Prefácio do livro O Último combate de Lênin

Prefácio à obra publicada em 1967 pelo especialista em história soviética Moshe Lewin.

Daniel Bensaïd 23 out 2017, 18:47

Quando, há mais de dez anos, Moshe Lewin proferiu em Paris suas conferências sobre os últimos escritos de Lênin, os ouvintes o instaram a produzir um livro, um romance, uma peça de teatro… ele decidiu simplesmente conceder a palavra ao próprio Lênin, em seu último combate. As poucas linhas do célebre testamento já eram conhecidas; já o diário das secretárias nem tanto; outros artigos permaneciam mal contextualizados. Para qualquer um que emergisse da historiografia stalinista a qual o PCF, mais que todos os outros, continuava imerso, este pequeno livro tinha o efeito de uma revelação.

O último combate de Lênin apareceu pela primeira vez em 19671. Ano em que a burocracia chinesa, extrapolada pela comuna operária de Xangai, baixava a bandeira da Revolução Cultural e retornava à ordem sob a égide da tríplice aliança. Ano do assassinato de Che Guevara na Bolívia. Ano dos bombardeios americanos sobre Hanoï. A greve geral de maio de 1968 e a Primavera de Praga estavam ainda em gestação. O rumor do Gulag chagava apenas às orelhas mais prevenidas e atentas.

Recebido com discrição pela mídia do movimento operário, numa época em que o PCF se atrasava dando passos de tartaruga rumo a desestalinização e o maoismo erigia novos mausoléus em homenagem a Stálin, este livro rigoroso e lúcido se situava logo de cara à margem do que estava em voga. Antípoda das novas filosofias dos anos seguintes, o livro se inscrevia na única via de uma luta radical contra o stalinismo, suas raízes e prolongamentos: a via de uma crítica histórica, na linha de Deutscher e de Liebman2

Partindo de um trabalho metódico sobre os documentos russos, Moshe Lewin se faz invisível. Coloca em cena Lênin, seus últimos meses patéticos, sua energia desesperada, seu voluntarismo; o que Moshe Lewin chama de seu “elitismo”. Como se o fundador do bolchevismo vivesse em alguns dias, sem ter tempo para assimilar e controlar, o terrível futuro da revolução que lhe escapava entre os dedos. Como se tudo isso o matasse de impotência e esgotamento.

Forças colossais entraram em movimento: as do cerco imperialista, as de certa burguesia agrária sempre ressurgente, as de uma burocracia capilar que se insinuava por todas as engrenagens do aparelho administrativo. Contudo, Lênin, em seus últimos esforços, continuou apostando na consciência da vanguarda, do partido de novo tipo estritamente delimitado e seleto, em oposição à grande social-democracia alemã anterior a 1914. O partido bolchevique que, inaugurando uma nova era, soube construir uma ponte entre as tarefas da revolução antifeudal, “democratico-burguesa” e as tarefas da revolução proletária.

Quando o próprio partido se revela corroído pelo vírus burocrático, Lênin não desiste de seu propósito. Volta-se à vanguarda da vanguarda, ao que pode subsistir de são na direção do partido. Daí o seguinte subjetivismo paradoxal para um marxista: Lênin emprega seus últimos instantes de lucidez em escrutinar individualmente os homens e corrigir suas anotações sobre os principais dirigentes.

Não há, no entanto, nada de surpreendente em tal maneira de proceder. O ano de 1923 marca o fim da crise revolucionária que, ao londo de cinco anos, sacudiu a Europa. Até então a jovem revolução russa resistiu, esperando por uma revolução vitoriosa na Alemanha, sem a qual seu próprio futuro seria teoricamente impensável. O fracasso do Outubro alemão abre caminho à ascensão do nazismo na Alemanha, bem como à derrota da Oposição de esquerda na Rússia. A burocracia teoriza a respeito desse isolamento durável e se apressa em confinar a revolução aos limites do “socialismo num só país”. Essa trajetória vai contra a história e a educação do partido, sem dúvida. Contudo, ao cabo da guerra civil, o que permanece em pé desse partido e de suas relações com as massas?

Metade do proletariado industrial desapareceu. Por exemplo: as usinas Putilov, em 1922, contavam com apenas 6.000 trabalhadores, contra 30.000 a 40.000 em 1917. O partido se integrou às funções do Estado. A supressão do direito de tendência e de fração no X Congresso de março de 1921 não fez mais que acelerar essa assimilação funcional. A tradição do bolchevismo reflui assim à cúpula do partido. O enfrentamento entre os homens que incarnam essa tradição se reveste assim de relevo histórico.

Simbolicamente, Lênin se calou às vésperas dessa derrota, mantendo-se em silêncio, aquebrantado não só pela enfermidade, mas também pela bofetada desferida por Ordjonikidze em um comunista da Geórgia, e pelas brutalidades de Stálin contra Kroupskaia.

Enfrentando as forças impetuosas da história, Lênin, de seu leito, propõe a Trotski um pacto como última investida contra a burocracia. Uma ironia sinistra faz com que Trotski caia doente em outro canto do Kremlin. Lewin ressalta a força que poderia ainda ter tido, em 1923, a aliança das duas figuras mas prestigiosas de Outubro. O autor estima, por correlação, que a agonia de Lênin continha o germe da derrota de Trotski. Talvez Trotski tivesse já naquele momento alguma consciência surda disso…

Mas o que realmente importa, a despeito de todas as falsificações stalinistas, é a fidelidade fundamental de Trotski ao último combate de Lênin. Fosse qual fosse o impasse imediato, esse combate era, com efeito, necessário. Dele dependia que a esperança suscitada pela primeira revolução comunista não se confundisse com sua caricatura reacionária. Tal combate permitia que a alternativa histórica permanecesse aberta para o futuro, que a história que se estava tecendo nos teares da burocracia pudesse ser desmentida em nome de outra possibilidade estratégica. Mais uma vez “contracorrente”; Acaso o punhado de internacionalistas agrupados em torno de Zimmerwald não tinha razão, já em 1915, frente ao rebentamento do social-chauvinismo? Não prepararam eles o renascimento do internacionalismo? Para que a história não perdesse todo o sentido aos olhos das gerações futuras, para que lhes fosse possível retomar o fio da meada, era preciso que uma voz distinta da oficial se fizesse escutar. Que logo a primeira a se escutar fosse a já abafada voz de Lênin, só reforça aquelas outras que se levantaram depois de sua morte contra a teoria do socialismo num só país, contra a política suicida do Komintern na China3, contra as loucuras do “terceiro período” que desarmaram o proletariado alemão em face da ascensão do nazismo, contra os processos de Moscou e os expurgos.

Os mesmos termos de seu combate – a questão do monopólio do comércio exterior, das nacionalidades, da organização e do Estado – desembocam nos problemas fundamentais de nosso tempo, tais como a caracterização da URSS e da burocracia no poder, ou as relações (de oposição e não de filiação) entre leninismo e stalinismo.

Em 1923, a prática da revolução estava avançada em relação à sua elaboração teórica. A complexidade da economia de transição faz com que a análise se torne incômoda. Esse contexto de dificuldades econômicas e sociais, dois anos após Cronstadt e o cerco imperialista, constitui o terreno da última batalha empreendida por Lênin. O livro de Moshe Lewin estabelece, sem ambiguidades, que Lênin toma resolutamente partido contra a burocracia, situando-se nas origens da Oposição de esquerda.

Todavia, esse engajamento não se dá sem certas confusões, repletas de consequências posteriores. Primeiramente, ao que toca a relação entre Partido e Estado. Com lucidez Lênin constata que os soviets, “que eram por natureza órgãos do governo exercidos pelos trabalhadores, foram convertidos em órgãos do governo para os trabalhadores, exercidos pelas camadas mais avançadas do proletariado, mas não pela massa laboriosa”. Partindo daí, tira em seu último texto público a conclusão lógica de que houve a fusão pura e simples entre o Partido e as funções do Estado: “Tais são as grandes tarefas com que sonho para nossa Inspeção operária e campesina. Eis porque projeto para ela a fusão do organismo supremo do Partido com um simples comissariado do povo”.

Sempre ousado no que diz respeito às inovações, Lênin pouco distinguia entre a exceção e a regra. Tende a dissolver o principal no circunstancial. Esse deslize se mostra mais grave na medida em que os dois primeiros congressos da Internacional comunista, em oposição radical à ditadura do proletariado e à democracia parlamentar, não reconheceram claramente a soberania dos órgãos soviéticos no exercício do poder. A partir do momento em que o Partido e o Estado podem se fundir, a petição de princípios a favor do pluripartidarismo, ou da livre confrontação de programas no quadro unitário dos conselhos, dos comitês ou dos soviets, torna-se em larga medida uma demanda formal.

Encontramos a mesma confusão entre exceção e regra por ocasião do X congresso, para o qual Lênin adota a interdição do direito de tendência e de fração. Trotski insistirá mais tarde, particularmente em “A Revolução traída”, no caráter excepcional de tais medidas. Os argumentos teriam sido mais convincentes se as declarações de Lênin tivessem sido explícitas a esse respeito. Ao passo em que definia com clareza como “excepcional” a possibilidade do comitê central excluir um de seus membros pela maioria de dois terços, é bem menos preciso no que concerne ao direito de tendência e de fração.

Ora, o remédio imaginado por ocasião do X congresso atacava mais os efeitos que o mal em si. Basta ter em mente o uso que foi e é feito dele pelos stalinistas contra toda vida democrática organizada no interior do partido, para se ter a medida do alcance do prejuízo. No entanto, há que se recordar, em defesa de Lênin, que a suspensão de frações não significava para ele abafar os debates: os boletins de discussão permaneciam abertos e a Oposição operária, visada pelas medidas citadas no X congresso, pôde, quatro meses depois, apresentar e defender suas posições diante do III congresso da Internacional comunista.

Não deixa de ser significativo, contudo, que em 1921 o ataque de Lênin se dirigisse simultaneamente contra o regime de tendências no partido e contra a reivindicação, tachada de corporativista, de um “congresso de produtores”: a restrição da democracia no interior do partido vai de par com a restrição da democracia operário fora do partido, sob todas as suas formas.

Essas duas confusões, repletas de consequências, tem que ver finalmente com o debate indireto que colocou em oposição Lênin a Rosa Luxemburgo em 1918 sobre as condições de dissolução da Constituinte e a limitação dos direitos democráticos (liberdade de reunião, de associação, de imprensa). Rosa não contestava o recurso a medidas de exceção, mas era firme em circunscrever mais escrupulosamente os limites das mesmas e alertava sobre seus perigos: as restrições à democracia “obstruem o manancial de onde podem jorrar as correções às imperfeições congênitas das instituições sociais”. Em Lênin, a definição imprecisa acerca da exceção pode facilmente derivar ao sabor da arbitrariedade. Lewin cita uma carta a Kursky de maio de 1922, na qual Lênin defende a interpretação mais ampla possível da noção de “ação contrarrevolucionária”, atrelando sua definição à ameaça da “burguesia internacional”.

Sabemos atualmente aquilo que Lênin mal podia prever: como a burocracia se serviu arbitrariamente de procedimentos excepcionais. Arrastados pelo ardor de uma luta irremissível, Lênin e Trotski tendiam às vezes em transformar a necessidade em virtude. No entanto, a sensibilidade escrupulosa demonstrada por Lênin no trato da questão das nacionalidades revela os limites que ele próprio não teria tardado em assinalar às transgressões da norma.

Não se trata de dar aqui lições a posteriori sobre princípios, sem levar em conta a situação concreta desses anos terríveis; mas de compreender em que medida certos erros de Lênin e de Trotski contribuíram para deseducar os quadros do Partido e a desarmá-los parcialmente em face do ascenso da contrarrevolução burocrática.

“Se Lênin se encontra em minoria em um debate que julga primordial, busca o apoio de Trotski contra Stálin e outros dirigentes; é a Trotski que se dirige quando, de algum modo, sente-se à deriva […]”. Moshe Lewin não hesita em defender essa tese, ainda dificilmente admitida, mesmo passada uma década, pelo marxismo universitário. Desenvolvida a partir de uma documentação rigorosa, tal análise está, todavia, de acordo com o sentido da história. O principal obstáculo à aliança antiburocrática, que começa a ganhar forma e se impõe, reside nas hesitações do próprio Lênin: ele percebe e denuncia o “burocratismo” sem ainda compreender plenamente a verdadeira dimensão e a verdadeira natureza da burocracia. Ele a elabora em termos de deformações no exercício do poder, mas não a enxerga em toda a sua dimensão e seu alcance para a autonomização tendencial de seus corpos parasitários.

Essa hesitação também guarda relação com a surpresa e incredulidade de Lênin ante a traição da social-democracia alemã do 4 de agosto de 1914. Sobre a questão da burocracia, Rosa Luxemburgo se mostrou mais clarividente que Lênin, mesmo que não houvesse deduzido todas as implicações organizativas de suas análises. O esboço teórico acerca da burocracia que figura em “A falência da IIª Internacional” parece rudimentar em comparação à celebre brochura que ela publicou sob o pseudônimo de “Junius”, A crise da social-democracia.

Ora, a atitude de Lênin frente a burocracia expõe o problema, hoje debatido passionalmente, da posição teórica sobre o Estado, Em 1922-1923, ele se encontra a frente de um aparelho de Estado que se sustenta sobre a cabeça de um alfinete. Não se trata mais da classe trabalhadora massivamente mobilizada, mas de sua vanguarda. Um poder em equilíbrio instável, situado no frágil ponto de encontro entre os interesses anticapitalistas da classe trabalhadora e os interesses antifeudais do campesinato. Em oposição ao economismo do qual o acusam com ligeireza alguns críticos de última hora do stalinismo4, Lênin sabia, escreve Moshe Lewin, que “na situação em que se encontrava seu regime, a política primava sobre a economia, mas a ideia de que essa preponderância pudesse se prolongar de modo durador o inquietava. Não se resignava a utilizar exclusivamente a alavanca política que muita gente hoje em dia considera como o recurso mais poderoso e decisivo”.

Chegamos agora a um nó de contradições. Converteu-se em uma espécie de moda intelectual reprovar Lênin por ter subestimado o problema do Estado. Pelo contrário, Lênin parte da especificidade estrutural da revolução proletária: uma revolução na qual a conquista do poder político não representa, como no caso da revolução burguesa, o coroamento, mas a chave da emancipação social e cultural dos explorados. Não é por acaso que, como nos lembra Lewin, Lênin fixa a data da fase especificamente proletária da Revolução Russa, ora em 5 de janeiro de 1918 (dissolução da Constituinte), ora em torno da mobilização autônoma dos camponeses pobres (junho de 1918): em todos os casos, elege como referência um ato político de tomada do poder, mais do que qualquer decreto de coletivização de terras, ou da indústria. Decorre disso que a questão do Estado se coloca a seus olhos, do ponto de vista do proletariado, por meio da questão do Partido que prepara conscientemente a conquista do poder, que estabelece um nexo entre as lutas parciais e seu objetivo final.

Entretanto, Lênin não extrai todas as consequências possíveis de sua postura. Somente uma experiência histórica muito custosa nos permite hoje entrevê-las. Se a revolução proletária começa com a conquista do poder político por uma classe radicalmente despossuída, explorada e alienada, é ao longo de todo um período transitório, no âmbito do exercício do poder e de seus mecanismos que se joga a partida decisiva.

Lênin situa, de início, a diferença entre o capitalismo de Estado propriamente dito e as novas relações sociais instauradas na Rússia no âmbito da natureza do poder político: “Nosso capitalismo de Estado se distingue do outro capitalismo no sentido literal do termo em que temos nas nossas mãos o Estado proletário, não somente a terra, mas também os setores mais importantes da indústria”. Essa definição não supõe nenhuma modificação qualitativa do processo de trabalho. O que mudou é a existência de um Estado proletário. No entanto, a que corresponde precisamente o caráter de classe desse Estado?

Não bastaria invocar a esse respeito a estatização dos meios de produção. Seria entrar num círculo vicioso. O Estado não é proletário porque nacionaliza, mas porque é resultante de uma revolução por meio da qual os trabalhadores quebraram a velha máquina do Estado burguês, amparados no poder político. Daí a novidade e a importância da questão: se o proletariado se viu despossuído do poder político, quem o exerce em seu nome?

A estatização da grande parte dos aparelhos de produção ocorreu entre 1918 e 1921, mais rápida que o previsto, sob a pressão da guerra civil. Com isso, é suficiente para modificar radicalmente as relações existentes entre o Estado e a sociedade civil. Mesmo burocrática, a planificação resultante dessa transformação preenche a fratura que os separa, quebrando os mecanismos supostamente naturais de concorrência. O Plano expressa o significado social e político das opções econômicas. Se há desemprego, este não pode mais ser explicado enquanto fatalidade irracional resultante de leis cegas do mercado. A prioridade dada à indústria pesada e à produção de adubo, as atribuições orçamentárias, tudo isso encontra diretamente sua tradução em termos de prioridades políticas e de alianças sociais. Os trabalhadores já não encontram mais diante do Capital e da mercadoria, erigindo-se como potências estrangeiras, mas diretamente do Estado.

Uma sociedade em que se estabeleceu a unidade orgânica entre sociedade civil e Estado, só pode funcionar segundo duas lógicas contraditórias. Ou bem a sociedade se faz Estado, e daí a simples cozinheira pode, como imaginava Lênin, começar a dirigir. Nesse caso, o Estado não é mais um Estado propriamente dito: socializa-se, começa a definhar e a se apagar. É o projeto de Estado e da revolução. Ou bem o Estado se apodera da sociedade e a invade, a sociedade se estatizada, e o Estado, de acordo com a tese stalinista, fortalece-se em vez de definhar. A extração do excedente de trabalho não se opera mais pela retirada de mais-valia, que caracterizava a relação entre o assalariado e o capital, mas pelo exercício de uma obrigação diretamente política.

Nesse segundo caso, o terror se converte em engrenagem essencial do mecanismo social. As diferentes instituições, da justiça até os meios de comunicação, passando pela família e a escola, já não buscam, como se dava nos tempos da democracia burguesa, alimentar a ilusão de autonomia e de neutralidade da esfera privada. Ao contrário, elas são absolutamente funcionais e explicitamente regidas por critérios políticos. Para se convencer disso, basta ler os discursos de acusação de Vychinsky, os tratados da pedagogia oficial, ou ainda os motivos de internação psiquiátrica.

Lênin nem ignorou, bem subestimou o problema do Estado. Colocou-o, entretanto, nos termos mistificadores da herança hegeliana: um Estado exterior à sociedade civil, regida por ele; quando na realidade, o Estado burguês, apoiando-se na divisão do trabalho, é onipresente do tecido social. Não basta quebrar a máquina de dominação para extirpar suas raízes.

É nessa transição que ganha corpo o poder específico da burocracia, camada enquistada no exercício do poder, da qual se nutre e pela qual se perpetua.

Lênin e Trotski se opõem fortemente à teoria nascente do socialismo num só país, ao mesmo tempo que em que são os principais defensores do monopólio do comércio exterior. Trotski mostrará mais tarde como o monopólio permite à economia soviética se desvincular dos fluxos de acumulação internacional do capital, mas não lhe possibilita edificar uma economia “socialista” cerrada por muros. Para Lênin o importante é simplesmente ganhar tempo oferecendo por meio da NEP concessões ao campesinato, impedindo-os assim de se inserirem nas leis do mercado mundial. A significação do monopólio é portanto plenamente política (de autodefesa), e não de racionalização econômica abstrata.

A burocracia em formação se mostra disposta, pelo contrário, a toda forma de compromisso que lhe permita salvaguardar seu poder: à abolição do monopólio do comércio exterior em 1922, ao chamamento massivo a investimentos estrangeiros em 19285, depois à coletivização forçada. Contudo, todas essas idas e vindas à parte, a burocracia não logrou se desvencilhar das conquistas sociais de Outubro. Para tanto seria necessário uma verdadeira contrarrevolução social, em detrimento de uma classe trabalhadora que se fortaleceu consideravelmente ao longo de meio século. O que distingue a formação social soviética, em última análise, sem atenuar a crueldade do componente do terror burocrático, são os fatos de que a força de trabalho e os bens de produção não tinham o estatuto de mercadoria; que a utilização de recursos humanos e materiais se balizava num Plano, em vez de se pautar pelo mercado; que, nessas condições, a intensidade do trabalho, imposta pela coerção hierárquica e não pela lei da concorrência, era mais fraca que em países capitalistas.

Mesmo que a transição possa se estender por um longo período, o regime burocrático só pode desembocar na seguinte alternativa: restauração capitalista ou revolução política. Até o presente, as tendências à restauração têm topado regularmente com a resistência da classe trabalhadora ante o questionamento de suas conquistas, assim como com as divisões sociopolíticas da própria burocracia.

A revolução política, cujo programa Trotski traçou nos anos 30, revelou suas formas embrionárias nas sublevações de Berlin Oriental em 1953, Polônia e Hungria em 1956, Tchecoslováquia em 1968, Polônia novamente em 1969 e 1975. Cada vez que a classe trabalhadora se mobilizou contra um aumento de preços, ou contra a arbitrariedade da burocracia, conseguiu pôr na ordem do dia as mesmas demandas: supressão da polícia política, liberdade de reunião e de associação, separação de sindicatos e Estado, liberdade sindical e pluripartidária, restauração dos conselhos. Em compensação, jamais o reestabelecimento da propriedade privada dos meios de produção apareceu enquanto uma reivindicação de massa.

Falar de revolução política não implica nada parecido com uma “revolução tranquila”, algo como uma democratização pacífica das “superestruturas”. A própria revolução burguesa é uma revolução política, na medida em que se baseia em relações sociais previamente estabelecidas. Não foi menos radical e violenta, especialmente na França. A luta para derrubar a burocracia assim também será.

Manuel Azcarate, membro do escritório político e responsável pelas questões internacionais do Partido comunista espanhol, declarou recentemente numa estrevista: “é necessário que os trabalhadores se tornem donos se seu próprio futuro. Como vão consegui-lo? Com esse Partido que não passa de um elemento do Estado? Com esse Estado autoritário? Não vejo outra solução que uma revolução política, pela qual os trabalhadores começarão a dirigir realmente os destinos de seus países6“. O conceito de revolução política é portanto admitido. Mas a questão de seu conteúdo permanece em aberto.

Com efeito, pode se tratar de uma fórmula vazia se não se traduzir em atos e num compromisso claro e preciso: Azcarate e os dirigentes dos partidos comunistas estarão dispostos as lutar contra a burocracia na URSS e nos países do Leste? A se juntarem não só às reivindicações democráticas dos intelectuais dissidentes, mas às reivindicações sociais dos trabalhadores, como a dos trabalhadores poloneses em 1975, ou dos mineiros romenos em 1977, e das demandas dos opositores comunistas como Rudolf Bahro, atualmente encarcerado na RDA. Estão dispostos a respeitar desde agora mesmo em seus respectivos países, na Espanha, na França, ou alhures, os princípios da democracia socialista: pela batalha para a soberania dos órgãos unitários de luta onde se dotam os trabalhadores (assembleias, comitês de greve eleitos e revogáveis)? Pela demanda da democracia sindical sobre uma base federativa? Pelo reconhecimento da pluralidade no seio mesmo do movimento operário, o que implica acabar com todas as exclusões que pesam sobre organizações que se reivindicam da classe trabalhadora? Estabelecendo o direito de tendência e frações em seus próprios partidos?

A partir de 1968, os partidos comunistas ocidentais, sem romper com a URSS, foram levados a redefinir sua relação com os dirigentes do Kremlin: a subordinação direta em vigor durante o pacto Stalin-Laval, do pacto germano-soviético, ou da guerra fria se transformou numa aliança conflituosa e negociada7. Tais modificações abrem campo para a interrogação sobre a própria natureza da URSS e sobre a história de suas relações com os partidos comunistas.

A publicação na França de um livro coletivo de intelectuais do PCF, intitulado A URSS e nós, inscreve-se nesse movimento de revisão. Tem explicitamente por objetivo elaborar uma “concepção coerente da URSS”. Contudo, a concepção anterior, a que prevaleceu ao longo dos anos de apogeu do stalinismo, que se traduzia pela defesa incondicional à “pátria do socialismo”, era perfeitamente coerente. Tal questionamento não pode empacar no meio do caminho, numa linha que pesa os prós e os contras, as vantagens e os inconvenientes, os progressos econômicos de um lado, e as “restrições às liberdades” de outro. Deve passar pelo escrutínio de uma coerência teórica, essa é sua implicação prática. E implicação prática, em se tratando da URSS, consiste em definir a atitude fundamental face às reivindicações de contestadores e às aspirações da classe trabalhadora. Trata-se de reconduzir o partido de Stálin e de democratizar o Estado? Ou de defender os direitos democráticos e as reivindicações proletárias, de restabelecer a democracia dos conselhos e os direitos das nacionalidades, de reconhecer a liberdade sindical e de derrubar a opressão imposta pela burocracia?

Chegamos aqui às fronteiras que separam o liberalismo pequeno-burguês da continuidade do “último combate de Lenin”. Há aqueles que tomam distância, levando em consideração o terror da burocracia para melhor prestar homenagens à “democracia burguesa”; não hesitam em fechar os olhos para sua decadência e seu avesso autoritário. E há outros para os quais a democracia socialista é indivisível, e significa mais democracia, e não menos, em relação aos países capitalistas. Para estes últimos, a defesa dos direitos do homem, que se incarna em Grigorenko ou Soljénitsyn, Orlov ou Bahro, Rostropovitch ou Biermann, não admite nenhum regateio.

Jean Ellenstein qualificou os processos de Guinzbourg, Orlov e Chtcharanski de “casos Dreyfus” de nossos tempos. Concordo. À condição de recordar que, em sua época, Zola e Jaurès precisaram de muito tempo e determinação para arrancar a reabilitação de Dreyfus. Também à condição de não abandonarmos à própria sorte os Dreyfus de ontem, aqueles dos processos de Moscou, dos campos de Vorkuta e de Kolyma.

A luta contra a burocracia passa pela reabilitação da memória e da continuidade históricas. “O último combate de Lenin”, nesse sentido, constitui um retorno às fontes originais.

6 de setembro de 1978


1 Moshe Lewin. Le dernier combat de Lénine. Éditions de Minuit. 1978.
2 Isaac Deutscher. Staline, Livre de poche, Trotski, Julliard. Marcel Liebman, Le leninisme sans Lénine. Seuil.
3 Sobre a revolução chinesa de 1926-1927, ver Harold Isaacs, Tragédie de la révolution chinoise (Gallimard).
4 Louis Althusser em Réponse à John Lewis, Maspero; Nicos Poulantzas em Fascisme et dictature, Maspero; Charles Bettelheim em Les luttes de classe en URSS, Seuil.
5 Ver David Rousset, La société éclatée, Grasset.
6 Entrevista à revista Viejo Topo, extra nº 2.
7 Ver Ernest Mandel, Critique de l’eurocommunisme, Maspero; e “L’Eurocommunisme”, no número especial da revista Recherches Internacionale, nº 88-89.


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