20 anos de “Sobrevivendo no Inferno” e a força cultural da periferia.

Neste artigo, Wallace Salgado reconstrói a paisagem social sobre a qual os Racionais MC’s se constituiu enquanto grupo e a maneira como ela foi refletida em suas letras.

Wallace Salgado 26 dez 2017, 13:14

“Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor.
O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta.
Eu? Eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática e um sentimento de revolta.
Eu tô tentando sobreviver no inferno”.

No final de 1997, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay lançavam seu quinto álbum de estúdio, “Sobrevivendo no Inferno”, a partir daquele momento o rap e a música brasileira nunca mais seriam os mesmos.

Para entendermos melhor o impacto cultural e sociológico que essa obra causou no país, precisamos entender em qual contexto social e político vivia o Brasil, a América Latina e o mundo nos anos 90. A década foi considerada os anos dourados do neoliberalismo no mundo, a queda das burocracias do Leste Europeu e a consequente restauração do capitalismo, acelerou a globalização e um consenso liberal, além de consolidar a nova fase do capitalismo mundial que vinha desde o final da década de 70, e 80, que significou o desmonte do Estado social mundo afora, a financeirização da economia e uma concentração de renda ainda maior. Mas o que isso tem a ver com o disco dos Racionais? A tragédia social do neoliberalismo resultou no boom da população carcerária mundial, na explosão da violência urbana na América Latina e uma brutalização da violência estatal sob a capa da guerra às drogas. Segundo a pesquisa “Crime e violência na sociedade brasileira contemporânea. Jornal de Psicologia” do pesquisador Sérgio Adorno: “No município do Rio de Janeiro, cresceram os homicídios dolosos, entre 1985 (33,35 registros/cem mil habitantes) e 1989 (59,16 registros/cem mil habitantes). No município de São Paulo, os homicídios evoluíram de 48,69 registros/cem mil habitantes, em 1991, para 55,77 registros/cem mil habitantes, em 1996, na Região Metropolitana”. Naquela década bombaram na televisão brasileira programas sensacionalistas policialescos, os cartéis dominavam inúmeros países latino-americanos como os carteis de Cali e Medelín, as favelas cariocas estavam dominadas pelo narcotráfico enquanto o povo favelado se encontravam no fogo cruzado entre polícia e traficantes, os EUA privatizavam seus presídios, os conflitos no Oriente Médio começavam se intensificar com a intervenção do imperialismo enquanto o fundamentalismo islâmico ganhava força.

Todo Estado mínimo precisa de um Estado máximo de repressão, aqui essa repressão se dava dentro de uma estrutura racista que atingia o povo preto, pobre e periférico. Cinco anos antes do lançamento do álbum, o país presenciou a chacina do Carandiru, quando a PM de São Paulo, a mando do então governador Fleury, matou mais de 111 homens durante a rebelião do presídio do Carandiru, na zona norte de São Paulo, numa das maiores violações de direitos humanos da nossa história. Era sobre tudo isso que os Racionais cantavam o grito de resistência da periferia, as crônicas das tragédias que atingiam o povo preto e periférico. A chacina do Carandiru foi tema da principal música do álbum, “Diário de Um Detento”.

“Cada detento uma mãe, uma crença/ Cada crime uma sentença/ Cada sentença um motivo, uma história de lágrima/ sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio/ sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo/ Misture bem essa química/ Pronto: eis um novo detento”, a química carregada de uma história de séculos de escravatura, exclusão e segregação social, racismo institucional combinado com o momento econômico de conflagração dos conflitos de classe e racial, o papel de controle social cumprido pelos presídios era e ainda é de transformar os muros da cadeia em masmorras do esquecimento, para guardar “o que o sistema não quis” e esconder “o que a novela não diz”.

Mas se foram anos de tragédias, foram também anos de resistência, a cultura da periferia se fortalecia como instrumento de expressão e crítica social, em Pernambuco o Manguebeat saía dos manguezais e arrebatava a música popular brasileira com Chico Science & Nação Zumbi misturando maracatu, frevo e outras músicas regionais com o rock, rap e eletrônica, na Bahia a axé music de Carlinhos Brown e sua Timbalada, Margaret Menezes, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Olodum e etc, na região Norte a lambada que nos anos 80 bombou e o melody que viria bombar no Brasil na década seguinte eram forte expressão da música popular nortista, no Rio de Janeiro os bailes funk tomavam as favelas e os subúrbios com as músicas de Cidinho e Doca “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci” e em São Paulo, o hip hop que nasceu nos ghettos americanos desembarcava no país para ganhar sua versão nacional como uma autêntica expressão cultural das periferias com o papel de música de protestos, naquela época Racionais, Thaíde, Rappin Hood, Facção Central, Trilha Sonora do Gueto, Realidade Cruel e dentre outros se destacavam. A resistência cultural e social também foi cantada na obra com a “Fórmula Mágica da Paz”, “É… sonho é sonho, deixa quieto./ Sexto sentido é um dom, eu tô esperto./ Morrer é um fator, mas conforme for,/ Tem no bolso, na agulha e mais 5 no tambor.// Joga o jogo, vamos lá, caiu a 8 eu mato a par./ Eu não preciso de muito pra sentir-me capaz/ De encontrar a Fórmula Mágica Da Paz”, o hip hop foi se fortalecendo como uma das únicas alternativas de cultura e lazer em meio ao total abandono do Estado nas bordas da cidade, de um modelo de cidade partida, onde a bolha concentra seu poder e riqueza e empurra para as bordas os trabalhadores, o povo pobre em geral, esse é o significado do rap pra quem cresceu na periferia de São Paulo e da região metropolitana, como eu nasceria 2 meses depois do lançamento desse disco. “Sobrevivendo no Inferno” ainda canta sobre fé (na época do boom das igrejas neopentecostais), drogas, luta de classes e racismo como em “Capítulo 4, Versículo 3″, ” Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor/ Que não deixa o mano aqui desandar/ E nem senta o dedo em nenhum pilantra/ Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei./ Racionais capítulo 4 versículo 3″, além de uma bela homenagem à black music e à Jorge Ben Jor com “Jorge da Capadócia”, completando a lista com “Mágico de Oz”, ” Tô Ouvindo Alguém Me Chamar”, “Periferia é Periferia”, “Gêneses” e entre outros clássicos dessa obra prima. Em termos comerciais foi um tremendo sucesso, alcançou a marca de um 1,500,000 de cópias vendidas, apesar de ter sido lançado por uma gravadora independente. “Diário de Um Detento” foi uma das as mais tocadas de 1998 e seu clipe recebeu vários prêmios VMB (Video Music Brasil) da MTV.

Duas décadas se passaram e o álbum continua sendo fundamental para se entender o Brasil contemporâneo, sobretudo numa conjuntura onde as contradições são aguçadas por uma crise econômica, social e política. É uma crônica, a partir do ponto de vista dos debaixo, sobre racismo, luta de classes, repressão estatal, periferia e resistência, uma obra definitiva que merece estar em qualquer lista de melhores discos de todos tempos da música popular brasileira.

Refletir sobre o conteúdo de uma obra como essa no fim de um ano que começou com um surto de chacinas em vários presídios, foi marcado pelos vários tiroteios que voltaram a atingir as favelas cariocas, como os que ocorreram nas favelas da Rocinha e do Jacarezinho, no cenário de alto desemprego e constantes ataques do poder branco e burguês aos direitos do povo, é exercitar o conteúdo crítico e intelectual que a periferia contribui com a sua cultura, sua produção, esse é o valor que o álbum nos coloca e provoca. Por que, em 20 anos, mesmo com políticas e compensatórias e governos ditos progressitas não conseguimos superar nenhum dos problemas relatados? Qual é a raiz desses problemas? Não existe dúvida que a periferia, sobretudo a juventude, entendeu a mensagem do disco, mas está na hora das classes médias, dos políticos, da mídia e da sociedade como um todo pararem novamente para ouvir o que os Racionais tinham e ainda tem a dizer, já a ação deixa com a gente.


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