Nadezhda Konstantinovna Krupskaia: Feminista e Bibliotecária

Krupskaia foi uma importante dirigente bolchevique, responsável pela criação de um novo sistema educacional e pela construção de inúmeras bibliotecas no período soviético.

Ana Maria Muñoz-Muñoz 26 out 2017, 14:04

Nadezhda Konstantinovna Krupskaia (Krupskaya), feminista, pedagoga, dirigente bolchevique e figura principal na Revolução Russa, criou o novo sistema educativo soviético e colocou em pé as bibliotecas do estado operário; impulsionando o sistema bibliotecário soviético, deu palestras e escreveu extensamente sobre a importância das bibliotecas e da leitura na sociedade socialista.1

Vida de Nadezhda K. Krupskaya

Ela nasceu em 14 de fevereiro de 1869 em São Petersburgo. Seus pais, sua governanta e os militares descendiam de proprietários de terra pobres e compartilhavam as ideias progressistas democráticas revolucionárias dos grupos intelectuais, fato que a influenciou a ter uma nova visão do mundo. Desde jovem, se interessou por ensinar; em 1886 completou com êxito sua educação secundária e estudou magistério, mas, ao finalizar seus estudos, não encontrou trabalho no ensino primário. Krupskaya concentrava sua atenção nas diferenças sociais e começou a procurar as causas da injustiça que prevaleciam na época e como eliminá-las. Foi uma leitora entusiasta de obras sobre a sociedade escritas por autores russos e estrangeiros, e estudou as dos fundadores do comunismo científico, Karl Marx e Friedrich Engels. Em 1890, Krupskaya juntou-se ao movimento revolucionário e aderiu a essas ideias, tornando-se membra do Círculo Marxista de estudantes do Instituto Tecnológico de São Petersburgo. Ele se dedicou à atividade revolucionária com os trabalhadores, dando palestras, ensinando e se familiarizando com as condições de vida e de trabalho dos proletários. De 1891 a 1896, formou os trabalhadores nas ideias socialistas através de escolas de alfabetização noturnas (Krupskaya, Nadeshda, 1978: 13-26).

Em 1895, Krupskaya se juntou à Liga de Luta pela Emancipação da Classe Trabalhadora2 em São Petersburgo, fundada por Lênin, cujo objetivo era combater a opressão e a miséria com as quais o capitalismo submetia os proletários russos. Presa em agosto de 1896, foi finalmente condenada em 1898 a três anos de exílio em Ufá (a capital da República da Bashkortostan), onde escreveu seu primeiro panfleto Zhenshchina-Rabotnitsa (A mulher trabalhadora), no qual argumenta que apenas um regime proletário poderia libertar a mulher da escravidão da casa. A abordagem teórica de Krupskaya não se afastou de uma perspectiva bidimensional: mulher como mãe e mulher como trabalhadora. A ênfase na mulher como mãe está profundamente inserida na história da Rússia; a ênfase na mulher como trabalhadora é um reflexo do seu compromisso marxista e da classe trabalhadora. Há um certo feminismo em sua concepção do papel das mulheres, em comparação com os escritos de Alexandra Kollontai ou Clara Zetkin (Noonan, Norma C., 2006: 270-271). O regime czarista condenou-a a viver na Alemanha, Grã-Bretanha e Suíça, mas não a impediu de continuar participando ativamente do movimento revolucionário dos exilados russos, colaborando na publicação e distribuição clandestina do periódico Iskra, do qual era responsável pelas relações com os comitês do interior da Rússia, que alimentavam o jornal de notícias e denúncias dos trabalhadores.

A partir de então, durante quase meio século, dedicou sua vida ao partido, ao povo e à transformação revolucionária da sociedade. Participou dos preparativos e reuniões dos congressos e conferências do partido e colaborou na publicação e distribuição de folhetos. Apesar de seus inúmeros compromissos, da perseguição constante, das prisões e das condições do seu exílio, melhorar o nível de educação de seu país era um dos aspectos mais prioritários de seus interesses revolucionários. Ela aproveitou sua emigração forçada para familiarizar-se com as escolas, bibliotecas, professores e vanguardas em experiências educacionais. Isso permitiu que ela fizesse uma análise crítica do estado da educação no mundo, para selecionar o melhor ensino de teoria e prática e, nessa base, “estabelecer com a maior precisão possível a posição marxista no que diz respeito à escolaridade” (Skatkin, Mihail S. e Cov’janov, Georgij S., 1994: 2).

Durante a Revolução de Outubro, Krupskaya produziu mais de quarenta publicações. A mais importante foi Educação Pública e Democracia (finalizada em 1915 e publicada em 1917), que contribuiu de maneira decisiva para o desenvolvimento da ciência educacional marxista. O último parágrafo de seu livro serve como um resumo da análise da história da educação dos trabalhadores: “Enquanto a organização do ensino permanece nas mãos da burguesia, o trabalho escolar será uma arma dirigida contra os interesses da classe trabalhadora. Somente a classe trabalhadora pode converter o trabalho na escola ‘num instrumento para a transformação da sociedade contemporânea'”.

O triunfo da Revolução Socialista abriu uma ampla gama de atividades educacionais. No âmbito institucional, ela realizou grandes tarefas políticas e educacionais; foi Comissária do Povo (Ministra) da Educação; durante muitos anos, se encarregou da elaboração dos aspectos pedagógicos do novo sistema de educação e editou a revista Rumo à uma vida nova. Naqueles anos, Krupskaya alcançou as posições mais elevadas no Ministério da Instrução Pública da União Soviética e, a partir de 1937, foi nomeada membra do Presidium do Soviet Supremo da União Soviética. Krupskaya conseguiu combinar, habilmente e com eficácia, seu trabalho no governo, no partido e na educação com seus esforços científicos e literários.

Ao longo da vida, publicou mais de 3000 livros, folhetos, artigos, críticas, etc. Grande parte do seu trabalho foi traduzido para outros idiomas e línguas dos povos da União Soviética. A qualidade de seu trabalho foi aclamada pelo estado soviético em muitos campos. Ela recebeu a Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho (1929) e a Ordem de Lênin (1933); em 1931, foi nomeada membra honorária da Academia de Ciências da URSS e, em 1936, foi premiada com um doutorado em ciências pedagógicas. Nadezhda Konstantinovna Krupskaya morreu em 27 de fevereiro de 1939. Suas cinzas estão na parede do Kremlin, ao lado do mausoléu de Lênin na Praça Vermelha, em Moscou.

A participação feminista de Nadezhda K. Krupskaya

Em outubro de 1917, após o triunfo bolchevique, as mulheres soviéticas conquistaram a liberdade e a igualdade, uma conquista que culminou na aprovação do código sobre o casamento, a família e a infância, em outubro de 1918, um instrumento que põe fim a séculos de poder patriarcal e instaura uma nova doutrina baseada nos direitos individuais e na igualdade de gênero; da mesma forma, o código do trabalho de 1918 contém as primeiras medidas de reconciliação familiar e assistência à maternidade. Assim, a nova legislação soviética, impulsionada principalmente por Alexandra Kollontai, Comissária do Povo de Assuntos Sociais e da Mulher no primeiro governo soviético presidido por Lênin em 1917, estabelece para as mulheres soviéticas o direito ao voto e a ser candidatas, o direito ao divórcio, o acesso universal à educação gratuita, a salários iguais aos dos homens, auxílios para aliviar os encargos familiares, o direito ao aborto livre e gratuito. Da mesma forma, para garantir a emancipação das mulheres trabalhadoras, Alexandra Kollontai organizou em 1918 o primeiro Congresso das Mulheres Trabalhadores da Rússia, do qual surgiu a necessidade de fundar um departamento feminino de caráter governamental, o Jenotdel, fundado em 1919 e presidido inicialmente por Inessa Armand, de onde trabalharam para melhorar as condições de vida das mulheres russas, combatendo o analfabetismo e educando as mulheres sobre seus novos direitos no casamento, educação, cuidados e trabalho. Também, sobretudo graças à surpreendente capacidade teórica de Alexandra Kollontai e, entre outras, de Inessa Armand, durante este período revolucionário intenso, foi estabelecido um rico debate no qual o centro de discussão não era tanto os direitos sociais e políticos de mulher, mas a emancipação sexual das mulheres (ver Navailh, François, 1994: 257-283).

A atividade feminista desenvolvida por Krupskaya foi intensa durante sua vida, e especialmente em dois momentos anteriores à emancipação da mulher soviética, participando da redação do jornal Rabotnitsa e fazendo parte da delegação russa na III Conferência Internacional de Mulheres Socialistas.

Em 1914, Krupskaya participou da redação do jornal Rabotnitsa (A trabalhadora), cujo trabalho de propaganda tornou-se um ponto central do trabalho dos bolcheviques. Além disso, em seu comitê de redação, que continha dirigentes bolcheviques e partidárias importantes da libertação das mulheres, como Inessa Armand, Ludmila Stahl, Alexandra Kollontai, Anna Ulyanova-Elizarova, Praskovya Kudelli, Konkordia Samoilova, Klavdia Nikolayeva, entre outras, além de outras trabalhadoras de São Petersburgo. Com exceção de Anna Ulianova-Elizarova, todas as integrantes do conselho editorial foram presas poucos dias antes do primeiro número sair às ruas e os exemplares foram confiscados pela polícia. Ulianova-Elizarova conseguiu outra impressora e, finalmente, os doze mil exemplares previstos para comemorar o Dia da Mulher vieram à luz (ver Rossi, Elisabetta, 2007). No primeiro número de Rabotnitsa, publicado em fevereiro de 1914, Krupskaya explicou as diferenças entre as bolcheviques e as feministas burguesas: “As mulheres da classe trabalhadora constatam que a sociedade de hoje é dividida em classes. Cada classe tem seus próprios interesses. A burguesia tem os seus, a classe trabalhadora tem outros. Seus interesses são opostos. A divisão entre homens e mulheres não é de grande importância para as mulheres proletárias. O que une as mulheres trabalhadoras aos trabalhadores é muito mais forte do que aquilo que os divide”.3

Além disso, Krupskaya se juntou à delegação russa na Terceira Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, organizada por Clara Zetkin, que se pronunciou contra a guerra imperialista. Esta Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, que aconteceu em Berna, de 26 a 28 de março de 1915, contou com a participação de 25 delegadas: quatro da Inglaterra, sete da Alemanha, três da Holanda, uma da França, seis da Rússia e uma da Polônia. Sendo Zetkin a secretária do Escritório Socialista Feminino Internacional junto com Krupskaya (Rosal, Amaro del, 1975).

O início da Primeira Guerra Mundial aprofundou as diferenças, enquanto a União das Mulheres por Igualdade de Direitos, em agosto de 1915, convocou uma mobilização de mulheres “filhas da Rússia” em apoio ao governo, uma campanha para comprometer todas as mulheres russas em algum tipo de trabalho relacionado à guerra; as bolcheviques seguiriam a posição de Lênin de que o proletariado de cada país imperialista devia ser convencido a virar as armas contra sua própria burguesia. Esta mesma posição levou as delegadas bolcheviques à Terceira Conferência Internacional de Mulheres Socialistas. Nadezhda K. Krupskaya recorda: “Apresentamos nossa própria declaração. Foi defendida por Inessa. A representante polaca Kamenskaia também falou em apoio a ela. Fomos deixadas sozinhas. Em todos os lugares, nossa “divisão” foi denunciada. Mas os acontecimentos logo provaram a precisão de nossa posição. O pacifismo beato das inglesas e holandesas não avançou um único passo na ação internacional. O papel importante de acelerar o fim da guerra foi representado pela luta revolucionária e pela ruptura com os chauvinistas”.4

Finalmente, como uma solução de compromisso entre as posições pacifistas e a postura adotada pela delegação russa, foi acordado pedir o fim da guerra, reconhecendo o direito dos povos de exercer sua soberania, e fazer um apelo às mulheres e aos partidos socialistas de todos os países para se mobilizarem sob o lema “Guerra à guerra!”. Assim, a Terceira Conferência Internacional de Mulheres Socialistas significou um primeiro passo no reagrupamento dos internacionalistas que enfrentariam a traição da Segunda Internacional. O Congresso finalizou fazendo um apelo à paz: “Paz, paz, que as mulheres precedam seus maridos e seus filhos e proclamem incessantemente: os trabalhadores de todos os países são irmãos. Somente isso será capaz de deter a matança. Somente o socialismo é capaz de garantir a paz no mundo! Fora a guerra! Viva o socialismo!”.5

Nadezhda K. Krupskaya e as bibliotecas

Sem um livro, sem uma biblioteca, sem o uso hábil dos livros, não pode haver uma revolução cultural para o leitor

Quando a facção bolchevique do Partido Comunista assumiu o poder em 1917, a Rússia era uma sociedade rural, desindustrializada e em grande medida analfabeta. Essas condições e a filosofia imperiosa dos czares deixaram uma marca nas instituições culturais, e em especial nas bibliotecas. As bibliotecas públicas na Rússia czarista eram escassas e as poucas que existiam eram consideradas suspeitas pela monarquia. Particularmente insustentáveis ​​eram aqueles que, em algum momento, fizeram gestos assumindo um papel ativo na educação dos camponeses e dos trabalhadores analfabetos. A biblioteconomia como uma profissão estava começando a surgir e em muitas áreas foi influenciada pelas revistas e diretrizes da biblioteconomia ocidental. Por si só, Krupskaya era uma líder, uma filósofa e uma gestora competente, cujas duas décadas de trabalho na hierarquia da educação soviética têm uma relação direta e de grande influência no desenvolvimento das bibliotecas na União Soviética (Raymond, Boris, 1979). Ela foi promotora das bibliotecas e da cultura em seu país; durante o governo de Lênin, foram criadas milhares de bibliotecas que levaram a leitura a milhões de pessoas que, durante o czarismo, não tinham acesso a nenhum tipo de livro.

Desde o primeiro e o segundo plano quinquenal soviético, que se estendeu de 1928 a 1938, Krupskaya assumiu seu único papel na hierarquia soviética e pôde realizar sua campanha para aumentar orçamentos e salários e melhorar as instalações das bibliotecas, a fim de levar a cabo os programas de bibliotecas para crianças, promover oportunidades para a educação de adultos e assegurar um papel para as bibliotecas e, nesse sentido, organizar os esforços para documentar para o estado as condições das bibliotecas soviéticas. Teoricamente e praticamente, ela fundiu as bibliotecas com a sociedade, embora, em virtude das circunstâncias históricas, de uma perspectiva sócio-ideológica-política (Meneses Tello, Felipe, 2005: 120).

Nadezhda K. Krupskaya foi bibliotecária de profissão e, durante seus exílios e viagens, ela se enriqueceu observando o funcionamento das inúmeras bibliotecas que visitou. Do Museu Britânico, ela anotava que o serviço estava muito bem organizado, além de lhe chamar atenção as inúmeras salas de leitura das bibliotecas de Londres (1902-1903); apontava como as bibliotecas de Paris (1910-1911) estavam organizadas arquivorocraticamente. Das bibliotecas de Zurique (1916), observava o bom intercâmbio bibliotecário, o serviço aos leitores, os bons catálogos e o livre acesso aos fundos (Krupskaya, Nadezhda, 1978: 55-61).

Krupskaya acreditava que “os livros infantis são uma das armas mais poderosas nas mãos dos socialistas para a educação das novas gerações”. Essa crença no poder da alfabetização impulsionou seu trabalho no desenvolvimento das políticas educativas soviéticas para promover o ensino da leitura e da escrita. Para ela, a educação não deve limitar-se às escolas, mas deve incluir a educação contínua de adultos, a alfabetização, o desenvolvimento das bibliotecas, a emancipação das mulheres, o Movimento da Juventude Comunista, a vocação da cultura proletária, a eliminação da religião e a organização da propaganda política.

As bibliotecas públicas beneficiam a sociedade ao oferecer oportunidades para as pessoas, tornando-se um instrumento explícito nas mãos dos revolucionários, que reconhecem o papel das bibliotecas como instrumentos políticos para a reprodução. As bibliotecas foram pensadas para ocupar um lugar na luta revolucionária na Rússia da época dos decembristas na década de 1820 (Raymond, Boris, 1979: 24). Durante a década de 1870, os bibliotecários ilegais organizaram-se na União dos Trabalhadores do Norte, que considerava as bibliotecas como seu bem mais valioso (ibid., p. 30). O objetivo das bibliotecas no sistema soviético era facilitar a mobilização das massas trabalhadoras, servir de guia de leitura para a educação comunista e aumentar o nível cultural, facilitando assim o domínio da teoria marxista-leninista. Essas medidas funcionaram através da influência de Krupskaya no desenvolvimento da biblioteconomia na Rússia (Raymond, Boris, 1979), criar instrumentos que permitiam conscientizar o povo sobre a revolução para favorecer a chegada da revolução posterior. Se as bibliotecas estivessem ao alcance da classe russa subjugada, esta teria maiores chances de perceber a exploração da qual era objeto e, portanto, de se preparar para que um dia essa classe oprimida pudesse assumir as rédeas do poder.

A biblioteca foi considerada parte crucial da infraestrutura ideológica da sociedade soviética, assim escrevia Krupskaya em 1934: “A fim de proporcionar a todo mundo livros, é necessário aumentar sua publicação cem ou mil vezes. Atualmente, dado o colapso geral da economia, isso é impossível de alcançar. Portanto, temos apenas uma solução: passar da pessoa para a propriedade de uso coletivo. O uso coletivo dos livros é possível somente com o desenvolvimento de uma ampla rede de bibliotecas”. Pouco depois, como Comissária da Educação, deu a ordem de confiscar e nacionalizar todas as coleções privadas de livros com mais de 500 cópias. A coletivização de livros dentro das coleções da biblioteca também facilitou o controle do partido comunista sobre seus conteúdos. Desde o início, enfatizou que apenas alguns livros deveriam ser disponibilizados para as massas (Haigh, Maria, 2007: 73).

Embora a Revolução de Outubro tenha sido oficialmente o fim da censura. No entanto, Lênin restabeleceu-a poucos dias depois da revolução, supostamente uma medida temporária, que não foi revogada até junho de 1990. A censura instituída deveu-se à crença de Lênin no poder ideológico da biblioteca como uma ferramenta na transformação da sociedade. As bibliotecas ajudaram ativamente o Partido Comunista a educar as massas sobre o comunismo. Consciente de sua crença de que a liberdade intelectual não é compatível com a formação de uma sociedade socialista, Krupskaya assinou diretrizes sobre a censura das bibliotecas, acreditando que eram necessárias para proteger os interesses das massas. Durante todo o período soviético, os bibliotecários se encarregaram de manter atualizada uma lista de obras proibidas e as deixaram ocultas, fora do alcance do público, tornando-as “coleções especiais” de títulos e autores proibidos, sendo mais tarde alguns deles purgados (Ermolaev, Herman, 1997: 3, 6). Uma censura revolucionário-defensiva que se transformou em uma censura repressiva contra os meios materiais da produção ideológica, que ainda estavam nas mãos de alguns indivíduos da classe social que havia perdido seus privilégios e que, consequentemente, tiveram seus interesses de capital privado e poder político alterados (ver Meneses Tello, Felipe, 2007: 11).

As bibliotecas neste período se evidenciam, por um lado, como importantes centros culturais e, por outro, como os principais motores epistemológicos para motivar a continuidade da ordem social e impulsionar a mudança cultural, sendo uma das suas atividades centrais ordenar suas coleções bibliográficas. Esse valor, que é reconhecido na ordem documental, pode ser resumido com a visão de Krupskaya: “Lênin julgava o nível cultural pela forma como as bibliotecas estavam organizadas. A organização das bibliotecas era, para ele, um índice da cultura geral” de uma nação civilizada (Meneses Tello, Felipe, 2005: 125). Ele foi capaz de reconhecer a importância das bibliotecas e decidiu que um bom funcionamento e organização seria um indicador do nível cultural do povo, e então acreditou que as bibliotecas e os bibliotecários, além de provedores de informação, tinham um papel a desempenhar na construção da sociedade soviética. Serviriam como instrumentos para erradicar o analfabetismo e melhorar a educação da população, um elemento importante é a educação moral, que faria dos cidadãos bons marxistas/leninistas. Ele pensou que “os bibliotecários deveriam fazer de cada biblioteca um centro ideológico que ajudasse a construir o socialismo”. Portanto, a função do bibliotecário não era a de facilitar o acesso ao material demandado pelo usuário, senão a de ajudá-lo a escolher aqueles que eram considerados apropriados, mantendo o leitor longe do material que considerava inapropriado. Isso afetava todas as atividades das bibliotecas, desde o desenvolvimento das coleções através da catalogação, até a bibliografia nacional e a atenção aos leitores. As bibliotecas tinham um papel vital na educação de novas pessoas, nas palavras de Krupskaya “sem um livro, sem uma biblioteca, sem o uso hábil dos livros, não pode haver uma revolução cultural para o leitor” (Richardson, John V., 2000: 115).

As conquistas dos bibliotecários no período soviético tiveram resultados espetaculares na introdução da alfabetização, assim como, dentro do que foi permitido, um nível de serviço que, em alguns aspectos, seria a inveja dos pesquisadores do Ocidente. Em todas as grandes bibliotecas, foram feitos resumos detalhados e detalhados de artigos e bibliografias que seriam objeto de demanda. Iniciou-se a troca bibliotecária de materiais entre as bibliotecas do país, além do intercâmbio com as estrangeiras para promover a educação. As bibliotecas de pesquisa também foram centros que favoreceram a publicação de inúmeros trabalhos sobre temas como Bibliografia, História do Livro, Sociologia da leitura, atividades que sobreviveram na Rússia pós-soviética. Os pesquisadores se acostumaram a ter salas de leitura, com a aceleração dos prazos de entrega e com o acesso privilegiado a material restrito. Eles tiveram motivos para lamentar a perda de sua existência privilegiada, à medida que as bibliotecas se tornaram mais abertas e democráticas, e alguns deles chegaram a lamentar sua democratização (Thomas, Chris, 1999: 114). Suposto que um bibliotecário bem instruído no marxismo-leninismo poderia decidir o interesse de um livro para uma biblioteca.

Entre 1918 e 1938, a Krupkaya se dedicou ao desenvolvimento das bibliotecas. Além de ser uma especialista conhecedora da Bibliografia russa e das Bibliotecas da Europa Ocidental, mostrou um interesse especial nas bibliotecas norte-americanas. Elaborou um programa de estudos de dois anos de duração dirigido à formação de aspirantes a bibliotecários, que nunca foi posto em prática. Para o primeiro curso, entre outras atividades, estava a leitura de vinte a trinta livros recomendados e, no final do último ano, teriam que preparar um relatório oral do estágio. Os objetivos do programa eram, por um lado, que os alunos analisassem os livros por sua adequação aos leitores e previssem o tipo de livros de leitura que os usuários necessitariam. Por outro lado, o propósito desta instrução era entender a política e o mundo econômico e o que acontece na natureza e na vida social. A partir dessa intenção de criar programas especializados para bibliotecários, em 1918, o Instituto de Educação Extra-Acadêmica foi fundado em Petrogrado, contando com o Departamento do Livro e da Biblioteca. Ele experimentou várias denominações e tornou-se o Instituto Pedagógico de Trabalho Político-Educacional N. K. Krupskaya e, em 1925, Instituto de Educação Política Comunista N. K. Krupskaya, que incluiu mais matérias relacionadas à formação político-social do que cursos especializados em biblioteconomia. Após a Revolução de Outubro de 1917, em Moscou, existiam três tipos de cursos oferecidos pela Universidade Shanyavsky: cursos curtos, de três a quatro semanas; cursos de um ano para bibliotecas públicas e cursos de um ano para bibliotecas científicas. Estes cursos anteriores a 1920 eram oferecidos pelo Escritório de Biblioteconomia (OB) do Departamento de Educação da universidade, que, em 1924, foi reestruturado e renomeado Instituto de Ciências da Biblioteca (IB), especializado em bibliotecas científicas. No ano letivo de 1927-28, o IB se torna uma instituição de pesquisa científica e educacional na Biblioteca V. I. Lênin (formalmente conhecida como Biblioteca Rumyantsev). Em 1930, a instituição torna-se independente da Biblioteca V. I. Lênin e finalmente se torna o Instituto de Biblioteconomia de Moscou (MBI), cujo diretor foi Abele-Derman.6 Krupskaya escreveria sobre a biblioteconomia no ensino superior dizendo: “Seu trabalho não está organizado da maneira que deveria ser. Que tipo de formador ou bibliotecário o nosso país precisa? Não só ele deve conhecer o sistema americano de bibliotecnologia, mas também ser capaz de analisar a vida ao seu redor. Ele deve ter uma consciência politicamente marxista, um bom revolucionário. Então, será de benefício para o nosso país” (ver Richardson, John V., 2000: 117-118).

Krupskaya teve uma grande visão e influência no crescimento da biblioteconomia russa, contemplou a igualdade entre mulheres e homens e previu um programa inovador de alto nível para a formação de bibliotecários, chamado o seminário bibliotecário. Durante todo esse período, final dos anos vinte, o nível de alfabetização cresceu rapidamente, especialmente entre as mulheres, ainda que a “melhor” literatura não fosse lida. Participou da redação da legislação sobre as bibliotecas russas, incluindo o Decreto sobre a Centralização das mesmas. As conferências e reuniões mais significativas celebradas no campo da biblioteconomia foram realizadas sob sua supervisão. Ela deu muitas palestras sobre a distribuição de livros, os problemas da área e escreveu numerosos artigos sobre esses temas.

Nadezhda K. Krupskaya promoveu o sistema bibliotecário russo e, durante essa época, “toda a massa do povo” teve acesso às bibliotecas do império soviético. Após a Revolução Soviética, aprofundou a reforma da educação de adultos e das bibliotecas. Foi capaz de promover a biblioteconomia, através da escola de biblioteconomia profissional de São Petersburgo, tomando o modelo alemão, e manteve sua influência sobre o sistema bibliotecário até sua morte. De fato, suas últimas palavras públicas estavam relacionadas ao futuro das bibliotecas da União Soviética. “Vamos fazer as bibliotecas sobreviver” (Raymond, Boris, 1979: 12). Seus escritos foram amplamente publicados e estudados, e muitos se tornaram livros e artigos escritos sobre ela. Krupskaya recebeu a Medalha Anual de melhor professora e bibliotecária da União Soviética. Possivelmente, além disso, ela seja a criadora do sistema de classificação da Biblioteca Lênin, segundo o qual, em uma estrutura hierárquica decimal e arborescente, todos os conhecimentos derivam do materialismo dialético.


Notas

1 Nadezhda Krupskaya é amplamente conhecida por ter sido companheira de Lênin até sua morte. No entanto, esse reconhecimento não honra a grande personalidade que foi, portanto, neste capítulo, vou tentar ignorar sua relação com Vladimir IIich Ulyanov, Lênin.

2 Também conhecida como União de Luta para a Libertação da Classe Trabalhadora.

3 Citado em D’ATRI, Andrea (2007). Las mujeres y el socialismo, p. 12. Disponível em: <http://www.pts.org.ar/download_file.php?f=IMG/pdf/Las_mujeres_y_el_socialismo.pdf>.

4 Citado em D’ATRI, Andrea, op. cit., p. 12-13.

5 Citado em JIMÉNEZ CASTRO, Carmen (1987). La mujer en el camino de su emancipación. Madrid: Contracanto. Disponível em: http://www.antorcha.org/cast/mujer.htm

6 Henrietta Karlovna Abele-Derman (1882-1954), juntamente com N. K. Krupskaya, é considerada uma das pessoas mais importantes no desenvolvimento da biblioteconomia russa moderna. Estudou na biblioteca da Simmons School em Boston, Massachusetts, e se formou em 1917. Após sua formatura, de 1918 a 1921, trabalhou em várias bibliotecas dos EUA, como a Universidade de Harvard e a Biblioteca do Congresso. Voltando à sua pátria, a Letônia, em 1921, foi presa por dar uma palestra na qual promoveu os métodos da biblioteconomia norte-americana moderna. Abele-Derman ajudou a modernizar o sistema de bibliotecas da Rússia, em particular, os procedimentos de circulação, a disposição dos catálogos, o controle bibliográfico de todos os tipos de recursos e defendeu a ideia de uma biblioteca nacional russa. Ao longo dos anos trinta, ela participou de várias conferências internacionais sobre biblioteca. Apesar das ameaças constantes, persistiu com seu trabalho para modernizar bibliotecas russas. Em 1923, Abele-Derman foi diretora das duas bibliotecas mais destacadas da Rússia, e apenas um ano depois organizou o primeiro Congresso Russo de Bibliotecas. Em 1930, fundou o Instituto da Biblioteca de Moscou, a primeira instituição independente dedicada à formação profissional de bibliotecários. Devido às suas atividades anti-revolucionárias, em 1939 foi presa em um gulag na Sibéria, onde permaneceu até sua morte em 1954 (Knowles, Em Claire, 1998).

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A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

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Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra | 21 dez 2024

Braga Netto na prisão. Está chegando a hora de Bolsonaro

A luta pela prisão de Bolsonaro está na ordem do dia em um movimento que pode se ampliar
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Autores

Pedro Micussi