tomba/ ben corcada deu ser ja” (“Se eu puxá-la forte aqui/ e você puxar forte porte por ali/ é seguro que cai, cai, cai/ bem carcomida já está”).
19/07/2017
(Artigo publicado em dossiê sobre a independência catalã organizado pelo Portal de la Izquierda)
1 Para uma resposta ao Manifesto amplamente difundido de ‘pessoas de esquerda’ contra o referendo do 1-O: Ramón Zallo, “El Manifiesto de la desfachatez”, viento sur, 18/09/2017, www.vientosur.info/spip.php?13007
2 Parece evidente que o reeleito Pedro Sánchez está demonstrando cada vez mais que pouco tem a ver com suas promessas de aparecer como uma alternativa a Rajoy na resolução democrática da questão catalã.
3 L’Estaca é a canção mais famosa do cantor e compositor catalão Lluis Llach, composta em 1968. Um dos símbolos de resistência ao franquismo.