Mal-estar como resultado do estranhamento e do sofrimento em Marx e Freud

Tanto para Freud, quanto para Marx há uma clara identificação de que o modo de produção capitalista cria um tipo de adoecimento individual e social muito particular.

Gilvandro Antunes 21 dez 2017, 16:16

Talvez nunca se tenha debatido tanto a questão do mal-estar na sociedade. Vivemos uma época de crises e, portanto, de incertezas quanto ao futuro. Há uma crise econômica, uma crise ideológica, uma crise de insegurança. Todas essas crises estão intimamente conectadas, sendo difícil saber onde começa uma e onde terminam as outras. O capitalismo em sua fase neoliberal tem por finalidade garantir vastos lucros para uma parcela cada vez menor de pessoas. Trata-se, pois, de um sistema que ataca direitos dos trabalhadores, aumentando o desemprego estrutural. Além disso o neoliberalismo tem por objetivo a dilaceração das políticas sociais, tudo isso para garantir que o orçamento público fique sob o domínio de grandes rentistas que lucram trilhões em todo mundo através da dívida pública dos países, sobretudo os mais pobres. Isso tudo, por seu lado, gera ainda mais crises o que, por sua vez, gera mais mal-estar. Ocorre que nunca foi tão exigido dos indivíduos que busquem um lugar ao sol dentro do capitalismo neoliberal como agora, ao passo que é cada vez mais difícil tal posição em um mundo marcado pelo desemprego e pela flexibilização de direitos.

Neste artigo, trataremos de dois gigantes do pensamento social: Karl Marx e Sigmund Freud. Aqui, faremos uma relação da obra do filósofo alemão e do psicanalista austríaco de modo a compará-las. Marx e Freud ao desenvolver seus estudos não estavam buscando a mesma coisa e partiam de objetos e objetivos diferentes. O primeiro buscava através do materialismo histórico, do materialismo dialético e da luta de classes entender as mudanças sociais para buscar a superação do capitalismo e a construção do comunismo. O segundo, buscava entender os seres humanos e seus fantasmas através do estudo do inconsciente, para ter um diagnóstico da mente humana e buscar a cura para os homens e suas neuroses. Porém, tanto para Freud, quanto para Marx havia a clara identificação de que o modo de produção capitalista cria um tipo de adoecimento individual e social muito particular. Se agora não é mais o castigo de deus que causa sofrimento é o cotidiano que prensa a humanidade entre o trabalho e os desejos reprimidos pela civilização.

Assim, analisaremos quatro obras destes dois célebres autores. Mal-Estar na Civilização e Inibição, Sintoma e Angústia de Freud, Sobre o Suicídio e Manuscritos Econômico e Filosóficos de Marx. Note-se, antes, que tanto em Marx como em Freud há duas concepções diferentes quanto ao homem pré-formação do Estado, ou seja, no estado de natureza. Marx se identifica como uma visão mais próxima a Rousseau onde havia igualdade e liberdade na vida rudimentar nos primórdios da humanidade. Com o advento da propriedade privada, “quando alguém resolveu cercar um lote e dizer que aquilo era seu”, como dissera Rousseau, dá-se a desigualdade à medida que quem não tinha a propriedade da terra se sujeitava a trabalhar para quem a tinha. Marx não era um romântico, não queria, assim como Rousseau também não, a volta ao estado de natureza, mas a volta da liberdade e a igualdade castradas pela propriedade privada através da construção de uma nova sociedade, mais moderna. Rousseau queria um novo contrato social, Marx queria o comunismo. Para Rousseau o homem em estado de natureza não era bom nem mau, mas amoral e vivia feliz com o pouco que podia retirar da natureza. Freud foi influenciado por Hobbes, onde o estado de natureza era a guerra de todos contra todos, onde cada ser humano (masculino) realizava livremente seus instintos, investido agressivamente contra todo aquele que se opunha a seus desejos. Todavia, nem Marx era Rousseuneano nem Freud era Hobbeseano. Para Marx, o Estado só foi possível com a propriedade privada, para Freud, o Estado só se viabilizou pela renúncia dos instintos e suas pulsões. Nesse aspecto, Freud se mostra contratualista, ao passo que Marx não o era. Grosso modo, em Marx, o trabalho excedente forma a riqueza, essa riqueza deve ser protegida dos estrangeiros que quererão tomá-la ou das classes que produzem a riqueza, mas não a tem. Assim, caberá ao Estado a tarefa de defender a riqueza e com isso os indivíduos que a possuem. Com a riqueza sendo o centro da dinâmica social caberá ao Estado dizer o que e quanto é de cada indivíduo. Na verdade caberá ao Estado regular a desigualdade sobre certas regras, onde nenhum indivíduo poderá tudo, nem o déspota embora pudesse quase tudo. Para Freud, o Estado entra em cena justamente para que um ser não possa tudo fazer, influenciado por Hobbes e Darwin, Freud verá no pai da horda primordial aquele que tudo pode e que realiza livremente seus instintos eróticos e agressivos. É justamente através da renúncia à realização dos seus instintos que possibilita aos homens se organizar para estabelecer metas sociais, e será o Estado que garantirá, através da punição da lei e da regulamentação das relações amorosas que a sociedade alcance tais metas que tem por objetivo afastar cada vez mais a humanidade do estado de natureza, ou seja, vá cada vez mais para a civilização.

Tanto para o filósofo alemão, quanto para o psicanalista austríaco a vida em sociedade traz grandes benefícios, no que diz respeito à sociedade capitalista trouxe o benefício da tecnologia mais acelerada. Não obstante, a vida em civilização capitalista traz consigo um forte componente de mal-estar. Em Freud, os seres humanos buscam a felicidade, essa felicidade, por seu passo, é ameaçada por três motivos centrais;

“Logo, nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição. É bem menos difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós como forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro; tendemos a considera-lo um acréscimo de um tanto supérfluo, ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem.

Não é de admirar que, sob a pressão destas possibilidades de sofrimento, os indivíduos costumem moderar suas pretensões à felicidade – como também o princípio do prazer se converteu no mais modesto princípio da realidade, sob a influência do mundo externo -, se alguém se dá por feliz ao escapar da desgraça e sobreviver ao tormento, se em geral a tarefa de evitar o sofrer impele para segundo plano a de conquistar prazer” (Sigmund Freud, Mal-Estar na Civilização Obras Completas, vol. 18, Companhia das Letras, pág. 31).

Note-se que em Freud a infelicidade nos ronda a todo o instante, pois temos três fontes inevitáveis de sofrimento físico e psíquico. Acontece que a vida em sociedade civilizada, o que facilita a busca de metas coletivas e que deveria nos dar mais segurança não cessa o nosso sofrimento, em muitos casos aumenta, quando desperta dispositivos neuróticos nos indivíduos. Vejamos:

“E se lhe dermos prosseguimento, perguntando por que é tão difícil dos homes serem felizes, a perspectiva de aprender algo novo também não parece grande. Já demos a resposta, ao indicar três fontes de onde vem nosso sofrer: a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regem os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade. No tocante às duas primeiras, nosso julgamento não tem por que hesitar: ele nos obriga ao reconhecimento dessas fontes do sofrer à rendição ao inevitável (…) Temos outra atitude para com a terceira fonte de sofrimento, a social. Esta não queremos admitir não podemos compreender por que as instituições por nós criadas não trariam bem-estar e proteção para todos nós. Contudo, se lembrarmos como fracassamos justamente nessa parte da prevenção do sofrimento, nasce a suspeita de que aí se esconderia um quê da natureza indomável, desta vez da nossa própria constituição psíquica” (Idem, pág. 45 e 46).

Ou seja, Freud percebe que as instituições que foram criadas para evitar o sofrimento social, mais precisamente para regular a relação entre os seres humanos não foram de total eficácia. A vida social nos causa grande sofrimento. Na obra citada, Freud vê um quê psíquico nesse sofrimento. Mas de onde vem esse quê psíquico? Para a teoria freudiana, a vida na civilização nos exige uma série de renúncias aos “Princípios do Prazer”. O Eu, ao agir sob o princípio da realidade, tende a ser levado ao recalcamento dos prazeres que são hostis à vida em sociedade, o primeiro recalcamento é do complexo de Édipo através da ameaça da castração do falo. Assim, o complexo de culpa leva a maioria dos seres humanos a aceitar as normas da família, do Estado, as escola, da religião, etc. Este complexo de culpa está presente no sempre vigilante Super-eu, onde Eu, assim como com o pai, terá uma relação dupla de admiração e ódio para com o Super-eu. Ao ser o dever ser, o Super-eu estabelece uma relação repressiva com o Eu. Este, por sua vez, deve estabelecer uma relação hostil ao Id, que é regido pelo princípio do prazer. Assim, Eu, age sob o Princípio da Realidade, uma vez que busca a satisfação instintual, mas sempre sob um peso que lhe é imposto pelo Super-eu, ficando o Eu em estado permanente de latência das pulsões.

Desse modo, a teoria Freudiana demonstra que a sociedade civilizada causa um mal-estar permanente. Na sociedade capitalista esse mal-estar é agravado, pois vivemos em uma sociedade de liberdade vigiada e com uma moral sexual hipócrita, onde o controle dos corpos, como já apontara Foucault, em Microfísica do Poder, é fundamental para se extrair a máxima potencialidade para o mundo do trabalho. Freud nos diz a esse respeito:

“Descobriu-se que o homem se torna neurótico porque não pode suportar tamanha privação que a sociedade lhe impõe, em prol de seus ideais culturais, conclui-se então que, se estas exigências fossem abolidas ou bem atenuadas, isto significaria um retorno a possibilidade de felicidade” (Ibdem, pág. 45).

Para Freud a vida em civilização nos exige demonstrações de limpeza, beleza e ordem. Essas exigências, junto com as renúncias leva aos seres humanos a alienação dos seus desejos, onde a ordem é mais importante do que a felicidade, embora a felicidade seja a ordem.

“Limpeza, beleza e ordem ocupam claramente um lugar especial entre as exigências culturais” (Ibdem, pág. 54)

“Se a cultura impõe sacrifícios não apenas sexuais, mas também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor por que é tão difícil ser feliz nela” (Ibdem, pág. 82).

Mas agora vejamos como o mal-estar está presente na obra de Karl Marx. O pequeno livro Sobre o suicídio nos mostra um Marx preocupado com um fenômeno patológico da sociedade capitalista. Nele, o filósofo alemão percebe que os suicídios aumentavam com as crises do capitalismo. Este escrito poderia ter a assinatura conjunta do chefe do arquivo da polícia francesa Jacques Peuchet, aliás, Marx transcreve boa parte dos escritos do diário de Peuchet e tece seus comentários em meio ao texto do policial francês. No prefácio à obra em questão Michel Löwy escreve:

“A sociedade moderna, escreve Marx citando Peuchet, que por sua vez cita Jean-Jacques Rousseau, é um deserto habitado por bestas selvagens. Cada indivíduo está isolado dos demais é um entre milhões, numa espécie de solidão em massa. As pessoas agem entre si como estranhas, numa relação de hostilidade mútua: nessa sociedade de luta e competição impiedosas, de guerra de todos contra todos somente resta ao indivíduo é ser vítima ou carrasco. Eis, portanto, o contexto social que explica o desespero e o suicídio” (Karl Marx, Sobre o Suicídio, ed. Boitempo, pág. 17).

Löwy demonstra um Marx preocupado com o que lera dos escritos de Peuchet em seu exílio em Bruxelas. Aliás, no livro Sobre a Questão Judaica, o jovem Marx vê esse isolamento quando nos diz que os direitos humanos são o direito à propriedade privada, quando nos diz que os direitos humanos consagrados na Declaração dos Diretos do Homem, fruto da Revolução Francesa retiram o homem da comunidade uma vez que defende seu direito em detrimento de outros homens, ou seja, o isola enquanto mona. Aqui Direitos Humanos em Marx não diz respeito ao conceito atual, mas ao conceito constado na Constituição Francesa de 1793.

Mas retomemos a obra Sobre o Suicídio:

“O número anual de suicídios, aquele que entre nós é tido como uma média normal e periódica, deve ser considerado um sintoma da organização deficiente de nossa sociedade; pois, na época da paralização e das crises da indústria, em temporadas de encarecimento dos meios de vida e de invernos rigorosos, esse sintoma é sempre mais evidente e assume um caráter epidêmico. A prostituição e o latrocínio aumentam, então, na mesma proporção. Embora a miséria seja a maior causa do suicídio, encontramo-lo em todas as classes, tanto entre os ricos ociosos, quanto entre os artistas e políticos. A diversidade de suas causas parece escapar à censura uniforme e sensível dos moralistas.

As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmos frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para as pessoas do meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que que impulsiona a personalidade, é frequentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável” (Idem, pág. 24).

Ora, quem escreveu isso? Freud? Lacan? Não, foi Marx/Peuchet. Aqui são usadas as palavras sintoma, sofrimento, repressão, desilusão. Portanto, sintomas patológicos de uma sociedade. O destaque para a citação acima é que Marx reconhece o suicídio, como uma indicação extrema de mal-estar na sociedade e que independe de classe social. Mais adiante Marx observa que o suicídio enquanto sintoma, é próprio da sociedade capitalista.

“O que é contra a natureza não acontece. Ao contrário, está na natureza de nossa sociedade gerar muitos suicídios, ao passo que os tártaros não se suicidam. As sociedades não geram todas, portanto, os mesmos produtos; é o que precisamos ter em mente para trabalharmos na reforma da nossa sociedade permitir-lhe que se eleve a um patamar mais alto” (Ibdem. 25).

Marx pergunta:

“Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões (?)…” (Ibdem. 28).

Mais adiante Marx/Peuchet:

(…) descobri os maus tratos como fator dominante, as injustiças, os castigos secretos, que pais e superiores impiedosos infligem às pessoas que se encontram sob sua dependência. A Revolução não derrubou todas as tiranias; os males que se reprovavam nos poderes despóticos subsistem nas famílias; nelas provocam crises análogas àquelas das revoluções” (Ibdem, pág. 29)

Marx detecta que, assim como Freud o fez depois, a sociedade capitalista industrial com suas regras de comportamento aprisionam os seres humanos, castrando-lhes a realização dos desejos. Por seu lado, Marx acrescenta o problema da crise econômica. Mas os dois, o filósofo materialista e o psicanalista do inconsciente vê que a sociedade moderna não foi capaz de abolir o sofrimento, pelo contrário o potencializou. Para Marx, a noção de sofrimento está intimamente ligada à propriedade privada, pois é ela que estabelece a nova dinâmica da história universal, afinal, não há classes sociais sem a propriedade privada e sem a propriedade privada e sem as classes não há excedente da produção, uma vez que o excedente está na divisão do trabalho e na propriedade privada. Em seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels atenta para o fato de que com a propriedade privada, e esta voltada para a produção da riqueza, dá-se o declínio inexorável da família enquanto descendência alicerçada na gens materna, passando agora à gens paterna onde tudo vira propriedade do homem, inclusive a mulher e os filhos como forma de garantir que a riqueza vá ao filho genético. Será o aprisionamento da mulher, através do casamento monogâmico que dará essa garantia ao homem. Marx aborda essa questão como uma das origens do sintoma do suicídio feminino na sociedade capitalista.

“A infeliz mulher fora condenada à mais insuportável escravidão, e o sr. Von M… podia praticá-la apenas por estar amparado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade, protegido por sua situação social que torna o amor independente dos livres sentimentos dos amantes e autoriza o marido ciumento a andar por aí com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre pois ela representa apenas parte de seu patrimônio” (Ibdem, pág. 37).

A pobre moça se suicidou. Aqui percebe-se dois sintomas patológicos: o do possuidor e da posse. O texto de 1838 é super atual é só não é exatamente assim em todo o mundo graças à luta das mulheres e sua inserção no mundo do trabalho. Mas ainda hoje milhares de mulheres são assassinadas no Brasil e no mundo pelo fato de serem mulheres. Aqui Marx demonstra que a propriedade privada divide os seres humanos, cria categorias de superior e inferior. Sobre isso, o sociólogo Jessé Souza, em sua obra, A Elite do Atraso: da escravidão à lava-Jato, nos dá as tintas para que possamos identificar a escravidão brasileira como uma divisão do trabalho edificada através da crueldade patológica em que o dono do escravo além de sugar toda a força de um ser humano através de um trabalho extremamente degradante podia assassiná-lo com requinte de tortura dentro da lei. Jessé vê na relação da elite e da classe média brasileira um ódio ao pobre como continuação dessa patologia, através de expressões “bandido bom é bandido morto”. A crueldade da escravidão é uma patologia dentro do regime da propriedade privada e da divisão do trabalho.

Em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos Marx aborda o sofrimento na perspectiva da propriedade privada e do trabalho estranhado. Veja que o trabalho alienado causa estranheza ao trabalhador que não vê si mesmo nem na propriedade de outro nem na mercadoria nem em seu salário. Tudo lhe é estranhado e tudo lhe causa mal-estar. Para Marx o salário já é o resultado do conflito hostil entre burguês e proletário. Se capital é trabalho acumulado, parte do trabalho é deixado na mão do capitalista, em obras subsequentes Marx chamará isso de mais-valia. Nesse caso, trabalho é capital. Mas o mal-estar vem do trabalho como mercadoria:

“A economia Nacional considera o trabalho abstratamente como mercadoria: se o preço é alto, a mercadoria é muito procurada; se é baixo, (a mercadoria) é muito oferecida; como mercadoria, o trabalho deve cada vez mais baixar de preço: o que força isso é em parte a concorrência entre capitalista e trabalhador, em parte a concorrência entre trabalhadores” (Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, ed. Boitempo, pág. 36).

Se o trabalho é mercadoria e se o trabalho é o centro da sociedade, é o que a fundamenta, o trabalho como mercadoria é alienado, logo é algo sofrido, logo gera sintomas, logo desencadeia uma angústia. Lembremos que para Freud o sintoma é a manifestação visível de algo recalcado que retorna de forma distorcida e a angustia é a manifestação de um perigo real ou não. O medo do desemprego permanente causa angústia e se manifesta em sintomas que indicam mal-estar social, não é à toa que os números de trabalhadores que adoecem em decorrência da rotina do trabalho ou trabalhadores que são levados ao suicídio por ficarem desempregados são alarmantes.

Sobre a civilização Marx se aproxima bastante a Freud (ou Fred se aproxima bastante a Marx). Ela cria, através da propriedade privada um estranhamento onde o trabalhador não se vê na sociedade em que ele habita:

“Em parte, este estranhamento se mostra na medida em que produz, por um lado, o refinamento das carências e dos seus meios; por outro lado, a degradação brutal, a completa simplicidade rude abstrata da carência; ou melhor, apenas produziu-se novamente a si na sua significação contrária. Mesmo a carência de ar livre deixa de ser, para o trabalhador, carência; o homem retorna à caverna, que está agora, porém infectada pelo mefítico (ar), pestilento da civilização… (…) A imundície, esta corrupção, apodrecimento do homem, o fluxo de esgoto (isto compreendido à risca) da civilização torna-se para ele um elemento vital. O completo abandono não natural, a natureza apodrecida, torna-se seu elemento vital” (Idem, pág. 140).

Vejamos que para Marx a sociedade baseada na propriedade privada desumaniza o ser humano. Nisso Freud se afasta de Marx, pois para Freud a civilização não humaniza nem desumaniza, pois Freud vê que o ser humano é humano com toda sua racionalidade e instintos juntos, o que aumenta ou diminui é o sofrimento, o mal-estar.

Em convergência, Marx e Freud veem que as regras da vida em uma hierarquia social aprisiona o ser humano, seja enquanto Eu, seja enquanto consciência. Entretanto, há uma espécie de consentimento. Esse ato de consentir vem sempre de fora (mas é absorvido de forma estranhada) para dentro, de uma classe para outra estabelecida pela divisão do trabalho. Marx trabalha isso na relação entre infraestrutura e superestrutura, onde o modo e as relações de produção criam um tipo de realidade que é aparente e que, portanto, encobre a verdade. Em Freud, o consentimento de uma ação que vem de fora do ser, estranha ao Eu num primeiro momento, vem do Surper-eu. Este “ser” tão vigilante que, em alguns casos, leva o indivíduo à doença neurótica:

“Outras condições para a angústia, como as do medo ao Super-eu, não se acham absolutamente fadadas à dissolução, devendo acompanhar o indivíduo por toda a vida. O neurótico distingue-se das pessoas normais, então, por exacerbar enormemente as reações a esses perigos” (Sigmund Freud, Inibição, Sintoma e Angústia, Obras Completas, vol. 17, ed. Companhia das Letras, pág. 93).

Ou em Marx:

“A externalidade não é de se entender aqui como a sensibilidade se externando, aberta à luz e ao homem sensível. A externalidade toma-se aqui no sentido da exteriorização, um equívoco, uma debilidade que não deve ser” (Manuscritos Econômico-Filosóficos, ed. Boitempo, pág. 136).

O sujeito, tanto em Marx como em Freud consente (com resistência) o que lhe é externo através da moral. O indivíduo, para agir dentro da moral estabelecida precisa se sentir parte dela, como se estivesse agindo autonomamente. Vejamos, pois, em Althusser, esta possibilidade:

“É fácil compreender que a moral tenha necessidade de um sujeito consciente de si, ou seja, responsável por seus atos, para que possa obriga-los, em consciência, a obedecer a normas cuja imposição pela força resulta menos econômica. E se compreende também, pela simples definição de sujeito moral (ou sujeito de seus atos) (…). (…) Na categoria de sujeito consciente de si, a ideologia burguesa representa os indivíduos como se estes devessem ser, para aceitar sua submissão à ideologia burguesa (…)” (Louis Althusser, Freud, Lacan, Marx, Freud, ed. Graal, página 85).

Dessa maneira Althusser faz a melhor síntese da relação entre ideologia em Marx e Super-eu em Freud.

Tanto para Marx quanto para Freud o fundamental de seus métodos de análise enquanto ciência era servir como uma ferramenta para a libertação humana contra as amarras que lhe prendem e a impossibilitam de ser plena. Freud fala na liberdade da libido, do sentimento de Eros, Marx fala da liberdade da classe trabalhadora contra a burguesia e contra o Estado. No que diz respeito à religião Marx trata-a como um instrumento de alienação, “ópio do povo”, para Freud a religião é uma “neurose coletiva”. Para ambos, a religião retira do homem sua essência e o coloca em um mundo de aparência, não real. Para Freud, a religião é a volta a proteção infantil, quando há o desamparo, para com a figura do pai. Um pai que ao mesmo tempo protege e pune. Mas aqui é fundamental ressaltar que Marx e Freud eram totalmente a favor da liberdade de religião. Em muitas ocasiões lê-se, ouve-se e até fala-se o contrário, na maioria das vezes por desinformação.

Para a esquerda, estes tempos difíceis de ódio, de não reconhecimento do outro em nós mesmos ou de todos para si, fazem-se necessárias as leituras de Freud e Marx. Afinal, vivemos em tempos de crise do capital, em tempos doentes onde o mal-estar toma conta dos seres humanos.


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