Perspectivas do pós-conflito

As consequências da assinatura do acordo de paz com as FARC e de cessar-fogo com o ELN para o cenário político colombiano. Perspectivas e movimentações políticas para as eleições do ano que vem.

Decio Machado 6 out 2017, 19:22

Em 4 de setembro passado a chanceler equatoriana, María Fernanda Espinosa, anunciava que as equipes negociadoras do governo colombiano e a guerrilha do Exército de Libertação Nacional (ELN) haviam alcançado um acordo de cessar-fogo bilateral e temporário, o que se denominou Acordo de Quito.

A trégua negociada se estenderá de 1º de outubro a 9 de janeiro do próximo ano, o que implica que não representa o definitivo fim do conflito nem serão entregues as armas por parte da guerrilha. Durante o período em curso até a data de início deste transitório cessar-fogo se prepararão todos os protocolos que são bastantes e complexos – que permitirão mecanismo de informação mútua nos territórios em conflito buscando minimizar os riscos de ruptura do acordo que deverá ser consensuado entre as partes. Também intervirão os observadores das Nações Unidas, que procederão a supervisionar o processo no lugar, e terminará de definir-se em sua integridade o rol da Igreja Católica a respeito destas negociações.

Mais além do cessar transitório de hostilidades mútuas, o Acordo de Quito implica que a guerrilha não atente durante este período contra nenhuma infraestrutura do país (incluindo seus oleodutos), não semeie mais minas antipessoais e deixe de recrutar menores abaixo da idade estabelecida pelo direito internacional humanitário. Por sua vez, o governo colombiano se compromete a fortalecer e reforçar a legislação que regula o que se conhece como “avisos prévios” – um sistema previsto para proteger os líderes civis e sociais – e desenvolver um programa de caráter humanitário para a população carcerária de militantes do ELN – aproximadamente 500 reclusos –, assistindo de forma adequada aqueles que necessitem um tratamento de saúde especial ou aqueles que têm enfermidades terminais, assim como relocalizando os presos para aproximá-los de suas famílias e protegê-los dentro das prisões. Ademais, a recentemente aprovada lei que se refere à anistia e indulto para presos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) se amplia para os membros do ELN, rebaixando-se e despenalizando-se certos tipos penais associados ao protesto social.

O acordo contempla um lapso de três semanas destinado a que aqueles que negociam em nome da guerrilha possam ir às correspondentes frentes de guerra explicar o conteúdo firmado em Quito e as condições da trégua. Isto é consequência de que – diferente das extintas FARC, em que o secretariado de guerrilha dava uma ordem e esta se cumpria sem discussão – o ELN, em que pese sua estrutura militar, funciona como uma espécie de federação de frentes em combate onde se definem os acordos de maneira mais horizontal.

Em paralelo, governo e guerrilha acordaram ampliar o período de negociações, que entrará em seu quarto ciclo a partir de 25 de outubro. De fato está previsto que ao final deste primeiro período de cessar de hostilidades se faça uma avaliação de como avançou a agenda de negociações com o fim de prorrogar por mais tempo a trégua.

Origens de uma guerrilha

O ELN nasceu em 1964, quase ao mesmo tempo que as FARC, inspirando-se em uma ideologia que mescla cristianismo, marxismo inspirado na revolução cubana e nacionalismo radical.

Suas origens reais datam de alguns anos antes, quando cinco estudantes colombianos viajaram a Havana em condição de bolsistas. Ali foi fundada a Brigada José Antonio Galán, a qual se uniriam um ano depois vários sacerdotes vinculados à teologia da libertação. Dois deles, Camilo Torres (1929-1966) e Manuel Pérez (1943-1998) se converteram nas figuras mais emblemáticas da história do ELN.

As ações armadas do ELN começaram no início de 1965, sendo a guerrilha praticamente desarticulada em outubro de 1973 – durante a presidência de Misael Pastrana Borrero –, como consequência de uma ofensiva militar em grande escala denominada Operação Anorí. Passaria uma década para que o ELN tivesse capacidade de começar a rearticular-se sob a direção do sacerdote espanhol Manuel Pérez, convertendo-se a partir de então no segundo grupo insurgente mais importante do país até o armistício das FARC.

Segundo a Fundação Paz e Reconciliação, os mais de 2 mil combatentes atuais do ELN estão distribuídos ao largo de 51 municípios em 11 departamentos colombianos. Neste sentido, o anúncio de cessar-fogo entre exército de guerrilha significará um grande alívio para as regiões do norte de Santander, Chocó e Arauca, onde se concentra com maior virulência o conflito entre a última guerrilha que permanece na Colômbia e as forças armadas.

Começa o diálogo

O ELN já havia mantido conversações com governos prévios ao de Juan Manuel Santos. Concretamente, foi durante a presidência de César Gaviria, na década de 1990, que se iniciaram os primeiros contatos (em Caracas, em 1991). E em 1992 se organizaram os Diálogos de paz de Tlaxcala, no México. As tentativas de negociação com o governo tiveram também lugar durante a gestão de Pastrana – mediante o Acordo Porta do Céu, de 1998, assinado em Mainz, Alemanha, e a reunião de Genebra realizada em 2000 –, e inclusive com o governo do ultradireitista Álvaro Uribe, mediante uma primeira reunião no fim de 2005 e três sessões mais em 2006, finalizando o processo em agosto de 2007, através de outro encontro em território cubano onde participaram o presidente cubano Raúl Castro e o Nobel de literatura Gabriel Garcia Márquez.

O atual processo de negociação se iniciou em março de 2016, três anos depois de que começaram as conversações com as FARC que culminaram com o Acordo para o Término Definitivo do Conflito assinado em Bogotá em 24 de novembro de 2016.

Historicamente o ELN teve um componente político muito mais marcado que as FARC, em que pese que os segundos tiveram quatro vezes mais capacidade operativa militar que os primeiros. Isto implicou que ainda que o início das conversações exploratórias fosse anunciado por Juan Manuel Santos durante sua campanha eleitoral para a reeleição de 2014, estas não terminaram de se completar até três anos depois.

Fim da agenda

Os primeiros diálogos se celebraram no Equador e Brasil, de forma alternada, embora Venezuela, Noruega, Chile e Cuba também acompanharam o processo. Desde meses atrás a agenda de negociação ficou pactuada, tendo certa aparência ao que se estabeleceu em seu momento com as FARC, ainda que neste caso o governo colombiano teve que ceder com respeito às reclamações insurgentes de participação cidadã.

A agenda de diálogo contempla seis pontos em discussão: a participação da sociedade, a democracia para a paz, assuntos relativos às vítimas, as transformações para a paz, aspectos de segurança para lograr a paz e entrega das armas, assim como as garantias para o exercício posterior da ação política.

Estabelecer Quito como sede principal das negociações é fruto da negativa governamental às iniciais petições guerrilheiras, que contemplavam que se instalassem fundamentalmente em Caracas.

Mas chegar aos Acordos de Quito implicou também um processo de disputas dentro do ELN, onde as posições mais dialogantes no Comando Central (Coce) se impuseram frente o setor mais beligerante. Assim, as posturas de Nicolás Rodríguez Bautista, pseudônimo “Gabino”, primeiro comandante do ELN, junto as de Israel Ramírez Pineda, pseudônimo “Pablo Beltrán”, terceiro na linha de mando e chefe da comissão negociadora, conseguiram frear os setores mais céticos e as posições duras encarnadas na Frente de Guerra Ocidental e a Frente de Guerra Oriental.

Em todo caso, existe uma nuvem de dúvidas sobre a consistência do acordo. A respeito, Jorge Restrepo, diretor do Centro de Recursos para Análises do Conflito, indica: “É muito difícil que este tipo de acordo tão desestruturado se verifique e se cumpra, oferece maiores riscos para a população civil, para que faça a verificação e para a mesma guerrilha”. A respeito dos riscos assumidos pelo ELN, o comandante Pablo Beltrán também advertiu: “O paramilitarismo é uma sombra que se mantem em grande parte do território deixado pelas FARC, e ficar quieto para a guerrilha representa um risco ainda maior”. Cabe apontar, neste sentido, que o próprio governo reconheceu que nas áreas deixadas pra trás pelas FARC se incrementaram notavelmente a atividade de diversas gangues criminosas e o paramilitarismo (assim como os assassinatos de líderes sociais; veja Brecha, 14-VII-17).

A solidez ideológica do ELN implicou que, diferente do que sucedeu durante as negociações com as FARC, a guerrilha não aceitasse nenhuma medida unilateral, algo que pediu inicialmente o governo, requerendo-lhe um cessar unilateral das atividades insurgentes. De fato o compromisso guerrilheiro nem sequer passa pela libertação de seus sequestrados – na atualidade quatro pessoas vinculadas ao setor comercial e pecuário, ficando este assunto agendado para a seguinte etapa.

Mais além da larga história de negociações entre o Estado colombiano e a insurgência “elena”, é a primeira vez desde que se fundou o ELN que se firma um documento com o governo. Nisso tiveram muito a ver as pressões do papa Bergoglio, que visitaria o território colombiano imediatamente depois para expressar seu apoio ao processo.

Reconversão das FARC

A assinatura dos Acordos de Quito se dá em paralelo à colocada em cena do partido político conformado pelas antigas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as quais mantendo suas siglas FARC passaram a denominar-se Força Alternativa Revolucionária do Comum. O modelo não é novo neste país cafeteiro, tendo em conta o processo do Exército Popular de Libertação (EPL), que passou a denominar-se Esperança, Paz e Liberdade, ou o referente ao M-19, que através da assinatura de paz optou pela denominação Aliança Democrática M-19.

Difícil é pensar que as estigmatizadas FARC possam ter um apoio relativamente amplo na área urbana, centrando-se estrategicamente este novo partido em mobilizar o voto rural de um campesinato historicamente excluído. Neste sentido, cabe recordar que aproximadamente 10 por cento dos 1.123 municípios da Colômbia a política local esteve controlada durante décadas pelos “farianos”.

Em que pese que o grande desafio das refundadas FARC deveria estar marcado na mudança de imagem, na atualização dos seus discursos, em conformar-se organicamente da forma mais horizontal possível e em apresentar novos porta-vozes ante a deslegitimação social de sua antiga comandância, as teses que se impuseram em seu congresso fundacional foram as de perfil mais ortodoxo e de conotações marxista-leninistas. Depois de seis décadas de conflito civil armado, o povo colombiano reclama nestes momentos menos consignas revolucionárias e mais propostas políticas focadas em solucionar problemas como desemprego, a baixa qualidade da saúde e a educação, a pobreza, a delinquência ou o enorme problema que supõe a corrupção institucional.

Se tivesse que localizar um perdedor no congresso fundacional do novo partido, este seria Rodrigo Londoño, pseudônimo “Timochenko”, quem propôs sem êxito o nome de Nova Colômbia para a extinta guerrilha e um modelo de partido que se dirigiria ao país “sem dogmas, sem sectarismo, alheio a toda a ostentação ideológica e com propostas claras e sensíveis”. No entanto, as teses auspiciadas pelo o que foi o número um durante a última etapa das FARC guerrilheiras foram derrotadas, não por sua direção, senão por suas bases.

Como parte dos acordos de paz, as novas FARC dispõem de dez deputados assegurados no próximo Congresso que será eleito em março do ano que vem. Nomes da antiga comandância tais como Victoria Sandino, Pablo Catatumbo, Pastos Alape, Carlos Antonio Lozada e Iván Márquez – o grande triunfador nesta convenção – figuram como pré-candidatos para ocupar estes assentos. Em definitivo, há uma ausência de caras e vozes novas para afrontar este suposto novo renascer.

O desmarque da esquerda política colombiana com respeito às novas FARC se evidenciou por sua não assistência ao congresso fundacional. Nenhum dos múltiplos pré-candidatos presidenciais do progressismo assistiu o ato, tampouco nenhum dos dirigentes dos partidos políticos de centro-direita que respaldaram em seu momento os acordos de paz. Somente assistiu um representante da pré-candidata presidencial progressista Clara López para ler um comunicado em seu nome.

Obstáculos

Em paralelo, e fruto das limitações que impôs a Corte Constitucional ao mecanismo de fast-track (via rápida) para aprovar as leis da paz no Congresso, as legislações sobre desenvolvimento rural, participação política e reforma eleitoral que devem estabelecer-se após estes acordos de paz estão sofrendo importantes modificações conceituais no Poder Legislativo. Ali os setores conservadores se encorajaram após os resultados negativos do plebiscito realizado o ano passado sobre ditos acordos.

Em todo caso, o que se visualiza em toda pesquisa de opinião realizada durante o presente ano na Colômbia é que surpreendentemente a implementação dos acordos de paz não está entre as prioridades políticas da cidadania.

Enquanto isso, nas zonas da Colômbia rural que foram antigos cenários de guerra, ex-guerrilheiros desmobilizados que formaram parte das frentes “farianas” não deixam de ser assassinados por sicários contratados por latifundiários, caciques políticos locais e gangues criminosas. Oficialmente o Estado contabiliza já uma dúzia de assassinatos de ex-combatentes e outra cifra similar de vítimas entre seus familiares.

Com respeito às dissidências – aqueles que não aceitaram o acordo de paz – dentro das FARC, o governo colombiano registra um número aproximado de 400 combatentes que se conformaram em várias estruturas ilegais localizadas principalmente em oito departamentos do país: Nariño e Cauca na zona sul-ocidental, e Caquetá, Meta, Guaviare, Vichada e Vaupés no sul-oriente. Segundo Eduardo Álvarez Vanegas, porta-voz da Fundação Ideias para a Paz, resulta significativo que estas dissidências não estejam agrupadas sob a estrutura de controle de um mesmo comandante, o qual poderia desembocar em sua futura conversão em novas gangues criminosas emergentes.

Campanha eleitoral

A seis meses de que se realizem as eleições legislativas e a nove da presidencial tudo parece indicar que o país eleitoralmente se polarizará de novo em torno das posições a favor ou contra os acordos de paz.

No âmbito da direita é de prever que, segundo vá se aproximando o processo, as múltiplas pré-candidaturas atualmente existentes terminem por convergir em dois candidatos fortes. Estes seriam Germán Vargas Lleras e quem designe finalmente Álvaro Uribe em cumplicidade final como o Partido Conservador, de Andrés Pastrana.

No caso do primeiro, que na atualidade ocupa o cargo de vice-presidente da república, suas estratégias eleitorais se articulam em torno da crítica parcial aos acordos de paz impulsionados por Santos, pactuando com diversos segmentos da política clientelista local e regional que já manifestaram seu apoio. Também se baseiam no questionamento ao governo venezuelano de Nicolás Maduro e em um irrisório alerta social para que a Colômbia não se converta em uma nova Venezuela, e termina reclamando um pacto com os setores empresariais mais reacionários, que sentem como uma ameaça a justiça transicional derivada dos acordos de paz.

Por sua vez, a estratégia do “uribismo”, além de quem termine sendo seu candidato (há na atualidade quatro pré-candidaturas distintas dentro do Centro Democrático),é assentar a ideia de que Santos entregou o país as FARC, gerando alarme em um empresariado rural ao que que se disse que sua terras terminaram sendo entregues aos ex-combatentes guerrilheiros desmobilizados, potenciando por sua vez os chamados “valores morais” mais reacionários em uma sociedade sumamente conservadora como é a colombiana.

No que diz respeito aos setores políticos que vão do centro até a esquerda, fiéis a sua tradição divisionista, na atualidade apresentam um fracionamento em ao menos três blocos: os progressistas de Gustavo Petro, o entorno do novo partido das FARC e, por último, a coalizão formada pela Aliança Verde, de Claudia López, Compromisso Cidadão, de Sergio Fajardo, e o Polo Democrático, do senador Jorge Robledo. Fica pendente ver como solucionarão as esquerdas este fracionamento para tentar convergir em torno de uma só candidatura.

Em todo caso, o que falta até maio de 2018 virá marcado pela disputa entre estas duas amplas frações que determinarão possivelmente um segundo turno presidencial, passando a centralidade política da lógica antiga esquerda versus direita a situar-se no eixo derivado do pós-conflito.

(Artigo publicado originalmente no Viento Sur)


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