Combater a corrupção e os ataques dos de cima com organização e mobilização dos de baixo

As novas denúncias contra Michel Temer e a cúpula corrupta do PMDB são objeto deste artigo escrito após semanas de especulações na imprensa sobre o “fim da Lava Jato”.

Luciana Genro 29 nov 2017, 12:59

O governo Temer é a prova de que o que está ruim sempre pode piorar. Dilma iniciou seu segundo governo de forma desastrosa, nomeando Joaquim Levy para fazer o ajuste fiscal. Perdeu, com isso, legitimidade e apoio social. Foi com uma resistência limitada aos aparatos petistas que aconteceu o seu impeachment, não houve reação popular em defesa do governo. Temer aprofundou o ajuste que Dilma vinha tentando fazer, de uma forma que provocou uma crise econômica brutal, desemprego galopante, queda na renda dos trabalhadores e a continuidade ou talvez até ampliação dos esquemas de corrupção. Estamos, ainda, diante de um retrocesso brutal com a Reforma Trabalhista. E paira a ameaça da Reforma da Previdência, pelo menos a aprovação da idade mínima, muito embora o governo esteja bastante paralisado, organizando a sua própria defesa e tentativa de permanência.

Os percalços de Janot na delação dos irmãos Batista e sua saída da PGR são elementos a serem considerados neste cenário difícil. Ainda não está claro se a substituição de Janot por Raquel Dodge vai “estancar a sangria”, mas os fatos revelados não podem mais ser esquecidos.

“Desde meados de 2006 até os dias atuais, MICHEL TEMER, EDUARDO CUNHA, HENRIQUE ALVES, GEDDEL VIEIRA LIMA, RODRIGO LOURES, ELISEU PADILHA e MOREIRA FRANCO, na qualidade de membros do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com vontade livre e consciente, de forma estável, profissionalizada, preordenada, com estrutura definida e com repartição de tarefas, agregaram-se ao núcleo politico de organização criminosa para cometimento de uma miríade de delitos, em especial contra a Administração Pública, inclusive a Câmara dos Deputados (…)”.

“A organização criminosa objeto da investigação no âmbito da Operação Lava Jato foi constituída em 2002 para a eleição do ex-presidente Luis Inácio Lula Da Silva à presidência da República, quando integrantes do PT uniram-se a grupos econômicos com o objetivo de financiar a campanha de Lula em troca do compromisso assumido pelo então candidato e outros integrantes da organização criminosa do PT de atender interesses privados lícitos e ilícitos daqueles conglomerados.

Com isso, Lula foi eleito e a organização criminosa passou a ganhar corpo após a sua posse, quando então se estruturou um modos operandi que consistia em cobrar propina em diversos órgãos, empresas públicas, sociedades de economia mista controladas pela União e Casas do Congresso Nacional, a partir de negociações espúrias com as empresas que tinham interesse em firmar negócios no âmbito do governo federal e na aprovação de determinadas medidas legislativas.” (Trechos do início da segunda denúncia de Rodrigo Janot contra Michel Temer e sua quadrilha)

O que temos chamado de “Lava Jato” já não é apenas uma operação policial ou jurídica, mas um fenômeno composto por diversas investigações feitas pela Policia Federal, pelo Ministério Público e chanceladas, até o momento, pelo Poder Judiciário, desde a primeira instância até o Supremo Tribunal Federal.

Ela começou triturando o PT, dando seguimento ao que o chamado Mensalão tinha apenas começado a demonstrar. Naquele momento o “inimigo público n°1” do PT foi Joaquim Barbosa, alvo dos mais duros adjetivos desqualificatórios. O mensalão foi apontado como uma operação burguesa para destruir o PT. Se esse era o objetivo, não deu certo. Lula foi reeleito e depois dele, Dilma. Mas o processo seguiu.

O fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público, fruto da Constituição de 1988, e sua maior autonomia, fruto dos governos petistas, propiciaram a realização de investigações que nunca antes na história do país havíamos visto. Aliás, é bom lembrar, o procurador-geral da República dos anos FHC, Geraldo Brindeiro, foi apelidado pelos deputados de oposição como “engavetador-geral da República”[1]. De 626 inquéritos criminais que recebeu, engavetou 242 e arquivou outros 217. Somente 60 denúncias foram aceitas. As acusações recaíam sobre 194 deputados, 33 senadores, 11 ministros e quatro contra o próprio presidente FHC. Entre as denúncias que engavetou está a de compra de votos para aprovação da emenda constitucional que aprovou a reeleição para presidente, beneficiando o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Estes números demonstram claramente que os esquemas, a corrupção e as quadrilhas políticas sempre existiram. Antes, entretanto, a maioria das investigações não dava em nada, principalmente quando atingiam a elite da casta política. Naquela época, os autores das denúncias ou seus propagadores sempre foram os deputados do PT.

Agora, este fenômeno que chamamos Lava Jato está desmascarando o sistema político brasileiro, mostrando as relações espúrias que existem entre partidos e empresas, como é o caso da JBS, da Odebrecht, da OAS e tantas outras. A última denúncia de Janot contra Temer, por exemplo, demonstra essa conexão entre os esquemas que existiam nos governos Lula/Dilma e os que existem agora no governo Temer, que são praticamente os mesmos, com personagens um pouco diferentes, mas com uma essência idêntica. O PMDB, que está no poder desde o fim da ditadura, tem sido o chefe dos esquemas. O PT, que estava fora, pois era oposição, aceitou fazer parte dos esquemas ao assumir o poder. Essa foi uma mudança brutal. Se Brindeiro não tivesse sido um “engavetador” certamente as semelhanças com o que ocorria durante o governo FHC estariam bem explícitas também.

Apoiar a Lava Jato não se trata, portanto, de chancelar tudo o que foi feito por Sérgio Moro, Janot ou Fachin. Injustiças, abusos e decisões arbitrárias são as marcas do processo penal brasileiro, e neste caso elas também ocorrem. Mas trata-se de valorizar um fato inegável: estamos vivendo um fenômeno político e jurídico que colocou a nu o funcionamento do sistema, um sistema que combatemos e cuja operação se dá através dos mais promíscuos esquemas de corrupção. E isto não é novidade para nós, da esquerda. Não se trata, também, de demonizar um partido, mas sim de desnudar um sistema político. Neste sentido a Lava Jato já cumpriu um papel fundamental e fugiu do controle de todos, inclusive de Janot, como ficou demonstrado no episódio da delação dos irmãos Batista.

Se o objetivo inicial era mesmo destruir o PT, como muitos afirmam, há que se concluir que a “sangria” desatada foi muito maior. A quadrilha de Michel Temer está na berlinda. Empresários foram presos e estão sendo processados. Mesmo a proteção aos delatores está na berlinda. A pior parte da Lava Jato desmoronou: Joesley e Wesley estão presos. O caso de Aécio é emblemático, pois uma das críticas à Lava Jato era que ele – e outros líderes do PSDB – estava sendo poupado. Pois depois que o STF suspendeu seu mandato e lhe mandou ficar em casa à noite, vimos uma operação capitaneada pelo PT para tentar resgatar Aécio, mudando o discurso da seletividade para o da hipertrofia do Poder Judiciário.

Mas é claro que a corrupção não acabou e há muitos envolvidos que estão livres e com muito poder. A persecução penal dos crimes de colarinho branco é extremamente complexa.

Saudar o fato de que políticos e empresários estejam presos não significa dizer que o processo penal seja justo. Como advogada, já senti na pele como há uma dificuldade gigantesca do acusado, principalmente quando ele é pobre, negro ou é suspeito de envolvimento com o tráfico, de ter um julgamento justo.

O processo penal brasileiro é extremamente punitivista. Os juízes, e Sérgio Moro é um exemplo claro disso, são muito mais acusadores do que julgadores imparciais. Em tese, no nosso sistema penal vigora o modelo acusatório, que se caracteriza pela separação entre acusação, defesa e julgamento, no qual cada função é exercida por pessoas e órgãos diversos entre si. Mas na vida real não é bem assim que funciona, pois o juiz muitas vezes cumpre o papel de acusador e o Ministério Público tem um peso desproporcional ao da defesa junto ao poder julgador. É isso que temos visto ao logo dos processos da Lava Jato. A diferença é que nestes processos os réus não são como a maioria dos réus brasileiros. Eles são ricos e têm bancas de advogados com os mais amplos recursos. Isso faz uma diferença enorme. Suas condenações não refletem a falta de liberdade de defesa ou de igualdade de posição entre a acusação e o réu, como ocorre nos processos penais contra os “de baixo”. Refletem sim a enorme podridão do sistema político.

Há uma mudança fundamental a ser feita no processo penal brasileiro, porque, em geral, ele prejudica as pessoas mais pobres. Mas não é o caso dos acusados na Lava Jato. Infelizmente nos 13 anos de governo petista não se avançou um milímetro nesta questão.

É fundamental compreender que não serão o Poder Judiciário, a Policia Federal ou o Ministério Público os construtores de um novo sistema. Estes podem cumprir um papel positivo ou negativo, podem contribuir mais ou menos para que o povo tenha conhecimento do que se passa nos bastidores do poder econômico e político. Podem ajudar a desconstruir, mas não irão construir nada. Será a própria sociedade, a partir da sua ação política de mudança, que pode fazer com que esse fenômeno chamado Lava Jato possa resultar em algo positivo, e não apenas em um grande desencanto das pessoas.

Não podemos permitir que o que fique de tudo o que está ocorrendo seja uma grande desesperança, um enorme vazio de alternativa. Por enquanto é isso que estamos vendo. Além da inércia das direções. É também por isso que não ocorrem grandes mobilizações pelo Fora Temer, apesar de 89% da população ser a favor do seu afastamento, segundo a última pesquisa do DataFolha.

Quem achava que a corrupção era obra do PT já está vendo que não é bem assim. À medida que a operação foi avançando e atingiu em cheio Temer e seus ministros, as pessoas perceberam que não adianta trocar o governo, porque o sistema está todo corrompido, e então questionam qual seria o sentido de ir para a rua derrubar Temer. Nem mesmo a ideia de novas eleições empolga o povo, pois está evidente que todos os grandes partidos estão no esquema. Lula acaba ainda recebendo muitas intenções de voto nas pesquisas, mas isso não reflete nenhuma esperança ou entusiasmo, e sim o medo de que Bolsonaro cresça.

Estamos em um momento de transição, em que o velho agoniza, mas o novo ainda não está plenamente desenvolvido. Como escreveu Gramsci, é nestes momentos que surgem os “fenômenos patológicos”, como é o caso de Bolsonaro.

É preciso avançar no processo de reorganização da esquerda consequente, debatendo amplamente um programa de unidade com os lutadores sociais, com ativistas socialistas e com ativistas democráticos que queiram construir uma alternativa popular. Esta alternativa deve ser uma afirmação do que nós do PSOL temos feito até aqui, e ao mesmo tempo uma ampliação, portanto algo novo.

Este programa precisa dialogar com a estratégia socialista e ao mesmo tempo com as demandas democráticas e sociais mais sentidas pelo povo. O ponto central, evidentemente, é a política econômica. Enquanto ela não mudar, tudo permanecerá como está. Não podemos mais subordiná-la aos interesses do mercado financeiro e sim orientá-la para as necessidades reais da classe trabalhadora e do povo.

No Brasil a política econômica sempre foi orientada ao grande capital. Uma política que se estabilizou com os governos do PSDB, foi preservada durante as gestões petistas e agora é intensificada sob o comando de Temer. Precisamos romper com esta lógica e propor um outro modelo econômico para o país, a começar por romper com a subordinação à lógica do superávit primário. Não é possível que o Brasil siga utilizando os recursos do esforço produtivo do país para pagar juros de uma dívida que sequer passou por auditoria. Uma dívida que quanto mais se paga, mais cresce. Que já ultrapassa os R$ 3 trilhões. Dos R$ 3,5 trilhões para o orçamento federal de 2017, R$ 339 bilhões estão destinados ao pagamento de juros e encargos da dívida.

É preciso acabar com a transferência de recursos públicos para uma elite rentista especular no mercado financeiro. Isso possibilitaria investimento real em educação, saúde, segurança e moradia. Uma auditoria da dívida é o primeiro passo neste novo caminho.

É fundamental também a anulação das reformas antipopulares e da lei das terceirizações. Isso inclui, evidentemente, o fim do teto de gastos – que existe apenas para pagar os juros de uma verdadeira caixa preta chamada de dívida pública.

Outro aspecto central é uma revolução no sistema tributário, que é uma das raízes da desigualdade social no país. É um sistema injusto que penaliza os trabalhadores e consumidores enquanto privilegia os milionários e aqueles que deixam de produzir para especular no capital financeiro.

A taxação das grandes fortunas, um imposto maior sobre a herança, tributação sobre lucros e dividendos são algumas das medidas indispensáveis, assim como o alívio do imposto sobre o consumo e a produção, corrigindo a tabela do Imposto de Renda e desonerando a cesta básica.

Estes pontos apresentados acima não são medidas diretamente socialistas, mas são políticas que apontam para uma transição entre a barbárie capitalista e uma agenda progressista que leve em conta as necessidades concretas da população – que demanda melhores serviços públicos, segurança e condições de trabalho. Nenhuma destas medidas chegou sequer a ser tentada nos 13 anos de governo da coalização encabeçada pelo PT e comandada por Lula. Evidente que não é fácil. É necessário enfrentar interesses poderosos. Mas a capitulação aos interesses do capital financeiro e das oligarquias não levou a bons resultados, como podemos ver claramente hoje.

Além das mudanças econômicas há outras questões fundamentais que também não entraram na agenda lulista. A democratização dos meios de comunicação é uma das mais fundamentais. Para exemplificar o desastre basta lembrar que Hélio Costa, nome de estreitas relações com a Rede Globo, comandou o Ministério das Comunicações por 5 dos 8 anos da gestão Lula, e que a Rede Globo seguiu com a maior fatia da verba publicitária do governo.

Outra questão fundamental é uma mudança no sistema penal brasileiro. O encarceramento em massa de jovens pobres e em sua maioria negros é uma política sem nenhuma efetividade no combate à violência e geradora de mais discriminação e exclusão. Uma nova política de drogas também é essencial para que haja um combate efetivo à violência no país. A guerra às drogas fracassou no mundo inteiro e transformou-se em uma verdadeira guerra aos pobres. Descriminalizar e regulamentar a produção, venda e o consumo da maconha é o primeiro passo para quebrar a espinha dorsal do tráfico e acabar com a chaga do encarceramento em massa de jovens negros e pobres. O nosso vizinho Uruguai está fazendo uma experiência fundamental neste sentido.

Os direitos civis devem ser uma prioridade para o avanço democrático e civilizacional no Brasil. Não é possível que o país siga sem uma lei de identidade de gênero para a população transexual. Que a LGBTfobia ainda não tenha sido criminalizada. Que as mulheres – especialmente as mulheres negras – ganhem menos que os homens e sangrem em clínicas clandestinas de aborto, quando este procedimento deveria ser 100% público, legal e seguro àquelas que optarem por ele.

Além de tudo isso, é preciso seguir um duro combate contra a corrupção. Independente da apreciação que cada um tenha do fenômeno Lava Jato, é fundamental garantir independência de atuação aos órgãos de controle, transparência e fiscalização total sobre o uso do dinheiro público. E trabalhar pela construção de uma democracia real, onde o povo tenha poder e não apenas o direito de votar a cada 4 anos. É preciso colocar abaixo este regime político apodrecido, com instituições totalmente distanciadas dos interesses do povo. É preciso reorganizar o país sob novas bases e pela base.

A organização popular é o melhor antídoto contra uma casta política que só pensa em seus privilégios e sobrevivência. Este programa só poderá ser aplicado em um contexto de organização do povo, pois o andar de cima não vai entregar seus privilégios facilmente. Fortalecer a organização de base, os movimentos independentes e trabalhar por um novo tipo de junho de 2013, um junho com um programa claro de mudanças estruturais, é o caminho.

 


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Pedro Micussi