O comunismo derrubou o Muro de Berlim

O modelo de socialismo implantado na Alemanha Oriental e os muros que o capitalismo vem construindo nas últimas décadas.

John Brown 9 nov 2017, 20:05

“Não se deixe seduzir!
Não há caminho de volta.
O dia se aproxima
E já se sente o frio da noite.
A manhã não virá nunca mais.

Não se deixe enganar!
A vida não é muita coisa.
É preciso bebê-la em grandes goles!
Vocês não terão bebido o bastante
Quando chegar a hora de deixá-la.

Não se deixem envolver!
Não terão tempo bastante!
Deixem apodrecer os cadáveres.
A vida leva-os sempre
E não se vive senão uma vez.

Não se deixem arrastar
Aos trabalhos e às galeras.
De que, então, vocês têm medo?
Como todos os animais, vocês morrerão
E depois da morte não há mais nada.”

— Bertold Brecht

Contam que faz 20 anos caiu um muro infame que separava as duas partes de um país. Contam que esse muro foi erguido pelos defensores de uma ideia totalitária que chamavam “comunismo”. Contam que o muro servia para que a população não escapasse para o outro lado, a Alemanha capitalista onde imperavam a democracia representativa e uma economia social de mercado. E, no entanto, o que havia do lado socialista não era senão um reflexo degradado do capitalismo: uma sociedade de consumo um tanto decadente onde havia supermercados, mas não sempre havia grande coisa, circulavam automóveis pelas ruas, mas seu motor era de motocicleta e suas carrocerias de algo que não se parecia muito com o metal. O governo era tão democrático que se identificava automaticamente e a priori com as maiorias sociais. Tudo isso funcionava sob a direção autoritária e paternalista de um Partido Socialista Unificado que alguma vez nos anos 50, segundo nos conta Bertold Brecht, teve a tentação de dissolver o povo antes que dissolver seu governo. O poder desse partido e de seu regime, igual o do PCUS na URSS se baseava em um pretendido saber sobre a história e sobre a realidade. Jacques Lacan reconhecia neste poder que pretende ser inteiramente um saber o pedante “discurso da universalidade”. O partido como “intelectual coletivo” sabia a verdade de um presente que a população se limitava a viver ou sofrer. Die Partei hat es immer Recht. O Partido sempre tem razão, porque é quem representa o posto avançado extremo do progresso histórico ao ser a vanguarda do proletariado. O socialismo se impõe assim à população com a evidência que, segundo os fisiocratas, deveria guiar todos os atos do soberano. Mais que como uma opção política, se apresenta como uma verdade científica. Quem não está de acordo se equivoca ou se engana ou engana aos demais e se converte em um inimigo objetivo do Estado dos trabalhadores. Como todo dispositivo experimental o socialismo do Leste Europeu requeria isolar-se do entorno. O muro foi parte do mecanismo de produção de verdade próprio do socialismo. Como em um laboratório ou em uma clínica, era prioritário impedir a contaminação.

O muro do socialismo é assim o contrário do comunismo, deste “espectro que ronda a Europa” do que nos falavam Marx e Engels e causava legítimo espanto a burguesias, tronos e governos. Na República Democrática Alemã e no Leste Europeu quem tinha medo era fundamentalmente o regime que governava em nome dos trabalhadores, expropriando-os em seu próprio nome de sua capacidade de decisão e de seus meios de produção, expropriando-os de sua riqueza e encolhendo sua capacidade produtiva. O socialismo com sua propriedade estatal é tão expropriador dos bens coletivos como o próprio liberalismo com sua propriedade privada obrigatória. Os poderes do capital puseram sempre barreiras contra o comunismo, pois o viam como uma indomável força de liberdade capaz de difundir-se por qualquer lugar, pois o comunismo não é senão a força do comum. O poder que levantou o Muro de Berlim, nada tem a ver com o comunismo. Esse poder do socialismo de Estado tinha que proteger-se: tinha medo, tanto medo que suspeitava de quase toda a população e instaurou um regime universal de delação. Tanto medo que só soube imitar o Estado e o capitalismo.

Faz 20 anos que desapareceu o muro sob o impulso de uma população que já não acreditava no poder da pequena burguesia inculta e autoritária do Partido. Uma pequena burguesia cuja mediocridade só é comparável à do franquismo. “Gestão autoritária da vida cotidiana” é o que viu Rossana Rossanda no franquismo; é também o que havia na República Democrática Alemã. Um regime de ordem que tinha medo de sua própria população e do mundo exterior.

A queda do muro se converteu, no entanto, em uma data emblemática de um pretendido fim do comunismo. Com o muro se havia acabado toda alternativa ao capitalismo. E, no entanto, por muito que os dirigentes ocidentais e os “novos” dirigentes do Leste Europeu celebrem juntos a queda do muro, são eles agora que têm medo. Desapareceu um muro e são agora os pretendidos vencedores do comunismo que da Palestina a Ceuta, da fronteira sul dos Estados Unidos ao Saara Ocidental, e em qualquer bairro periférico das grandes cidades elevam muros incontáveis. Muros de pedra e de cimento, muros eletrônicos, muros de papéis ou inclusive frotas inteiras para impedir o livre movimento de indivíduos e populações, muros legais que são as leis de exceção permanente. Já não basta um só muro. Para defender o capital se alçou e seguem alçando-se cada dia muros de todo tipo.

Mas apesar dos muros, como na muralha chinesa de Kafka, muito antes que termine a improvável construção do muro definitivo contra os bárbaros, os bárbaros já acampam no centro de Pequim. O espectro já não está fechado em sua ruinosa fortaleza “socialista”, o comunismo está hoje livre e ronda zonas importantes do mundo. É inclusive a base da produção capitalista: a cooperação direta entre os trabalhadores, sua capacidade de comunicação e auto-organização são o fundamento da produtividade e da riqueza. Hoje nem o capital nem o Estado são capazes de organizar a produção. Só o comunismo pode fazê-lo. Produzir hoje é construir os meios produtivos comuns e poder acessar livremente eles. A exploração capitalista desprovida de qualquer função organizativa volta assim ao modelo feudal: o capital já não organiza a produção e se apropria da mais-valia, não já como benefício senão como renda (financeira). O capitalismo é já “Ancien Régime”, antigo regime que convive com o novo terceiro estado.

O comunismo não está fora do capitalismo, senão em seu próprio interior. As imagens do socialismo e da Guerra Fria que apresentavam o comunismo como algo exterior e alheio ao capitalismo serviam de bálsamo para as angústias de todas as burguesias. O comunismo estava lá, atrás do muro, se diziam. E, no entanto, do outro lado não havia senão o espectro do espectro: uma ridícula paródia do capitalismo orquestrado por um Estado despótico. O comunismo, como força produtiva, estava desdobrando-se potentemente no Oeste… e no Leste, desde os anos 60 (Praga, Varsóvia, antes Budapeste, logo Paris, Europa ocidental, os Estados Unidos…) sendo a data emblemática o maio de 68 que Sarkozy prometeu enterrar. Um comunismo insuspeitado, sem bandeiras vermelhas nem cânticos, sem partido, mas capaz de reconhecer-se com bastante facilidade na tradição revolucionária, um comunismo dos comuns, das externalidades sociais indispensáveis à produção no pós-fordismo. Um comunismo que derrubou o muro de Berlim e promete derrubar todos os demais.

(Artigo publicado originalmente em espanhol no Rebelión e traduzido por Marcelo Martino para a Revista Movimento)


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